Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52
Crédito: Arquivo Pessoal
* Por Ariel Sobral (Marco Zero Conteúdo) e Yara Peres (Eco Nordeste)
Em reportagem especial feita colaborativamente pela Marco Zero e Eco Nordeste, dentro do projeto Acessibilidade Jornalística: o problema que ninguém vê, vencedor do Desafio de Inovação do Google News Initiative (GNI) de 2021, mostramos como o acesso à internet a pessoas cegas e com baixa visão ainda conta com barreiras da falsa acessibilidade
Se você fosse dormir e acordasse sem enxergar, como seria o mundo para você? Pessoas videntes, como geralmente são chamados pela comunidade cega ou com baixa visão aqueles que enxergam normalmente, podem ter dificuldades em imaginar exatamente como seria esta experiência, mas esse é um drama vivido por muitos, especialmente os que recebem um diagnóstico de cegueira ou de baixa visão ao longo de uma vida de vidência.
De acordo com últimos dados do censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2010, o Brasil tem 6,5 milhões de deficientes visuais (com limitações e/ou baixa visão). Deste montante, cerca de 582 mil não enxergam absolutamente nada. O Nordeste concentra o maior número de pessoas com algum tipo de deficiência, com 26,63%. Os estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, com índices de pouco mais de 27% ambos, estão acima da média nacional que é de 23,9%.
Ainda assim, pouco se discute sobre o acesso à informação de qualidade e acessível por pessoas cegas e menos ainda o jornalismo que cobre pautas de interesse deste grupo social, segundo o que revela a pesquisa sobre a oferta e o consumo de conteúdo jornalístico para este público realizada para este projeto. A partir das entrevistas feitas nesta pesquisa, os sites participantes da iniciativa se juntaram para criar reportagens como esta e, também, o LumeCast, podcast em três episódios que têm como público principal as pessoas cegas e com baixa visão, mas que são conteúdos relevantes para quem quer compreender melhor o cotidiano dessas pessoas, através de assuntos como identidade de gênero e de raça, na reportagem abaixo, a autonomia das mulheres cegas e os desafios de fazer um comunicação realmente acessível.
O que significa para quem nasceu ou adquiriu algum nível de cegueira, sua identidade de gênero ou de raça? Como as pessoas cegas vivem a descoberta de suas identidades étnicas, raciais ou de gênero e no que este processo se aproxima ou se diferencia do vivenciado pelas pessoas que enxergam? O entendimento desta consciência sobre si, marcada pela prática de pesquisas e conversas sobre o assunto, nem sempre se aplica a este grupo que ainda luta para acessar informações básicas cotidianas.
Parte desta percepção vem do processo de autodeclaração, ferramenta antidiscriminatória que garante direitos a grupos historicamente “minoritários”, o que representa um estado de consciência que o indivíduo tem sobre si em relação a alguma característica específica, como raça e gênero. Estas descobertas costumam vir a partir do acesso a fontes confiáveis que possibilitam informações sobre essas questões. Por exemplo, apesar do conceito de raça ser frequentemente confundido com o de etnia, os termos representam coisas diferentes. Podemos entender raça como características fenotípicas, como cabelos, traços faciais, a cor da pele etc. Já etnia também considera fatores culturais, como a nacionalidade, religião, língua e as tradições. Mas como é o acesso a pessoas cegas a estas informações?
Por não haver muitos conteúdos acessíveis para pessoas cegas, informar-se sobre questões identitárias pode ser algo solitário. E a falta de acesso é um dos principais fatores que retarda o entendimento do indivíduo, segundo o publicitário pernambucano, que também é uma pessoa cega, Michell Platini. “As pessoas começam a se perceber quando começam a se informar. É daí que se entende quem é, e não só um se reconhecer com um olhar físico, mas um entendimento mais profundo, que visita suas origens, suas sensações, que possibilita se perceber pessoa. E este é o verdadeiro papel da informação, que começa no diálogo sobre algo, e esse movimento é fundamental, inclusive nos processos identitários”, reflete.
Apesar de as lutas identitárias serem pautas de vários grupos sociais, as pessoas com deficiência nem sempre se sentem incluídas no debate. “Percebo uma grande lacuna. No âmbito da pessoa com deficiência se fala pouco da questão racial e, no âmbito dos movimentos negros e das questões raciais, por exemplo, pouco se avança para pautar as questões referentes a uma pessoa negra com deficiência. A figura da pessoa com deficiência se dilui nesse debate. Muitas vezes não somos chamados para debater políticas públicas. É como se nós não existíssemos”, afirma o jornalista cego baiano Ednilson Sacramento.
Os dois universos parecem não se encontrar nem nos debates e tão pouco nas pesquisas. Dados IBGE de 2018 constataram que 56% da população brasileira se identifica como negra, mas quanto dessas são pessoas cegas? Em contato com o Instituto de Cegos Antônio Pessoa Queiroz, no Recife, e com a Associação Pernambucana de Cegos (Apaec), atrás de dados que pudessem contemplar este recorte ao menos na capital pernambucana, não tivemos retorno desses marcadores que parecem não existir.
“Se você prestar atenção, a pessoa com deficiência vem de um passado de exclusão total, de exclusão da própria cidadania. Antes de discutir direito à educação, saúde e trabalho, começamos a discutir o direito à cidadania. Tivemos que brigar por uma carteira de identidade, porque, por muito tempo, nossas famílias nos escondiam da sociedade. Hoje, uma pessoa negra e com deficiência é duplamente discriminada”, declara Ednilson: “não existir nas pesquisas e nas pautas também é uma forma de discriminação”.
Nascer com deficiência visual parece ser menos difícil quando a cegueira passa a ser uma realidade depois de anos de vidência. Foi o que aconteceu com o estudante universitário Rafael Moreira que, em abril de 2019, recebeu o diagnóstico de atrofia no nervo óptico, devido a um coágulo. Diante da nova realidade, o estudante encontrou na tecnologia dos aplicativos a autonomia que precisava para se reintegrar ao novo mundo. “Desde o diagnóstico até os dias de hoje, consegui 90% da minha autonomia com o uso da tecnologia”, comenta. Depois de descobrir a linguagem em braile, para ele, os dois tipos de comunicação se complementam. “O braile foi uma paixão à primeira vista. Acho que o uso dela deve ser paralelo ao conhecimento de ferramentas para acessibilidade digital”, reforça.
A tecnologia é de fato uma aliada na contemporaneidade. Não só as redes sociais como os aplicativos de paquera, por exemplo, são ferramentas modernas para encontros, os famosos “dates” entre grupos de pessoas que buscam um novo parceiro ou parceira. Mas quando uma pessoa cega, que tem os direitos de qualquer outra pessoa, busca este tipo de ferramenta para sua integração encontra barreiras longe de uma acessibilidade real.
“Os aplicativos e sites de paquera não têm acessibilidade e isto é um direito nosso também. As pessoas acham que o deficiente, em geral, não pode exercer a sua sexualidade. Os desejos não mudam de um dia para o outro, independentemente da sua deficiência. Eu posso ter uma vida como qualquer outra pessoa, apesar das minhas limitações”, destaca.
Em pesquisa divulgada em julho do ano passado pela empresa BigDataCorp, em parceria com o site Movimento Web para Todos, que avaliou 2.369 aplicativos mais baixados na loja da Google, a Play Store, revelou que menos de 1% dos sites passaram em todos os testes de acessibilidade digital.
Vivendo com limitações, Rafael enfrentou as barreiras do mundo físico e descobriu as dificuldades em viver no mundo real. Um ponto levantado pelo estudante diz respeito aos restaurantes físicos e os famosos aplicativos de entrega de comida que, segundo ele, dizem ser acessíveis mas, na verdade, sequer disponibilizam um cardápio em linguagem braile. “Já fui em grandes redes, restaurantes famosos e isso não existe nestes lugares. Também nunca consegui pedir comida por estes aplicativos. Para mim eles são totalmente inacessíveis”, lamenta.
Com a sua nova condição de vida limitada pela deficiência visual, Rafael reforça que as oportunidades são determinantes para uma inclusão efetiva na sociedade. “Não somos coitados. Temos muitos talentos. Coloquem pessoas reais para viverem coisas reais, como um ator cego para um personagem cego, por exemplo. Quero transformar outras vidas como a minha foi transformada”. Atualmente, ele é repórter do programa quinzenal Ponto Cego, da TV Assembleia, do Estado do Ceará, disponível no YouTube, onde mostra relatos e alternativas para pessoas cegas e com baixa visão.
Saiba mais:
Esta é uma produção coletiva realizada em parceria pelas mídias independentes do Nordeste: Marco Zero Conteúdo (PE), Eco Nordeste (CE), Mídia Caeté (AL), Olhos Jornalismo (AL), Agência Retruco (PE), Agência Diadorim (PE), Revista Afirmativa (BA), Agência Saiba Mais (RN), Newsletter Cajueira (NE) e Malamanhadas (PI), na edição de podcasts.
Todos os produtos do projeto Acessibilidade Jornalística: um problema que ninguém vê estão disponíveis no www.lumeacessibilidade.com.br.
Uma questão importante!
Colocar em prática um projeto jornalístico ousado como esse da cobertura das Eleições 2022 é caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossa página de doação ou, se preferir, usar nosso PIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).
Nessa eleição, apoie o jornalismo que está do seu lado.
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.