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A Lei dos 12 bairros está sob risco. Sancionada em 2001 para proteger bairros da Zona Norte da pressão do mercado imobiliário, a lei 16.719 deve ser revogada e incorporada à nova Lei de Parcelamento Uso e Ocupação do Solo do Recife (LPUOS). Apesar da Prefeitura do Recife ter repetido que nada vai mudar, essa incorporação, no entanto, será com alterações significativas que mudam profundamente a lei, avaliam arquitetas e urbanistas ouvidas pela Marco Zero.
A minuta da nova lei que a Prefeitura do Recife enviou para discussão e aprovação na Câmara dos Vereadores traz dois novos parâmetros urbanísticos que podem aumentar a área construída nos novos imóveis nestes bairros, independentemente do tamanho da rua das edificações. Também diminui bastante a taxa de solo natural, que é de 60% em áreas próximas ao Rio Capibaribe e que agora pode cair para 40%, 30% ou até 20%, dependendo do tamanho do terreno. Isso significa menos área para a infiltração da água da chuva, um problema grave para uma cidade como Recife, que já sofre com inundações.
Arquitetos e urbanistas foram pegos de surpresa ao analisar a minuta da lei. O texto, as tabelas e os mapas da minuta são considerados herméticos e confusos. A introdução dos novos parâmetros parecem ter sido colocados justamente para mascarar o aumento na área construível e a diminuição na porcentagem de permeabilidade do solo. Uma das principais preocupações é no impacto ambiental e na qualidade de vida urbana do Recife.
A arquiteta e urbanista Luciana Gomes analisou que, pela minuta, as construções vão poder ocupar até o dobro de espaço do terreno. “Há um aumento absurdo da taxa de ocupação do solo”, denuncia. A grosso modo, um terreno qualquer na cidade é definido pela ocupação dele no andar térreo em relação ao terreno. “A taxa de ocupação na Lei dos 12 Bairros é de 40% nos setores mais vulneráveis, aqueles mais próximos ao rio. Assim, uma construção só pode ocupar 40% do terreno e o restante, os outros 60%, tem que ser mantido natural”, explica Luciana.
“O que a nova lei nova traz é que esse índice de ocupação é variável entre 70% e 80%. Ou seja, área de solo natural pode ser cortada em mais da metade”, denuncia a arquiteta, que é doutora em arquitetura e urbanismo e membra do Grupo de Estudos Urbanos (GeUrb) da UFPB e do grupo de pesquisa URBinLAB (Urbanism & Territorial Dynamics) da Universidade de Lisboa.
1. Coeficiente de utilização/aproveitamento: Determina a relação entre a área construída e o tamanho do terreno. Se um lote de 1.000 m2 tem coeficiente de aproveitamento 2, significa que se pode construir até 2.000 m2 ali. E assim por diante.
2. Gabarito: O gabarito é a altura da edificação. É dado em metros: o cálculo dos pavimentos geralmente é feito dividindo a quantidade de metros por 3.
3. Afastamentos: São as distâncias que uma edificação deve respeitar em relação aos limites do terreno – na frente, nas laterais e nos fundos.
4. Taxa de solo natural: É o percentual mínimo de solo permeável de um lote. Ou seja, a área sem construção, que permite a absorção de água da chuva.
5. Taxa de ocupação: É a parte edificada do térreo de um lote.
“No caso da região que é mais perto do Rio Capibaribe – como Poço da Panela, Casa Forte e Santana, que passa a se chamar Zona de Desenvolvimento Sustentável, setor A –, em sua maioria, tem terrenos de até 2 mil metros quadrados. Para estes terrenos, a taxa de solo natural cai de 60% para 30%. Cai pela metade. A taxa só muda de 60% para 40% em terrenos com mais de 2 mil metros quadrados, o que nesses bairros já são cada vez mais raros”, explica a urbanista.
Aqui, vale lembrar que em 2021 o prefeito João Campos (PSB) assinou uma carta-compromisso de adesão do Recife à iniciativa Construindo Cidades Resilientes, liderada pelo Escritório das Nações Unidas para Redução de Riscos de Desastres (UNDRR). Ao entrar na iniciativa, a capital pernambucana se comprometeu a se tornar “mais inclusiva, segura, resiliente e sustentável até 2030”, estabelecendo medidas eficazes para reduzir o risco de desastres climáticos.
O projeto de lei da prefeitura está indo na contramão desta resiliência climática. “Impermeabilizar o solo, especialmente em bairros ao longo do rio, é um contrassenso a esse caminho assumido pelo município”, diz Luciana Gomes. “Dizem que a gente precisa de uma cidade mais resiliente, de uma cidade mais permeável e de uma cidade com mais área natural nos cursos próximos aos cursos d ‘água, mas estão reduzindo índices que eram positivos e que ajudam muito a conter inundações na cidade. Todas as zonas ribeirinhas da cidade deveriam ser tratadas no sentido de incentivar a maior permeabilidade do solo. Não só para os 12 bairros, mas para todos os bairros ribeirinhos ao longo do Capibaribe. Em vez da prefeitura utilizar o exemplo da Lei das 12 Bairros para multiplicar isso em outros setores da cidade, o que está se fazendo é o inverso”, alerta Luciana Gomes.
Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e diretora-geral de Urbanismo da Prefeitura do Recife em 2001, foi Norma Lacerda quem coordenou os estudos para a Lei dos 12 Bairros. Ao analisar a minuta do projeto de lei da prefeitura, afirma que a proposta é o fim da lei que ajudou a criar.
Norma Lacerda chama a atenção para a incorporação nos parâmetros urbanísticos de dois índices desconhecidos. “Foi criado um Índice de Áreas Comuns. Esse índice é um fator que, multiplicado pelo coeficiente de utilização, permite construir até 40% a mais para áreas comuns, como salões de festa e estacionamentos”, aponta a arquiteta e urbanista.
Na lei original, as áreas comuns eram incluídas no cálculo total do coeficiente, o que limitava a área construída dos edifícios. Com a mudança, um terreno de coeficiente 2 pode, na prática, chegar a 3 e um de 5 pode chegar a 7. Ou seja, apesar do gabarito (altura das edificações) manter-se igual, a área de construção aumenta significativamente.
Taxa de contribuição ambiental (TCA):
É assim descrita no PL: “Soluções ambientais que proporcionem ganhos ambientais relacionados à melhoria da drenagem urbana, redução das ilhas de calor, ampliação da biodiversidade e qualificação da paisagem urbana”.
Vale, por exemplo, teto verde, jardineira (parede com plantas penduradas), preservação ou plantio de árvores e piso 70% permeável (como os de parquinhos)
Índice de áreas comuns:
Está assim na minuta: “É o fator que, multiplicado pelo coeficiente de aproveitamento máximo do terreno, indica o coeficiente máximo de construção de áreas comuns”.
A minuta descreve que as áreas de uso comum dos edifícios são aquelas utilizadas para circulação vertical e horizontal, além das áreas sociais e quaisquer outras áreas que não sejam consideradas privativas.
A outra inovação da prefeitura é a criação da “Taxa de Contribuição Ambiental” (TCA). Essa contribuição não é solo natural, mas sim elementos como árvores, fachadas verdes, jardineiras ou tetos verdes, que não têm o mesmo efeito para a permeabilidade do solo e a prevenção de enchentes. “Se o (construtor) preservar uma árvore de grande porte já existente no imóvel dele, ele fica dispensado de 50 metros quadrados de taxa de solo natural, por exemplo”, explicou o secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento Felipe Matos (Republicanos) sobre o novo índice, em audiência pública sobre a lei, ocorrida em abril.
O projeto da prefeitura tenta somar a taxa de solo natural (já reduzida) com a TCA para argumentar que os índices ambientais estão sendo mantidos ou melhorados. No entanto, como a contribuição ambiental não equivale à permeabilidade do solo, essa soma é enganosa.
A professora da UFPE Norma Lacerda, que coordenou a Lei dos 12 Bairros, acredita que o projeto da Prefeitura é o fim da lei. Foto: MCS/MZ
Para Norma Lacerda, a proposta da prefeitura também ignora a arquitetura da cidade. A Lei dos 12 Bairros foi feita a partir de estudos da capacidade das ruas aguentarem mais edificações – e mais trânsito. Isso significa que em avenidas como a Dezessete de Agosto ou a Rui Barbosa pode ser construído um prédio de 20 andares, mas não em ruas menores dos mesmos bairros. A nova proposta elimina ou enfraquece essa regra. “Ruas com menos de 12 metros só poderiam ter prédios de até 8 pavimentos. Com a nova proposta, ruas estreitas poderão receber edifícios de 16 ou 20 pavimentos. Isso desconsidera a capacidade de suporte das vias, que já são saturadas”, alerta Norma Lacerda.
Entre as muitas mudanças, há também a diminuição do afastamento frontal, que na lei dos 12 bairros era de 7 metros (e 8 metros em avenidas importantes) e passará para 5 metros. “Essa redução dificulta futuros alargamentos de vias e compromete a qualidade do espaço público”, diz Lacerda.
A Lei dos 12 Bairros não é complicada: divide os 12 bairros em três setores. No setor 1 estão bairros como Derby e Espinheiro que, já naquela época, eram adensados e com vias saturadas. O setor 2 inclui bairros arborizados, mas com um risco de verticalização e adensamento que era exacerbado, como Casa Forte. O setor 3 inclui áreas que margeiam o Rio Capibaribe, como o Poço da Panela, e tem regras mais rígidas, pela questão ambiental.
O projeto da Prefeitura do Recife complica o mapa do Recife. Desmembra os 12 bairros agora em 5 setores, com várias subdivisões. O mapa da Zona Norte fica todo fragmentado, inclusive fora dos 12 Bairros. Por exemplo, numa pequena área da Tamarineira – fora da lei dos 12 bairros e justamente onde se encontra a loja da Ferreira Costa – o gabarito foi liberado, ou seja, é possível até construir um edifício de 50 andares. Um recorte dos bairros tão numeroso não só dificulta a compreensão e aplicação da lei, como também pode levantar suspeitas de que é para beneficiar projetos específicos nestas áreas.
A Prefeitura do Recife realizou algumas reuniões e apenas uma única audiência pública para apresentar a minuta do Projeto de Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. A Marco Zero esteve em uma reunião promovida pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) e na audiência pública. Em ambas, o secretário Felipe Matos garantiu que a Lei dos 12 Bairros iria ser revogada, mas incorporada em sua totalidade à nova lei, sem alterações.
“Esse projeto da prefeitura do Recife é um crime ambiental. Eu não sei se o prefeito João Campos tem conhecimento da permissividade construtiva desta lei e o que significará para a arquitetura da cidade”, afirma Norma Lacerda.
A Lei dos 12 Bairros foi uma das marcas da primeira gestão do ex-prefeito João Paulo (PT), mas só foi possível porque na época havia uma forte mobilização dos moradores da Zona Norte, especialmente dos bairro das Graças (o “Graças a nós”, formado nos anos 1980) e de Casa Forte (“Amigos de Casa Forte”, também surgido ainda nos anos 1980). Hoje enfraquecida, essa mobilização pode retornar.
Na segunda-feira (01) foi realizado um encontro com moradores de Casa Forte que teve a presença, entre outros, da vereadora Jô Cavalcanti (PSOL) e do hoje deputado estadual João Paulo. Nesta sexta-feira (05), um grupo de moradores foi até o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) ver o que poderia ser feito para impedir a revogação da lei. À tarde, o secretário Felipe Matos recebe um grupo de arquitetos e urbanistas moradores dos bairros, em um encontro marcado pelo mandato da vereadora Cida Pedrosa (PSB).
Nessas duas apresentações que a Marco Zero acompanhou, aconteceram críticas – ora veladas, ora abertas – à Lei dos 12 Bairros, sugerindo que os bairros que ficam nas franjas da lei, como Rosarinho, Torre, Madalena e Casa Amarela, sofreram com a pressão desmedida do mercado imobiliário e se adensaram além da suas capacidades estruturais. Em outras palavras, os 12 bairros deveriam se abrir para receber empreendimentos mais robustos e, assim, poupar os demais bairros da Zona Norte, já saturados.
Críticos da lei argumentam que, como foi uma ação pontual – a área da lei corresponde a apenas 4% da população e 5% do território do Recife – e em em bairros nobres, seria uma lei elitista, que acabou criando uma distorção no tecido urbano do Recife. Ao desconsiderar a cidade como um sistema interconectado, a Lei dos 12 Bairros teria produzido desordem no restante do território.
Para Norma Lacerda, não foi a dos Lei dos 12 Bairros quem causou desordem, mas foi justamente o que manteve esses bairros ainda com qualidade urbana. É uma lei que deveria não ser revogada, mas espalhada por toda a cidade. “Na época, a ideia era dar conta desses doze bairros e depois fazer o Plano Diretor. Reproduzir essa lei no Plano – não na íntegra, porque nós iríamos reconhecer outros territórios que poderiam demandar outros parâmetros. Era uma forma de tratar a cidade como um todo, para que o Recife conseguisse, como eu acho que conseguimos durante esses anos aqui nos 12 bairros, ser uma cidade mais humana, mais convidativa”, conta. “Mas aí depois, por questões políticas, Tânia Bacelar (secretária na época) saiu e eu saí”, lembra.
“Dizem que sobrou para o resto da cidade. Mas a responsabilidade é dos gestores por uma legislação mais humana que gere um espaço de mais qualidade urbana, mais bonito. Preferem criticar ao invés de reconhecer o fato de não terem legislado adequadamente para o resto da cidade”, afirma. “Eu considero urbanisticamente esta lei um exemplo de ocupação do solo. E foi ela que conseguiu durante esses vinte e quatro anos conservar a qualidade ambiental desses bairros”.
Não é tão raro ver espigões recém-construídos nos 12 bairros. E como isso pode acontecer, já que a lei foi sancionada em 2001? É que todo mundo que protocolou um projeto para esses bairros antes da lei entrar em vigor garantiu o direito de fazer essa construção. “Foi uma luta aprovar essa lei. Na época, havia 42 projetos já protocolados que não se encaixariam na lei. Foi uma moeda de troca manter a validade desses protocolos para que conseguíssemos aprovar a lei”, conta Norma Lacerda, que não sabe se mais projetos foram protocolados até a lei ser sancionada.
O protocolo não tem caducidade – ou seja, não perde a validade. E as construtoras não precisavam ser proprietárias dos imóveis para protocolar os projetos na prefeitura. Na audiência pública da nova LPUOS, foi pedido para que os projetos protocolados na prefeitura tivessem um limite de prazo para serem executados. A prefeitura do Recife afirmou que não seria necessário, já que o atual Plano Diretor já estabelece um prazo para a execução dos projetos.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org