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“A armadilha do consumo consciente é culpar o indivíduo pela catástrofe ambiental”, diz Sandra Guimarães

Maria Carolina Santos / 12/07/2019

Crédito: Anne Paq/Divulgação

Lançado em 2010, o blog Papacapim é uma deliciosa reunião de receitas veganas. Só de ler os textos, que quase sempre contam também a história até se chegar a aquele prato, já dá água na boca, mesmo de quem é onívoro. Produzido pela potiguar Sandra Guimarães, o Papacapim ensinou a cozinhar a uma geração de vegetarianos e veganos. Mas o sucesso do blog está longe de ser somente as receitas: Sandra fala sobre questões ambientais, política, viagens e a causa Palestina, terra que ela visita regularmente.

Uma das luta de Sandra é desmistificar o veganismo como uma dieta só para quem pode ter um cozinheiro a seu dispor. E mostrar que a luta pelo bem estar animal vai muito além de uma escolha individual. “Estamos disputando o movimento vegano, porque antigamente era um movimento pequeno aqui no Brasil e de repente cresceu. Que bom que cresceu, mas teve um preço a ser pago, que foi esvaziar o veganismo de política. As pessoas pensaram que seria mais fácil popularizar só focando na dieta baseada em plantas”, afirma.

Ativismo vegano: conheça o movimento que se opõe ao capitalismo e luta por justiça social

O outro foco do ativismo de Sandra acontece na causa Palestina. Durantecinco anos promoveu viagens político-veganas pelo território ocupado por Israel,conduzindo ativistas brasileiros. Atualmente, desenvolve com a fotógrafa francesa Anne Paq, o jornalista palestino Ahmad Al-Bazz e o vídeomaker inglês Craig Redmond o projeto multimídia Baladi Rooted Resistence, que mostra agricultores palestinos recuperando a tradição das plantações com sementes creoulas. “Os palestinos só estavam cultivando dois tipos de trigos, que eram de sementes israelenses. Esses agricultores retomaram a tradição local, no que chamaram de agro resistência. É um termo muito forte e bonito”, diz Sandra, que pretende unir as experiências na Palestina com outras formas de agro resistência, como a que ocorre no Sertão nordestino.

Morando há anos na Europa, Sandra Guimarães participou na semana passada do I Encontro Nacional da União Vegana de Ativismo, o Enuva. Entre uma mesa e outra, ela conversou com a Marco Zero Conteúdo sobre os desafios da popularização do veganismo, a ocupação da Palestina, entre outros assuntos.

A luta contra a libertação animal pode ser uma luta vinculada ao capitalismo?

Não, a definição mais utilizada pelo veganismo é a da Vegan Society, que todo mundo ainda usa até hoje essa definição que eles deram: que o veganismo é um estilo de vida que busca excluir na medida do possível a exploração animal da alimentação, do vestuário, do entretenimento. O problema para mim é que o foco está muito no consumo e no estilo de vida. É muito foco no indivíduo e no consumo. É tanto que quando eu falo que eu sou vegana a primeira pergunta é sempre “você come o que?”, “Ah, o seu sapato não é de couro, é de que?”. Eu não uso mais essa definição. Acho que é limitada e não me representa. Eu uso uma definição que eu acredito: que o veganismo é um posicionamento político que se opõe à objetificação e mercantilização dos animais e se compromete com a luta pela emancipação animal. Aí você já foca nos animais, traz de volta o sujeito do veganismo que é o animal. E não o que eu compro e consumo. Tirando essa coisa de “Eu sou um indivíduo mais evoluído, sou melhor que você”. Acho importante o foco no posicionamento político, porque não é uma dieta, não é um estilo de vida. Você se opõe ativamente à opressão. Na prática como você age contra essa opressão, concretamente, dia após dia?

E, dessa forma, fica tudo concentrado no indivíduo.
A armadilha do consumo consciente é colocar a responsabilidade pela catástrofe ambiental no indivíduo. É você com o seu canudo que está poluindo o mar, e não a indústria pesqueira que coloca uma quantidade enorme de plástico nos oceanos com as redes de pesca abandonadas. As indústrias estão poluindo e falam “tome banho rápido”, “feche a torneira enquanto escova os dentes”, mas a pecuária usa muito, muito mais água do que eu vou usar em todos os banhos da minha vida. É uma maneira de se tirar a responsabilidade dos verdadeiros vilões. Então o veganismo liberal vai neste mesmo sentido de que é sua escolha individual, e você está sendo uma pessoa “melhor”. E essa posição de superioridade acaba afastando. Porque as pessoas que estão fazendo esse esforço consciente de despolitizar o veganismo, fazem sempre dizendo que isso é para atrair mais adeptos. Por que se nos associar à esquerda, a direita não vai vir. Se a gente for a favor dos direitos das pessoas LGBT, tem gente que tem problema com isso e não vai vir. Mas quem você quer atrair para o movimento, então? É racista e homofóbico? Mas quem você aliena quando você não se define como antirracista? Você aliena a população negra. Para que lado o movimento vegano vai crescer? É assim que a gente acha que vai veganizar o mundo, sem o povo?

E quais os desafios para se popularizar a dieta vegana no Brasil?
O primeiro desafio é fazer com que as pessoas entendam que o veganismo, a dieta vegetariana, é comer vegetais. E não aquele queijo industrializado vegano que vende no Mundo Verde e custa um rim. Não é isso. Dei uma palestra numa ocupação na reitoria da UFRN e uma estudante falou “é bonito o que você falou, mas não tenho dinheiro para comprar brócolis, não sei onde vende coxinha de jaca”. O maior desafio é que as pessoas entendam que comida vegana é feijão com arroz, farinha, macaxeira, cuscuz, tapioca, batata doce, mungunzá. É espiga de milho, sopa de feijão. Coisas que a gente já come: lógico que todo mundo quer comer uma coisa diferente de vez em quando. Mas é a mesma coisa de dizer “eu não posso ser carnista, porque eu não tenho dinheiro pra comprar caviar, nem lagosta”. Você pode ter uma alimentação carnista e comer barato, e pode ter uma alimentação carnista e comer caro. A mesma coisa é com o veganismo: comer naquela loja de superindustrializados ou feijão e arroz com farinha. Outra coisa é a alimentação orgânica. Nós somos o país que mais usa agrotóxicos no mundo, então todo mundo deveria comer comida orgânica. Mas ser vegano é comer comida vegetal. Óbvio que comer orgânicos é melhor, porém não é um imperativo. Quanto custa uma carne orgânica, um queijo orgânico? Em qualquer comparação, comer vegetais é mais barato. A base da alimentação brasileira é vegetal, principalmente aqui no Nordeste.

Tour na Palestina. Foto: Sandra Guimarães

Em 2005, a Palestina adotou uma série de medidas contra Israel, chamada de BDS. Você pode explicar como funciona o BDS ?
O BDS é uma sigla que significa boicote, desinvestimento e sanções. O boicote é o mais fácil de entender, o desinvestimento é em nível de empresas, que pede que as empresas não invistam em Israel, e sanções, que é em nível de governo, que é mais difícil. Há três tipos de boicote: o econômico, o acadêmico e o cultural. O econômico é não comprar produtos israelenses, o acadêmico é não participar de congressos lá e não fazer parcerias com universidades israelenses, e o boicote cultural é pedir a artistas para que não se apresentem em Israel. Existe desde 2005 e foi um chamado da população civil da Palestina. Isso é muito importante para entender o BDS: não foi de um partido político, de uma organização, não foi Roger Waters (risos). Vários sindicatos, grupos, cooperativas que se juntaram e fizeram esse pedido, inspirados no que aconteceu na África do Sul durante o apartheid. Desde 2005 foram muitas vitórias. Empresas que saíram de Israel, artistas que cancelaram shows. Infelizmente Milton Nascimento não cancelou. mas muito artistas cancelaram, como Shakira e Linn da Quebrada. Mas a maior parte do tempo, a gente coloca pressão no artista, ele cancela, mas não diz que é pelo BDS, porque tem medo de retaliação. Shakira falou, por exemplo, que foi um problema de agenda. Mesmo assim, foi uma vitória pra gente.

O que mudou na Palestina desde que foi adotado o BDS?
O que muda materialmente para o povo palestino se Milton Nascimento não cantar em Israel? Nada. Mas é simbólico: faz com que as pessoas abram um debate e que fique cada vez mais difícil manter essa fachada de democracia. Quanto mais Israel tem medo do BDS, mais eficaz o BDS se torna. Israel não só considera crime o chamado ao BDS dentro de Israel – você pode pagar multa ou até ir pra cadeia -, como conseguiu com o lobby sionista criminalizar a chamada ao BDS em outros países. O primeiro foi a França, onde é considerado um crime de incitação ao ódio racial. Já teve ativistas que responderam a processos por isso. Eu estava morando em Berlim e no mês que eu saí de lá, em maio, a Alemanha colocou uma lei que diz que falar de BDS é antissemita. A gente vê como Israel está desesperada, se está criminalizando até fora é porque está funcionando. Bolsonaro é sionista e adora criminalizar o ativismo, então isso pode chegar aqui no Brasil também.

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Como você acha que essa relação próxima do governo Bolsonaro com Israel pode afetar o ativismo no Brasil?
Pode parecer algo tão longe da gente “por que eu vou me preocupar com a Palestina se a população negra está sendo exterminada aqui?”. Mas a questão Palestina está muito mais perto do que a gente imagina. Há um longo histórico de colaboração militar entre Brasil e Israel, desde a ditadura militar. E continuou. Nos governos Lula e Dilma foram renovados armamentos para o Exército comprados em Israel. Quando teve a intervenção militar no Rio de Janeiro, o topo dos tanques que entraram nas favelas eram de Israel. Para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas foram comprados drones de Israel para patrulhar o espaço aéreo. E não só isso, mas o Brasil também importa de Israel tecnologia de segurança privada e digital. O que acho mais assustador é que o Brasil traz israelenses para treinar a polícia brasileira. É assustador porque Israel é o maior mestre no mundo em reprimir população civil desarmada. A gente pode imaginar que a repressão vai aumentar muito, porque se tem uma coisa que Israel sabe fazer muito bem é isso. E também o controle de segurança. Os palestinos são todos fichados, todos estão em um sistema. Há razões para se ter medo, porque isso pode ser importado. E quanto mais essas relações forem estreitadas, maior vai ser a repressão para o nosso lado. Não é à toa que Netanyahu veio pessoalmente ao Brasil trazer seu apoio. Temos que parar de tratar Israel como um país normal.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com