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“A escola militarizada é a escola que nega as diferenças”, afirma professora da UnB

Giovanna Carneiro / 24/08/2024

Crédito: Priscilla Burh/AMCS MPPE

“Não tenho dúvida de que a militarização é um espaço de disseminação ou de impedimento de que a nossa sociedade seja livre para traçar debates importantes”. A afirmação é de Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisas sobre Militarização da Educação.

Durante o V Encontro Nacional das Promotoras e Promotores de Justiça de Educação, que aconteceu na Procuradoria Geral da República em Pernambuco, no Recife, a pesquisadora participou de uma mesa de debates sobre as escolas Cívico Militares, e alertou como este modelo de ensino fere princípios constitucionais fixados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e pelo Plano Nacional de Educação.

Também presente no debate, o promotor João Paulo Faustino, do Ministério Público de São Paulo falou sobre o processo que corre no Superior Tribunal Federal para impedir que a Lei Complementar Estadual 1398/2024-SP, que institui o programa de escolas Cívico Militar no estado de São Paulo, seja implementada.

“O nosso entendimento, do grupo de atuação especial de educação, é da absoluta inconstitucionalidade dessas leis e do próprio modelo cívico-militar. Eu diria que, além de uma afronta histórica ao processo de redemocratização, esse tipo de tentativa de introduzir na instituição escolar valores que são próprios das corporações militares, afronta o que o ministro Ayres Brito, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, chamava de mega-princípio da democracia. Quer dizer, a escola constitucionalmente prevista é uma escola das liberdades, da diversidade, da pluralidade e é um lugar onde as crianças, adolescentes, precisam aprender o exercício da democracia pela experiência”, afirmou o promotor.

Em 2019, o governo Bolsonaro criou o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (Pecim), que permitia a transição de escolas públicas para o modelo cívico-militar e propunha que educadores civis ficassem responsáveis pela parte pedagógica, enquanto a gestão administrativa passava para os militares. De acordo com dados do Ministério da Educação (MEC), até 2022, cerca de 200 escolas aderiram ao programa, o que representa aproximadamente 0,1% do total de escolas públicas do país, que tem 178,3 mil instituições, segundo o Censo Escolar. Porém, em julho de 2023 o governo Lula encerrou o programa.

O Governo Estadual de Pernambuco não chegou a adotar o Pecim, mas alguns municípios aderiram ao modelo de escola cívico-militar e três escolas municipais implantaram o programa. São elas: Escola Municipal Natividade Saldanha e Escola Municipal Vereador Antônio Januário, ambas em Jaboatão dos Guararapes e Escola João Batista Cruz Barros, em Arcoverde.

A promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio e Defesa da Educação do Ministério Público de Pernambuco, Isabela Bandeira, afirma que o MPPE fiscaliza o modelo de ensino cívico-militar e os municípios que optam por implementá-lo: “se o promotor tiver conhecimento e entender que aquele modelo de escola, de alguma forma, pode ferir as diretrizes da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação], ele pode abrir um procedimento e investigar se está havendo ou não alguma ilegalidade”.

A Marco Zero entrevistou Catarina de Almeida dos Santos sobre as escolas cívico-militares no Brasil e a ilegalidade deste modelo de ensino.

Confira os principais trechos:

Marco Zero Conteúdo – Como surgiu a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação e como ela tem atuado?

Catarina de Almeida Santos – A gente trabalha muito com a questão da garantia do direito à educação e a militarização das escolas é um processo de impedimento da garantia desses direitos .Então, além de pesquisar o tema, a gente trabalha muito para impedir que o processo se expanda e desmilitarizar as nossas escolas e olhar, inclusive, todas as violências e violações que a gente tem tido no país decorrente desse processo de militarização.

A militarização da educação no Brasil começa lá no final da década de 90. E ela começa, sobretudo, ali no estado de Goiás, depois vai se expandindo. A partir de 2019, com a criação, com o decreto que criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívicas e Militares no Ministério da Educação e depois com a criação do Programa Nacional das Escolas Cívicas e Militares, esse negócio ganhou uma outra dimensão e começou a se expandir muito. E aí, a gente entendeu que o tema precisaria também ser estudado e muito mais pessoas se interessaram pelo tema, tanto na imprensa como na sociedade, como também nas instituições de pesquisa.

A gente está falando de entender não só o que está acontecendo dentro das escolas, mas de cobrir em quais lugares a gente tem escola militarizada. Quando a gente estava falando das redes estaduais, você tem 27 redes que aderiram a este modelo, mas quando você está falando dos municípios, você tem quase 6 mil. Então, para a gente era muito importante que não só a gente estivesse pesquisando, levantando dados sobre isso, mas que também houvesse pessoas entendendo nas localidades, nos diferentes territórios, como é que isso estava acontecendo. Por isso nós criamos a rede.

Você acredita que o governo Bolsonaro e o debate da “Escola Sem Partido” contribuíram para uma expansão das escolas cívico-militares?

Na verdade, o movimento da Escola Sem Partido vem antes do próprio Bolsonaro. Digamos que o Bolsonaro veio construindo essa lógica do nome, dessa ideia que está por trás desse bolsonarismo, que desencadeou, inclusive, na sua eleição.

Porque o Escola Sem Partido, os fundamentos, as discussões que estão por dentro do Escola Sem Partido, essa é a escola que não toma partido, não é uma escola sem partido no sentido de ser partido político, essa é a escola que não toma partido das violências e violações que atravessam o nosso país. Essa é a escola que, em tese, no fundo, é uma escola de partido único, é uma escola do partido do conservadorismo, da conservação da estrutura da nossa sociedade violenta, com muita violência de gênero, de orientação sexual, com muita violência de raça. Então, é uma escola que não pode debater os temas que atravessam a nossa sociedade no sentido de superar essas violências e violações de direitos. E ela começa muito com a lógica de impedir o trabalho da educação sexual nas escolas, com a ideia, trazendo para o amplo discurso da ideologia de gênero, de que a educação sexual traria mamadeira de piroca para as escolas, que menino não seria mais menino, menina não seria mais menina. É esse imbróglio todo que eles foram criando em torno do Escola Sem Partido, e que, inclusive, deu muita visibilidade ao Bolsonaro e aos seus grupos.

No fundo, a militarização é um dos braços da lógica do conservadorismo. A militarização, o Escola Sem Partido, o homeschooling, esses debates conservadores todos, estão tudo dentro da mesma lógica, que é de conservar essas estruturas de sociedade. E aí, obviamente, que quando você tem a frente da gestão do Estado brasileiro, alguém com essas defesas, e que traz essas discussões para o campo da política nacional, esse processo da militarização e do conservadorismo se expande.

Nós podemos dizer então que a escola é um espaço de embates importantes para pensarmos em uma construção mais progressista para o país?

A educação básica pública brasileira tem quase 40 milhões de estudantes. Isso é quase um quarto da população brasileira. Então, se a gente soma a isso os profissionais de educação e os familiares, a gente pode dizer que a sociedade brasileira funciona em torno da escola. Se essa escola pública funciona, ela coloca em xeque essa estrutura de sociedade que a gente tem. Se essa escola pública debate questões raciais, questões de gênero, as questões de desigualdade social, desigualdade de gênero, essa escola vai formar pessoas que não vão se conformar com essa estrutura de sociedade. Não tenho dúvida de que a militarização é um espaço também de disseminação ou de impedimento de que a nossa sociedade seja livre para traçar debates importantes.

Então, aqueles que querem conservar essa estrutura de sociedade, eles se organizam para controlar a escola. E aí ela vai ser controlada no meio das avaliações de larga escala, com a ênfase de que a escola está para obter resultados no IDEB [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] e não para formar pessoas, aí vem militarização, aí vem homeschooling, aí vem escola sem partido, aí vem instalação de artefatos, de identificadores faciais, câmaras de vigilância. Então, tem todo um processo de controle da escola, de controle dessa escola, da juventude, das crianças e jovens que estão nessa escola, do que se pode ou não pode trabalhar nessa escola, que tem a ver com manter a estrutura da nossa sociedade, que é misógina, que é racista, que é patriarcal, que é socialmente desigual, que é de concentração de renda, de poder.

Quando a gente está falando da militarização das escolas ou da escola sem partido, a gente está falando desse movimento de controlar a escola pública no Brasil, se eu não posso fechar a escola pública, eu começo a selecionar de diferentes formas quem fica dentro dela, como fica, o que estuda, o que não estuda.

Diante disso, quais seriam então os riscos sociais da militarização das escolas públicas?

A escola pública, sobretudo, é uma escola sempre em disputa. O processo educativo está sempre em disputa. E aí, sempre que eu aponto os problemas das escolas militarizadas, eu sempre digo que não é que as outras escolas estejam tranquilas e funcionando como elas devem ser. Mas elas estão sempre sendo disputadas. Você tem as crianças, os jovens e os adolescentes, você tem um grupo de professores brigando dentro dessas escolas. Você vai ter todos esses grupos também com ideias conservadoras, não apenas educadores progressistas, mas as ideias estão ali disputando. Quando a gente chega na escola militarizada, ela é uma escola muito mais controlada. Ela é uma escola em que se tenta interditar o debate e interditar a disputa.

Qual é o nosso grande debate na escola pública? É para que essa escola seja a escola que inclui. Essa escola que se adapta para atender os diferentes. Não é que ela já esteja fazendo isso, a gente está brigando para que ela faça. E para ela fazer isso, ela precisa inclusive de mais professores com formação inicial e continuada, concursados e não cheios de contratos precarizados, e sim com condições de trabalhar. Para fazer essa escola que atenda aos diferentes, essa escola precisa ter condições.

A escola militarizada faz o inverso. Ela estabelece um modelo de escola e as outras pessoas e os estudantes precisam se adequar a ela. Aqueles que não se adequam não podem ficar nessas escolas. Então, ela é o oposto da escola pública. A escola militarizada é a escola que nega as diferenças, é a escola para aqueles que se adaptam. E se adaptam a um modelo pré-estabelecido de comportamento, de corpo, de cabelo, de vestimenta, de modelos de aprendizagem. Então, ela deixa de ser a escola de todos os públicos. E ela vai ser a escola de um público muito específico, que é o oposto da escola pública, que abrange todos os públicos.

Não por um acaso os grupos que defendem a militarização das escolas e as escolas sem partido atacam o próprio Paulo Freire. Porque o Paulo Freire sempre defendeu a pedagogia da autonomia, pedagogia do oprimido. Então, é tudo aquilo que eles não querem que aconteça.

Por que este modelo de ensino deve ser configurado como ilegal no Brasil?

Porque quem estabelece as diretrizes nacionais de educação é a União. A lei que a gente tem, não tem escola militarizada. A escola militarizada é uma espécie de modalidade educativa e criar modalidade educativa é da competência da LDB, que é de competência da União.

Então, a gente não tem lei nacional que tenha a previsão de escola militarizada. Por isso, os estados e municípios não poderiam criar escolas militarizadas. Se a gente quiser pegar uma jurisprudência, por exemplo, o STF determinou aos estados e municípios que criaram homeschooling que essas leis são inconstitucionais. E são inconstitucionais porque eles não têm poder, não é competência deles criar modalidades educativas. Então, se eu quiser aplicar a mesma jurisprudência para a militarização, vai no mesmo sentido. É uma modalidade educativa e os estados e municípios não têm competência para fazer isso.

Porém, os estados e municípios estão fazendo isso, alguns com leis aprovadas nas Casas Legislativas e os outros por portaria, por termos de cooperação. Então, vão criando as coisas sem nenhuma base legal nisso. Inclusive, a lei de São Paulo está suspensa, até que o STF julgue a constitucionalidade ou não do processo de militarização. O que esperamos é que a resolução deste caso possa abrir precedentes para outros casos no Brasil.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco.