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Distrito Guararapes vai ter 873 kitnets com metro quadrado mais caro que a média do Recife

Maria Carolina Santos / 31/10/2025
Imagem aérea do bairro de Santo Antônio, mostrando vários predios e a avenida Dantas Barreto e os dois prédios conhecidos como Torre Gemêas ao fundo

Arnaldo Sete/MZ

Mais uma fatia da cidade do Recife vai ser concedida para a exploração comercial da iniciativa privada, desta vez bem no centro da capital. Apesar do projeto para a concessão do chamado “Distrito Guararapes”, no bairro de Santo Antônio, estar se desenrolando há, pelo menos, dois anos, só nesta quarta-feira (30) o prefeito João Campos (PSB) e a prefeitura do Recife anunciaram a concessão – horas depois da realização da única audiência pública sobre o edital.

A prefeitura divulgou que a audiência, realizada somente online, contou com a participação de 70 pessoas. Segundo fontes ouvidas pela MZ, além da falta de ampla publicidade, não era possível ver quem eram os demais participantes, nem comentar ou fazer perguntas no chat, o que contraria as regras de uma audiência pública.

Mapa da região central do Recife, com destaque para uma área sombreada identificada como “área de concessão”. O desenho mostra o traçado urbano com ruas, quarteirões e o rio Capibaribe à esquerda, que contorna parte da zona demarcada. A área destacada, em tom mais escuro, ocupa parte do centro da cidade e se estende em direção ao leste, abrangendo vias importantes e margens do rio. Ao redor, aparecem outras regiões em tons mais claros, representando bairros vizinhos fora da concessão. O mapa usa cores neutras e traços finos para indicar a malha urbana e destacar o perímetro da área sob concessão.

Área que será concedida pela prefeitura do Recife para a iniciativa privada por 30 anos. Imagem: Distrito Guararapes/Reprodução

Crédito: Divulgação/PCR

Em vídeo publicado nas redes sociais, João Campos afirmou na quarta-feira que o projeto no bairro de Santo Antônio “agora foi aberto para a consulta popular”. Mas não é verdade: a consulta pública sobre o projeto – que já está pronto – começou no dia 6 de outubro, também sem nenhuma publicidade pela prefeitura, e termina já na próxima terça-feira, 4 de novembro.

No vídeo, o prefeito do Recife afirma que “14 prédios serão comprados pela prefeitura. Desses, 12 para moradia, pra gente trazer quase mil novos apartamentos para o centro da cidade. E, fruto dessa renda, fazer a requalificação dos 140 mil metros quadrados do térreo. Dá 14 hectares”. Em nenhum momento do vídeo ele afirma que não será a prefeitura quem vai fazer essa revitalização: a reforma e a gestão da área serão concedidas a uma empresa privada por 30 anos, que ficará responsável também por vender esses apartamentos. A prefeitura irá repassar a propriedade dos 14 prédios para a empresa que ganhar a licitação, ao fim da reforma dos imóveis.

Slide intitulado “Números do Negócio Imobiliário”, com dados sobre o projeto Distrito Guararapes. Informa que são 12 empreendimentos e 873 unidades habitacionais, somando 40,5 mil m² de área privativa total (33 mil m² residenciais), com valor médio de R$ 8.777 por m² e ticket de R$ 310 mil por unidade. A área média das moradias é de 35 m² e o VGV totaliza R$ 307 milhões. Dois gráficos indicam que 66% das unidades estão na Faixa 3 do programa Minha Casa Minha Vida e 34% na Faixa 4; além disso, 66% têm um dormitório, 29% dois e 5% três. À direita, há foto de prédios modernos na Av. Dantas Barreto, com árvores, pedestres e carros no entorno.

Slide da apresentação que detalha a distribuição das unidades habitacionais do Distrito Guararapes.

Crédito: Divulgação/PCR

Ou seja, a concessionária vai reformar os imóveis e a prefeitura vai passar a propriedade desses imóveis para a concessionária. Os apartamentos serão enquadrados como Habitação de Interesse Social (HIS). A transferência de propriedade não será imediata com o início do contrato com a concessionária, mas sim condicionada e vinculada à execução de obras. Os outros dois imóveis da concessão serão só para uso comercial: uma cinemateca e um edifício garagem.

A Parceria Público-Privada (PPP) também prevê investimentos de dinheiro público na área. A prefeitura deve colocar R$ 76 milhões no Distrito Guararapes ao longo dos primeiros seis anos. A estimativa é de que os prédios para habitação custem R$ 25,3 milhões, pagos pela prefeitura. Os demais R$ 50,9 milhões são para remuneração pública à concessionária, como reembolso por parte dos investimentos realizados pela empresa privada na execução das intervenções obrigatórias. Pelo contrato, por exemplo, R$ 3,9 milhões vão para o edifício garagem e R$ 8,4 milhões para a cinemateca: são “bens reversíveis”, que irão voltar para a prefeitura após o fim do contrato de 30 anos. A concessionária é quem vai fazer a compra desses dois imóveis e depois será reembolsada pela prefeitura.

Na audiência e em apresentação para arquitetos e urbanistas, representantes do Gabinete do Centro do Recife, órgão da prefeitura, afirmaram que foram identificados 31 imóveis com necessidade de renovação, dos quais 14 estão dentro da concessão. Os demais esperam que sejam induzidos a reformas pelo interesse do mercado imobiliário. Mas, além das habitações da concessão, a prefeitura pretende, segundo fala nessas apresentações, custear de 30% a 80% do valor de aluguel de mais de mil unidades habitacionais de interesse social no centro do Recife.

Pela que consta na apresentação do projeto, disponível aqui, os 873 apartamentos do Distrito Guararapes não serão para famílias de baixa renda. As unidades terão em média 35m2 e irão custar em média R$ 310 mil. O valor do metro quadrado será de R$ 8,77 mil, o que é acima do valor médio do Recife, que foi de R$ 8,40 mil no mês de setembro.

Além de todas as vantagens oferecidas pela prefeitura, como o perdão de dívidas de IPTU, as unidades serão vendidas pelo Minha Casa, Minha Vida, programa de habitação da Caixa Econômica Federal que conta com subsídios federais. O programa se divide em quatro faixas de renda e valor de imóveis. Pela apresentação, o Distrito Guararapes vai atender somente as duas faixas de renda mais alta. Serão 34% das unidades para a faixa 4 (renda mensal de até R$ 12 mil e imóveis de até R$ 500 mil) e 66% para a faixa 3 (renda mensal entre R$ 4,7 mil e R$ 8,6 mil e imóveis de até R$ 350 mil).

“A prefeitura tem um discurso que engana. Pode até dizer que é habitação de interesse social, porque está dentro das condições do MCMV, mas não é de fato uma habitação para prover moradia no centro da cidade para a população que realmente necessita ”, critica o arquiteto e urbanista Natan Nigro, coordenador executivo do Inciti – Pesquisa e Inovação para as Cidades, uma rede de pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “É um projeto que atende pessoas de uma faixa de renda que têm mais condições de adquirir um imóvel. As pessoas da faixa de renda 3 e 4 hoje moram na Torre, Espinheiro, Boa Vista. O propósito de habitação social não se concretiza nesse projeto para o Centro”, afirma.

Concessionária terá várias vantagens pela nova Lei de Uso do Solo

O projeto do Distrito Guararapes está bem alinhado com a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) sancionada no começo deste mês. A lei traz muitas vantagens para empreendimentos tanto de HIS (Habitação de Interesse Social) quanto para os que estão localizados no centro do Recife.

Uma delas é que a cada metro quadrado reformado para moradia no bairro de Santo Antônio, o incorporador recebe o direito de construir área adicional equivalente em bairros mais valorizados, como Boa Viagem. E é uma vantagem que pode ser passada de uma construtora para outra, como uma troca.

Outra vantagem possibilitada pela nova LPUOS é que empreendimentos enquadrados como HIS podem ser dispensados do atendimento obrigatório à Taxa de Contribuição Ambiental (TCA) e dos parâmetros de qualificação do espaço público, como calçadas mais largas. Esses empreendimentos do Distrito Guararapes também não seriam possíveis se a nova LPUOS não tivesse acabado com a exigência de vagas mínimas de estacionamento nos imóveis do Recife.

Além disso, nesta semana a prefeitura do Recife também enviou para a Câmara de Vereadores dois projetos com benefícios imobiliários no Centro: o primeiro deles garante o perdão de IPTU e taxa de lixo da área coberta pelo programa Recentro, como bairro de Santo Antônio; o outro permite a venda em leilão de imóveis que estão abandonados.

O projeto do Distrito Guararapes foi desenvolvido pelo escritório de arquitetura Jaime Lerner – com sede em Curitiba – e apresenta uma proposta bem diferente do que hoje é o centro do Recife. O Distrito Guararapes prevê a revitalização de 35 quadras do bairro de Santo Antônio. A praça da Independência, mais conhecida como pracinha do Diário, se torna um enorme pátio com bancos alinhados, sem sombra, com um totem vermelho. A avenida Guararapes, onde hoje só transitam BRT e ônibus, será aberta também para automóveis. O escritório foi contratado pelo BNDES, que fez a modelagem econômica do projeto de concessão. A página do BNDES sobre o projeto é erroneamente ilustrada com arranha-céus de São Paulo, e não do bairro de Santo Antônio.

Para a professora de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Iana Ludermir, a proposta do Distrito Guararapes situa-se em um contexto de criação de um “território de oportunidades” no centro histórico do Recife. “A avenida Guararapes foi, e ainda é, objeto de estudos e de elaboração de planos e projetos, tanto no âmbito acadêmico quanto do poder público. A área foi estudada e planejada como Perímetro de Reabilitação Integrada pela prefeitura no início da década de 2000, mas a realização das propostas, via de regra, sempre esbarrou no desafio de estruturar meios de financiamento para os projetos”, contextualiza.

Para ela, não se trata de um desafio apenas de projeto, mas sim de realizar um projeto que “inclua, adequadamente, aqueles que são hoje os usuários do espaço, que resistiram e dão significado ao lugar. Esse desafio e compromisso social não cabe ao escritório de arquitetura e urbanismo. Cabe à gestão pública, que acompanhará todas as etapas de implementação do projeto”, afirma.

Professora titular de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Norma Lacerda participou da audiência pública online e saiu dela com muitos questionamentos. Entre eles, quais são os instrumentos que serão utilizados para evitar o mau uso das habitações de interesse social, como o aumento patrimonial indevido e a transformação das unidades em aluguel de temporada. Em São Paulo, a Câmara de Vereadores instaurou uma CPI para investigar o financiamento desse tipo de imóvel para investidores imobiliários. Outro ponto questionado por Norma Lacerda é em relação aos atuais comerciantes da área e como a prefeitura do Recife vai atuar para impedir a expulsão desses comerciantes pela concessionária.

“Parece a criação de um paraíso fiscal”

A professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Iana Ludermir participou de algumas reuniões sobre o Distrito Guararapes. A pedido da Marco Zero, ela fez uma breve avaliação do projeto:

O projeto para a avenida Guararapes faz parte de um modelo de negócios baseado em premissas econômicas, com o protagonismo do BNDES. Nesse contexto, as edificações, que são patrimônio cultural do Recife, estão sendo tratadas como ativos imobiliários capazes de atrair investimentos privados. As pessoas e as práticas que coexistem nessa área não aparecem, efetivamente, na modelagem econômica. Trata-se de uma proposta que prioriza a reativação imobiliária da região e não a justiça socioespacial e a melhoria da qualidade de vida da população e dos usuários daquele espaço. 

O projeto do Distrito Guararapes também está atrelado à proposta de perdão de dívidas dos imóveis que realizem reforma quando se sabe, por meio de levantamentos da própria Marco Zero, que existem muitos imóveis com dívidas de IPTU que ultrapassam meio milhão de reais na área central. Qual o critério para perdoar essa dívida? Quem se beneficia nesse processo?

É urgente repovoar o centro. Contudo, não está claro de quem será a propriedade dos imóveis desapropriados ou se o lucro obtido nessa incorporação servirá a um propósito socialmente justo.

Trata-se de um projeto que parece propor a criação de um “paraíso fiscal” para a atração de investimentos, alinhado aos interesses do capital e submetido às lógicas da iniciativa privada. Do modo como o Master Plan está apresentado, a proposta pouco se articula a outras iniciativas, podendo ter como consequência a criação de um fragmento urbano de prosperidade e qualidade, com novas práticas urbanísticas e econômicas, mas que não inclui, adequadamente, aqueles que hoje são os usuários do espaço, que resistiram e dão significado ao lugar.

“Privatização” até do rio Capibaribe

Pelo contrato, não há pagamento de outorga para a prefeitura, ou seja, o valor que quem vence a licitação paga para ter direito ao contrato de concessão. A concessionária vai se comprometer a fazer os investimentos obrigatórios. Durante as três décadas de vigência do contrato é esperado investimentos de R$ 504,196 milhões no projeto, sendo R$ 315,226 milhões em despesas operacionais e R$ 155,322 milhões em investimentos. Os R$ 76,2 milhões da prefeitura em incluídos nessa conta.

A Prefeitura do Recife também não vai receber um valor fixo de tarifa, mas sim receitas variáveis provenientes de multas, compensações e uma participação nas receitas acessórias da concessionária, em percentuais que ainda serão definidos e acordados entre a prefeitura e a concessionária vencedora da licitação. As receitas acessórias são todo o dinheiro arrecadado com ações que não estão previstas no contrato – e que precisarão de autorização prévia da prefeitura para serem realizadas.

O ChatGPT disse: A imagem mostra uma ilustração arquitetônica de um projeto urbano à beira de um rio, durante o entardecer. No primeiro plano, há uma estrutura moderna flutuante sobre a água, com formato semicircular e cobertura curva branca. Dentro dela, vê-se um piano de cauda e algumas pessoas sentadas, sugerindo uma apresentação musical ao ar livre. A estrutura está conectada à margem por uma passarela de madeira. À beira do rio, há um calçadão largo com pedestres, árvores, postes de iluminação e alguns quiosques vermelhos. Ao fundo, aparece um prédio grande e claro de vários andares, e mais adiante, outros edifícios urbanos em tons neutros, compondo um cenário de cidade moderna.

Construção prevista no projeto para a concessionária. Imagem: Distrito Guararapes/Divulgação

Crédito: Divulgação/PCR

Para efeito de multas e compensações, vale o valor estimado do contrato, que foi colocado em R$ 309.892.492,53. As intervenções obrigatórias incluem a implantação, gestão e operação de uma cinemateca e de um edifício garagem. O projeto prevê também dois equipamentos de turismo e cultura instalados dentro do rio Capibaribe, um deck flutuante e um palco flutuante, sendo um voltado para o Recife Antigo e outro para a rua da Aurora, que serão geridos pela concessionária.

Além do valor da venda dos apartamentos a concessionária poderá explorar uma série de atividades comerciais na região. De acordo com a minuta do contrato, a exploração de atividades econômicas preferencialmente deve ocorrer nos seguintes setores: lazer, recreação, educação, entretenimento, gastronomia, desporto, cultura, turismo, hospedaria, comércio, empreendedorismo e fomento à inovação tecnológica e à economia criativa, com os serviços associados.

A Marco Zero vai entrevistar, na próxima segunda-feira, o Secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento, Felipe Matos, porta-voz da prefeitura do Recife sobre a concessão do Distrito Guararapes.

Além dos apartamentos, a concessionária poderá explorar comercialmente o Distrito Guararapes das seguintes formas:

1. Comercialização de espaços publicitários internos e externos dos “ativos imobiliários” e “ativos urbanísticos”. Isso inclui patrocínios para equipamentos urbanos como quiosques, restaurantes, bares, e publicidade em rede wi-fi, bem como mídia externa. Ficam de fora placas toponímicas e relógios eletrônicos digitais, que já contam com outra concessão.

2. Atividades de marketing e publicidade associadas ao Distrito Guararapes ou à sua imagem, incluindo naming rights de equipamentos urbanos ou o que a prefeitura chama de “ativos urbanísticos”, como praças.

3. Cobrança pelo uso de estacionamentos para veículos nos edifícios garagem

4. Exploração de aluguel de patinetes e passeios fluviais

5. Realização de eventos culturais, esportivos, gastronômicos, dentre outros, nos “ativos urbanísticos”

6. Serviços de alimentação, incluindo restaurantes, lanchonetes, bares, cafés, máquinas de atendimento, entre outros.

7. As áreas privativas dos pavimentos térreos dos imóveis habitacionais devem ser destinadas exclusivamente para exploração comercial

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org