Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Novas construções do Recife não precisarão mais ter vagas de estacionamento, sejam residências, imóveis comerciais ou de uso misto. A mudança, prevista no Plano Diretor sancionado pelo prefeito João Campos (PSB) em 2021, está entre os artigos da nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS), aprovada nesta terça-feira (23) na Câmara dos Vereadores do Recife. Em uma rara convergência de opiniões, a medida agradou ativistas, gestores, urbanistas e o mercado imobiliário, ainda que por razões diferentes.
Pela Lei de Uso e Ocupação do Solo anterior, de 1996, era obrigatório que cada apartamento tivesse uma vaga de estacionamento de 25 metros quadrados – o que inclui o tamanho da vaga (2,20m X 5,50m) e espaço para manobra e circulação. À medida que a metragem do imóvel ia aumentando, a lei exigia mais vagas para cada apartamento ou sala comercial.
O arquiteto e urbanista Milton Botler, que já foi presidente do Instituto Pelópidas Silveira, diz que a mudança em relação aos estacionamentos privados é uma tendência das cidades, em uma tentativa de desincentivar o uso de carro particular e de baratear as construções.
“Quando se implantou, em 2000, o TransMilênio (sistema de transporte integrado) em Bogotá, o debate foi que seria necessário tirar muita vaga de carro para liberar a infraestrutura para o transporte público. E o prefeito de Bogotá à época disse: “vaga é um problema privado, não é um problema público”. Foi aí que o resto do Brasil começou a prestar atenção de que vaga de estacionamento não compete ao poder público. Se o empreendedor quiser colocar, ele coloca. Se não quiser, não coloca”, diz o urbanista, que coordenou em 2011 o primeiro Plano de Mobilidade do Recife.
“Fica dispensado da exigência mínima de vagas de estacionamento qualquer tipo de empreendimento de uso habitacional, não habitacional e misto em todas as zonas e setores da cidade.”
O urbanista afirma que o que mais atrai o uso do carro é ter onde estacionar. “Se houver limitação de estacionamento, as pessoas buscarão outras formas de deslocamento. A obrigatoriedade de ter vagas é uma retórica que se provou extremamente ineficiente e falsa”, diz.
Para Botler, não tem como uma cidade querer ser sustentável se ainda privilegia o espaço para carro privado. “Essa mesma medida de não precisar de vaga de estacionamento já está em uso em Petrolina desde o Plano Diretor de 2018. Tentamos colocar no Plano Diretor de Garanhuns também, mas só conseguimos uma redução do número de vagas”, conta Botler, que já fez consultoria para vários municípios. “Não houve reclamações dos moradores nesses municípios”, pontua.
A arquiteta e urbanista Yara Baiardi, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), vê o novo artigo da LPUOS como um avanço, mas ainda extremamente aquém dos imensos desafios que a mobilidade do Recife enfrenta. “A questão cultural do automóvel não tem a ver só com a cidade do Recife. É da sociedade que vivemos, muito influenciada pela norte-americana, que é muito focada no automóvel e que destruiu as cidades brasileiras”, critica.
Yara Baiardi cita como um bom exemplo de áreas térreas a parte mais antiga do Bairro do Recife, construída antes da invenção do automóvel. “Em termos de arquitetura e urbanismo, é um dos melhores bairros da cidade. Porque as ruas são estreitas, as quadras são curtas, mesmo sendo uma área portuária. Há uma riqueza urbana e não há estacionamentos no térreo. Em outros bairros, acabou-se o térreo da cidade: é um térreo murado e, atrás do muro, pisos de garagem. O térreo foi completamente empobrecido. Se você pega a arquitetura do Recife Antigo, hoje está lá meio abandonado, mas é um térreo que tem uma fachada, que tem uma porta, que tem algum diálogo com a cidade”, observa.
No Bairro do Recife, térreos dos prédios dialogam com a cidade.
Inês Campelo/MZ
Yara defende, assim como Botler, que para que o artigo da lei tivesse alguma serventia a mais deveria estabelecer um limite máximo de vagas por empreendimento. “Essa desobrigação de número mínimo de vagas vai melhorar a mobilidade do Recife? Não. Porque não é uma lei, nem um artigo que vai mudar. É um conjunto de ações”, comenta ela, que afirma que a única saída para o trânsito infernal do Recife é o investimento em transporte público. “Só que para fazer isso tem que tirar faixas de automóvel. Infelizmente, a sociedade brasileira acha que ter carro é status e expandir a cidade é a melhor coisa”, lamenta.
Também professora da UFPE, Norma Lacerda critica que áreas nobres da cidade sejam usadas para estacionamento de carros. “Na beira do Capibaribe, no Bairro do Recife, por exemplo, os estacionamentos da própria prefeitura e de tribunais ocupam terrenos voltados para a frente d’água. É um absurdo”, diz ela, que vê com apreensão a falta de fiscalização da prefeitura em relação aos carros estacionados desordenadamente em ruas públicas.
Milton Botler destaca que a prefeitura vai precisar de mais empenho nessas fiscalizações. “A rua é espaço público, não privado. Se o estacionamento dos prédios for transferido para as ruas, cabe ao poder público fiscalizar e multar, ou cobrar, como na Zona Azul”, diz Botler, acrescentando que a fiscalização também aumentaria a inconveniência do uso do carro. “A falta de fiscalização nas ruas do Recife acaba por tornar o uso do automóvel ainda mais conveniente, com estacionamento irregular em calçadas, faixas de pedestres e ciclofaixas”, reclama.
Representante da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco (Ademi-PE) no Conselho das Cidades, o arquiteto e urbanista Sandro Guedes diz que desde 2021, com o novo Plano Diretor, as construtoras estão fazendo projetos sem vagas de estacionamento. Para ele, o artigo traz três avanços: a viabilização no Recife de habitação de interesse social [Minha Casa, Minha Vida], a diluição dos custos imobiliários e a mudança da filosofia urbanística da cidade, para uma cidade menos voltada para os carros privados.
Pode parecer uma realidade distante essa em que a classe média recifense abandona a segurança de ter uma vaga de garagem em casa. E, na maioria dos empreendimentos voltados para esse público, não é esperado qualquer alteração, por ora. Mas Guedes aponta que vários empreendimentos já estão sendo construídos com “zero vaga”. Como o ciclo da construção civil é longo, nenhum prédio novo sem garagem foi entregue ainda no Recife. São residenciais com focos em jovens profissionais e no Minha Casa, Minha Vida, como projetos nos bairros do Jiquiá, Jardim São Paulo, Santo Amaro e um projeto que ele mesmo está desenvolvendo no bairro do Espinheiro, com 80 apartamentos de cerca de 40 metros quadrados sem vaga para carros.
“A nova lei permite que a área que seria destinada ao estacionamento (considerada área comum) seja convertida em área privativa, o que funciona como um incentivo ao desenvolvimento de moradias mais acessíveis. Ao não utilizar a área comum para estacionamento, o empreendedor pode aumentar o número de apartamentos, diluindo assim o custo do terreno, que é muito alto no Recife, por unidade, o que barateia o preço final para o comprador”, explica.
Yara Baiardi critica como a cultura do carro empobreceu os térreos de alguns bairros do Recife.
Coordenador da Associação de Metropolitana de Ciclistas do Recife (Ameciclo), Daniel Valença argumenta que a lei, como foi aprovada, representa apenas uma “meia vitória” para os defensores da mobilidade ativa e do transporte público, pois retirou a obrigatoriedade de vagas mínimas, mas não impôs um limite máximo de vagas.
“O propósito de limitar o número máximo de vagas é não deixar para o empreendedor decidir se colocará, por exemplo, três vagas de garagem em vias já disputadas e que deveriam ter atrativos para outros modos de transporte, como a avenida Rui Barbosa”, explica. Assim como está, a medida acaba privilegiando mais o mercado imobiliário, interessado em ampliar a participação do Recife no Minha Casa, Minha Vida – que não exige vagas de garagem –, e não necessariamente o desincentivo ao uso do carro.
A Ameciclo propôs uma emenda para que a prefeitura ficasse responsável por estabelecer esse limite máximo de vagas. A emenda, apresentada em conjunto pelas vereadoras Liana Cirne Lins (PT) e Jô Cavalcanti (PSOL), foi rejeitada sexta-feira (19) pela comissão especial da Câmara de Vereadores do Recife que analisou as mais de 100 emendas feitas à minuta da LPUOS proposta pela Prefeitura do Recife.
No argumento, a comissão afirma que o artigo como está – com desobrigação, mas sem estabelecer limite máximo – é uma “preocupação” e um “cuidado”, de se proceder a uma “transição responsável, com base no princípio da razoabilidade, de um ordenamento urbanístico focado no transporte individual, mediante a exigência de ofertas de vagas de estacionamento, ao novo modelo pactuado com a sociedade”.
Na contramão das discussões urbanísticas, o vereador Rubem Rodrigues (PSB), conhecido como Agora é Rubem, apresentou uma emenda não só para reverter a desobrigação de vagas de estacionamento, como também para estabelecer como critério a proporcionalidade em relação ao número de veículos emplacados no município. A medida, claro, foi rejeitada.
No parecer, a comissão alegou que a medida se encontra em flagrante desconformidade com o Plano Diretor do Recife e que “representaria retrocesso em relação às políticas urbanas contemporâneas, que buscam reduzir a sobreposição de espaços destinados a automóveis em detrimento da habitação, do uso misto e da qualificação do espaço público”.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org