Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

A coragem e o sonho presentes na pintura de Jeff Alan

Giovanna Carneiro / 16/12/2023

Crédito: Shilton Araújo / Divulgação

Conhecida como a planta que afasta a inveja e o mau-olhado, o pé de comigo-ninguém-pode é um elemento conhecido da paisagem dos bairros periféricos e de muitas cidades da zona da mata e do interior. A folhagem robusta, esverdeada, raiada de branco ou amarelo-claro, e com traços únicos que parecem uma pintura já faz parte do imaginário popular. É um elemento marcante  da relação afetiva da população com o seu território. 

Justamente evocando esse imaginário e criando uma relação de afeto com o público através do acionamento de uma memória sensível, o artista visual recifense Jeff Alan realiza a exposição Comigo Ninguém Pode – A pintura de Jeff Alan, que está aberta para visitação na Caixa Cultural do Recife, localizada no Recife Antigo, até o dia 28 de janeiro de 2024. 

Reunindo 57 obras autorais – 19 delas inéditas –  o artista foi responsável por levar o maior público para prestigiar a abertura de um evento no equipamento público cultural, com mais de mil pessoas presentes no lançamento da exposição, no início de novembro. 

Muito além do grande número de pessoas, a arte de Jeff Alan foi capaz de mobilizar um público formado majoritariamente por pessoas negras e periféricas, saídas do bairro em que o artista nasceu, no Barro, zona oeste do Recife, um feito realmente inédito na cidade, quiçá no estado e no país.

“Foi uma grande realização poder ver uma galera do meu bairro dentro de um equipamento de cultura, muita gente que visitou um museu pela primeira vez graças a nossa exposição. Do Barro, duas vans saíram lotadas com pessoas da minha comunidade que vieram prestigiar o meu trabalho e isso aconteceu porque as pessoas entenderam a importância de ocupar esses espaços e de se enxergarem nas obras”, declarou o artista visual. 

O lançamento da exposição teve recorde de público com mais de mil pessoas. Crédito: Shilton Araújo/Divulgação

Enquanto mulher negra, ao visitar a exposição, que contou com a curadoria de Bruno Albertim, é possível entender o porquê da grande mobilização causada pelas obras de Jeff Alan. Frequentemente, ao entrar no Instagram, é possível encontrar publicações de pessoas negras que não só visitaram a exposição como fizeram questão de relatar suas emoções ao se depararem com uma série de obras com rostos, corpos e histórias negras. É realmente impactante ver a negritude retratada de forma sensível e em um lugar de protagonismo inquestionável.

A falta de representação e de reconhecimento é algo tão comum em um país racista que só aboliu a escravidão há 135 anos, que o encontro com a exposição do artista visual recifense se apresenta como um misto de acalanto, experimentado através da beleza presente nas obras, e inquietação incitada pelo contato direto com as realidades marcadas pelas experiências de vida marcadas pelo racismo que estão sendo retratadas.  

“Esse trabalho surgiu de inquietações minhas. Eu não me sentia representado por quem estava fazendo arte e pelo que estava sendo retratado e me incomodava ser o modo como as pessoas negras estavam sendo retratadas, sempre em último plano, servindo aos brancos, isso mexeu muito comigo e continua mexendo”, revelou Jeff Alan.

O caminho sangrento em busca do céu estrelado

Em uma visita guiada com a equipe da Marco Zero Conteúdo, Jeff Alan falou sobre as inspirações para o seu trabalho, os elementos que são a sua assinatura como artista e a aspiração política presente em suas obras.

Assim que adentramos a Caixa Cultural do Recife, somos capturadas por uma enorme pintura de Jeff que está estampada na parede do museu. Com um olhar intimidador, um jovem homem negro nos vigia de todos os ângulos possíveis. Em seguida, a cor vermelha se apresenta de forma marcante nas obras, o vermelho está presente não só no fundo das telas, como também nos olhos dos personagens retratados por Jeff, personagens esses que são na verdade pessoas reais que cruzaram o caminho do artista e assim se tornaram protagonistas das pinturas. O artista faz o registro das pessoas, através de fotografias, e em seguida inicia o processo criativo da composição da obra.

A exposição segue aberta a visitação até o dia 24 de janeiro de 2024. Crédito: Shilton Araújo / Divulgação

Sejam moradores do seu bairro e de todo o Recife, amigos e familiares, pessoas que encontra e conhece através das redes sociais, personagens de filmes, todos os rostos negros presentes nas telas saem do cotidiano para se tornar arte na parede do museu. Apesar da beleza inquestionável de suas obras, Jeff prefere não afirmar que suas obras são “lindas”.

“Eu prefiro que as outras pessoas digam que minhas obras são lindas, mas mais do que isso, eu não quero que meu trabalho seja visto simplesmente como algo lindo, sabe? Eu tenho uma obra, que está ali bem naquela parede [apontando para a peça] que é uma pessoa em situação de rua com uma garrafa de cola na mão e a pintura foi feita em um pedaço de papel rasgado. E quem vai achar isso lindo? Porque tem uma mensagem ali e muitas obras aqui que vão além da estética, é pra sentir e através desse sentimento eu espero que algo mude. Por que muitas vezes essas pessoas que estão aqui nas obras, que causam comoção ao público, são as mesmas pessoas que são invisibilizadas e ignoradas lá fora”, disse o artista visual. 

Na exposição, as obras estão dispostas através de um caminho circular, que inicia com as obras que têm o vermelho como tom marcante, de acordo com Jeff, esse vermelho representa um “caminho sangrento”. Em seguida, esse vermelho começa a contrastar com o azul forte e imponente, que representa o céu, o sonho, uma vontade de voar e explorar o infinito. O vermelho, além do caminho sangrento, representa também a coragem de seguir até alcançar o céu onde se encontram os sonhos. 

Obra "Ualison Paulo", de Jeff Alan. Crédito: Shilton Araújo / Divulgação

O artista revela que já vive do seu sonho, mas que ainda há um feito maior a ser conquistado: “construir uma escola de arte no Barro”. Tendo como sua maior inspiração sua mãe, Lucilene Mendes, Jeff faz questão de repetir diversas vezes a força dessa figura negra em sua criação e em sua paixão pela arte, que sempre incentivou o filho a pintar. “Quando eu falo de viver de arte não é só porque eu ganho dinheiro para isso, é porque eu fiz disso o meu propósito de vida”, disse o artista visual.

Já a inspiração para o nome da exposição na Caixa Cultural veio também da vivência no Barro, em homenagem ao seu tio que tinha vários jarros de comigo-ninguém-pode em seu bar no mesmo bairro. Além disso, toda a simbologia e significado presente no nome da planta, que fala sobre se manter resiliente e confiante, pois ninguém é capaz de deter seus sonhos.

Quase como uma prova da importância da exposição do artista visual recifense, em um equipamento cultural, no momento de nossa visita, um grupo de professores e alunos da rede municipal de ensino do município de Ipojuca chegou até a Caixa Cultural e nos acompanhou. Atentos, as crianças e adolescentes negros e negras que participavam da caravana se impressionaram com as obras e interagiram com Jeff Alan, que estimulou o diálogo com as obras através de questionamentos sobre as percepções de cada um. 

“É novidade para mim porque as outras exposições que eu fui sempre tiveram muitas pessoas brancas e eu gostei muito de estar aqui, foi uma experiência muito boa. Eu me sinto muito feliz com a minha cor, ela é muito linda e quem pratica o racismo precisa parar”, declarou a estudante Ana Alice, de 14 anos.

Obra "Menino na laje quer ganhar o mundo", de Jeff Alan. Crédito: Shilton Araújo / Divulgação

Além das obras, as crianças também se identificaram com os relatos do artista visual sobre sua trajetória pessoal e profissional, com depoimentos sobre a perda de amigos próximos para a violência armada que assola a vida de pessoas negras da periferia, sobre a necessidade de conciliar trabalho e estudo ainda na adolescência, sobre a pressão estética de não deixar os cabelos cacheados ou crespos crescerem e não poder pintá-los da cor platinada no carnaval – um costume de moradores de periferia – por medo de ser abordado pela polícia, entre outras. 

Ou seja, as pinturas refletem Jeff, que reflete seus semelhantes e, por meio, da identificação as pessoas negras se sentem representadas e compreendidas pelas obras. “Para mim isso é fundamental, trazer cada vez mais pessoas negras para esses espaços que durante muito tempo foram negados para nós, porque essa exposição aqui é grandiosa, mas nós temos potencial para fazer muito mais”, concluiu o artista. 

A exposição é aberta ao público e conta com legendas em braile e QR code com o audiodescrição das peças, que destacam os traços e fenótipos de crianças, jovens e adultos negros que são retratados pelo artista. O projeto possui ainda uma agenda de atividades que abarcam outras linguagens e manifestações artísticas da cultura negra, como dança, literatura, teatro, capoeira e hip-hop, além de visitas guiadas com o artista e curador. A agenda é disponibilizada nas redes sociais da Caixa Cultural Recife e de Jeff Alan.

Uma questão importante!

Se você chegou até aqui, já deve saber que colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossa página de doação ou, se preferir, usar nosso PIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).

Apoie o jornalismo que está do seu lado

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.