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A disputa política nas periferias

Marco Zero Conteúdo / 17/07/2015

Em entrevista à Agência Pública, o professor Gabriel Feltran, do Centro de Estudos da Metrópole da USP, fala sobre como se dá a polarização política nas comunidades periféricas

Por Marina Amaral
Da Agência Pública

Gabriel Feltran, professor do Centro de Estudos da Metrópole da USP

Gabriel Feltran, professor do Centro de Estudos da Metrópole da USP

O jovem brasileiro da periferia passa cada vez mais longe da polarização esquerda versus direita, explica o professor Gabriel Feltran, do Centro de Estudos da Metrópole da USP. No entanto, para o professor, a agenda da meritocracia, da redução do papel do Estado e da “liberdade individual” é fortemente rechaçada. “O pentecostalismo, a possibilidade de consumir, a polaridade racial ou a ‘vida loka’ são hoje matrizes de elaboração das próprias vidas muito mais importantes do que a ‘esquerda’ institucional. E essas matrizes movem o cenário político para direção ainda desconhecida.” Leia a entrevista, concedida durante a apuração da reportagem “A Nova Roupa da Direita“.

 

Como a polarização entre direita e esquerda que se vê principalmente nas redes sociais chega aos meninos da periferia, das favelas?

Boa parte dos meninos e meninas das favelas vive a “crítica ao sistema” de modo muito intenso e cotidiano. A polarização entre os “bacanas, playboys, madames” e os “pretos, pobres, periféricos” é cada vez mais clara dos dois lados. Em geral, jovens pobres são muito mais críticos do que as “esquerdas” da Vila Madalena. Mas o registro pelo qual essa crítica social é expressa, nas periferias, passa cada vez mais longe da polarização esquerda versus direita ou de uma elaboração discursiva nos marcos da política tradicional. Passa pelas letras de rap, pela estética do funk, pela racialização, pelo estilo de vida, ou seja, por outros caminhos. Não é o registro da política institucional, dos movimentos de esquerda tradicionais, que abriga as noções críticas que eles carregam. O pentecostalismo, a possibilidade de consumir, a polaridade racial ou a “vida loka” são hoje matrizes de elaboração das próprias vidas muito mais importantes do que a “esquerda” institucional. E essas matrizes movem o cenário político para direção ainda desconhecida. O que se percebe, transitando entre favelas e elites, é que a metáfora da guerra (inimigos a combater) parece fazer mais sentido para pensar a política hoje do que a metáfora da democracia (comunidade de cidadãos).

No sentido que se ouve tanto “não me representa” em relação aos políticos, como seria?

Tenho trabalhado com a ideia de regimes normativos distintos. Não há só uma lei ou um direito no estado de São Paulo. Há diversas, e se vive operando um repertório de normas, plausibilidades. Se você foi roubado na favela, não deve chamar a polícia, mas os irmãos do PCC. Se tem um problema de saúde, vai ao posto. Se o problema é trabalhista, vai à Justiça do Trabalho. Se é um filho no crack, tem um pastor para ouvi-lo, encaminhá-lo a uma clínica. Cada um desses encaminhamentos, entretanto, opera com valores, códigos de conduta e princípios morais distintos. A política institucional é só um código a mais, na verdade distante, que se aciona quando e como possível.

Houve uma grande queda de votos no PT nas periferias nas últimas eleições. A que o senhor atribui essa guinada? É uma virada à direita ou simplesmente descontentamento com o PT?

Há bastante tempo o sindicalismo operário, a Igreja Católica e os grupos de esquerda militante, base inicial do PT, abandonaram o trabalho de base nas favelas, periferias, que fizeram intensamente até os anos 80. O PT passou a disputar postos de poder estatal e, principalmente, de mercado. Suas “bases” reais são no empresariado e em partidos de aluguel há tempos. Há outros grupos, entretanto, disputando corações e mentes nas periferias: pastores, MCs, irmãos e disciplinas, grupos de autoajuda, entre vários outros. No momento da eleição, parte significativa desses atores não trabalha pelo PT, mas por outros candidatos.

Essa juventude com quem o senhor trabalha participou das manifestações contra o governo? Em caso positivo, por quê?

Não participou, não. Talvez haja exceções, mas seguramente não organicamente. Nas favelas, quase todo jovem sabe que essas falas “contra o governo Dilma” são, na verdade, elitismo e racismo mal disfarçados. A pauta da “corrupção” reforça a ideia de que todos são corruptos.

A juventude da direita tem em seus principais pontos a “meritocracia”, a redução do papel do Estado – e das políticas públicas –, a defesa da propriedade privada e da “liberdade individual”. De que modo essa agenda poderia atrair a juventude negra, pobre e excluída? A ideia do “individuo contra o Estado” tem algum apelo?

Essa agenda é fortemente rechaçada nas periferias, claro. Um “preto” sabe o quanto a meritocracia é perversa, o quanto há bloqueios para que ele chegue às universidades, o quanto o país é desigual. Conhece a hipocrisia das nossas elites, porque trabalha como lixeiro, catador, entregador de panfleto, motoboy, servente, atendente, auxiliar de serviços gerais, garçom. E também como camelô, faxineiro, flanelinha, cambista, sem falar dos mercados criminalizados. São Paulo tem 1 milhão de ex-presidiários, mais de 200 mil presos, dezenas de milhares em unidades de internação, clínicas de reabilitação, albergues. Só a cidade de São Paulo tem mais de 10 mil moradores de rua. As famílias diretas dessas pessoas, submetidas a todo tipo de humilhação cotidiana, somam de 15% a 20% da população do estado. Essas pessoas convivem com os “brancos” de uma posição específica, que permite muita reflexão, muita compreensão. E trocam muitas percepções entre elas, construindo valores e posições bem consistentes. Em suma, eles conhecem “o sistema”; meu trabalho de pesquisa é, basicamente, traduzir esses saberes numa gramática compreensível também para outros setores sociais.

O fato de o Lula ser operário, nordestino, muda alguma coisa? 

Faz toda a diferença, claro. Mas Lula é Lula, Dilma é Dilma, Haddad é Haddad. As experiências pessoais importam, mas não é a lógica de partidos políticos a que mais importa, como eu dizia.

Essa polarização “playboys” e “pretos”. Tem preto que vira playboy ou quer virar playboy?

Tem sim, mas como os Racionais já diziam, há quase 20 anos, aí um “Preto Tipo A” vira um “neguinho”. Querer consumir as mesmas marcas ou desejar as mesmas motos dos “playboys” não se faz para se parecer com eles. Esse consumo é, ao contrário, elaborado como uma afronta a eles. Você não me queria aqui, mas aqui estou. Uma coisa é você ser pobre e andar de ônibus. Outra é ser pobre e andar com uma moto 1100 cilindradas. Ou não é?

A escola, uma profissão, isso é visto como possibilidade de melhoria de vida?

Claro que sim, demais. Tomar o metrô às 11h da noite é ver uma multidão de jovens das periferias voltando da faculdade, depois de um dia todo de trabalho. O mercado de trabalho é praticamente bloqueado para quem não teve estudo. Por isso mesmo, para os que não conseguiram estudar, sendo ainda jovens, só restam os mercados mais subalternos: informais e, sobretudo, ilegais. Quem não quer isso para si, tendo o mínimo de condições, vai fazer jornada tripla e tentar se formar. Ainda assim, terá muita dificuldade para competir com os filhos das classes médias e elites no mercado.

Tem playboy que pode ser mano ou não tem como?

A comunidade política que se elabora nas periferias tem como base uma atitude, o “proceder”, fortemente moralizado – paz, justiça, liberdade, igualdade, união são valores muito prezados. E não são universais; sabe-se que os inimigos não agem assim, e inimigos estão tanto dentro quanto fora das periferias. Alguém que “defende o pobre no tribunal”, por exemplo, pode ser visto como parceiro, aliado. Mas alguém que quer parecer malandro, falando “gíria”, não.

Há fronteiras muito tensas que permitem passagens controladas, reguladas, entre os lados. Fronteiras que dependem das situações, das reputações, das performances sociais cotidianas. Mas hoje essa polaridade é muito forte. Quando ando com meninos do fundo das favelas pela cidade, reparo no estranhamento absoluto que essas companhias produzem. Quando eu mesmo ando pelas favelas, pelas biqueiras, bares, pela cracolândia, vejo como minha presença também causa estranhamento ali. Mas sem dúvida, as favelas são muito mais inclusivas, menos preconceituosas, e muito menos perigosas para o estrangeiro do que os ambientes de elite.

E a religião? É uma ponte de inserção?

Na perspectiva com que trabalhamos, em grupo, não há exclusão. Há muita opressão, mas ninguém está fora do social. O dinheiro que se ganha com o tráfico de drogas, por exemplo, é gasto no shopping center, alimentando o mercado formal. Colocar centenas de milhares na cadeia não os isola do mundo social, mas, ao contrário, os inscreve muito fortemente no mundo reflexivo, crítico e criminal ao mesmo tempo.

A enorme maioria dos moradores das periferias são religiosos, de religiões tão díspares quanto o catolicismo, o pentecostalismo e o candomblé. Os evangélicos têm tido cada vez mais presença na disputa de recursos estatais, de comunicação, de mercado, de ações sociais e de construção das concepções de mundo.

 

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