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Um vaqueiro, Bahmanyar, Célio de Almeida, Baltazard e Alzira de Almeira (de costas). Crédito: Acervo A. de Almeida
Exu (PE) – Foi no que hoje é um conjunto de ruínas e casas por trás do memorial criado por Luiz Gonzaga, perto da entrada de Exu, que uma parte importante da ciência em Pernambuco começou a ser construída. Importante, mas esquecida: quem sabe ou lembra que Pernambuco foi um dos estados mais atingidos pela epidemia de peste do século 20? Sim, a mesma doença que séculos antes devastou a Europa e que se acredita que já matou mais de 200 milhões de pessoas.
E foi também em Exu que descobertas científicas importantes foram feitas para entender melhor a doença, que até hoje desafia cientistas.
Uma peça-chave para entender o que foi a epidemia de peste em Pernambuco – e no Brasil – é a pesquisadora emérita da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-PE) Alzira Almeida, coordenadora do Serviço Nacional de Peste, que há mais de 50 anos estuda a doença.
Andando nas ruínas do que um dia foi o ousado Plano Piloto de Peste em Exu, ela conta que o projeto tinha o intuito de responder a uma grande questão: havia peste silvestre no Brasil? Ou seja, os roedores e pulgas silvestres participavam do intrincado processo de transmissão da bactéria Yersinia pestis para o ser humano? Por muito tempo, se achou que apenas os ratos domésticos carregassem a doença.
Para responder essa questão, durante sete anos, foram realizados em Exu estudos sobre a peste, sob orientação da equipe francesa e iraniana do Instituto Pasteur. O estudo abarcava diferentes disciplinas, como a epidemiologia e a zoologia. “Se trabalhou com roedores para identificar os que existiam na região, o papel dessas espécies, se eram sensíveis ou resistentes à peste, quais eram as pulgas vetores. E também se observou os efeitos das modificações climáticas, ao longo do tempo, sobre a doença nos roedores e nos casos humanos”, conta Alzira.
Os surtos de peste com mais casos e mortes ocorreram em Pernambuco antes do desenvolvimento dos antibióticos e das sulfas, medicamentos que chegaram ao Brasil nos anos 1940 e fizeram despencar a letalidade da doença.
No final dos anos 1920, o então próspero município de Triunfo viveu uma das maiores epidemias do estado, com mais de mil casos.”É um município com um histórico triste de peste: era uma cidade muito próspera até a década de 1920, tanto que se vê construções muito bonitas, mas em 1926 eclodiu uma epidemia de peste, que destruiu a economia local e a cidade demorou a se reerguer”, conta Alzira Almeida. Em meados dos anos 1930, Exu também perdeu muitas vidas, principalmente no distrito de Tabocas.
Aliado aos antibióticos, o controle de roedores nas áreas urbanas, o uso dos repelentes e inseticidas corretos e a limpeza dos ambientes controlaram a doença. Nos anos 1950, se pensou até que a peste estava erradicada de Pernambuco. Mas em meados dos anos 1960 os casos voltaram a aparecer e crescer – e nos mesmos municípios atingidos nas décadas anteriores.
“Na época, estava havendo epidemias em vários países do mundo. O Brasil, na década de 1960, era o terceiro país do mundo em números de casos de peste, atrás do Vietnã, em plena guerra, e da Birmânia”, conta a pesquisadora.
Pelos dados oficiais, de 1935 até 2005, a epidemia de peste atingiu 7.050 pessoas no Brasil, matando 1.134. Porém, esses números, principalmente das primeiras décadas, são considerados por pesquisadores como subnotificadoseincompletos.
Eram mais de 600 casos por ano no Brasil. “Para peste, é um número muito alto. Não podemos comparar com os números da covid-19, por exemplo, porque o óbito da peste pode ser muito rápido, em menos de 72 horas, e pode “epidemizar” também muito rápido. Um único caso de peste pneumônica, que é a que afeta os pulmões, já tem potencial para causar uma epidemia”, diz Alzira Almeida.
E Pernambuco era o estado onde havia o maior número de casos nos anos 1960. Os registros foram tantos que o governo brasileiro, através do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), pediu ajuda à Organização Mundial da Saúde (OMS), que enviou o pesquisador francês Marcel Baltazard, que havia dirigido o Instituto Pasteur do Irã. Especialista em raiva e peste, Baltazard percorreu o interior de Pernambuco em abril de 1965, acompanhado do então presidente do Instituto Aggeu Maggalhães, Frederico Simões Barbosa.
“A escolha de Exu foi porque lá parecia ser um foco fechado de peste, que se poderia estudar devido a barreiras ecológicas em torno da área. A cidade de Exu fica localizada no pé da serra do Araripe, uma chapada sedimentar com duzentos quilômetros de extensão e quarenta de largura, e a uma altitude de aproximadamente setecentos metros. No sopé dessa chapada, que é uma zona agrícola, tinham os brejos, onde ocorriam os casos de peste. Historicamente, desde 1917, os primeiros casos de peste aconteceram em Exu. Essa chapada era circundada pela caatinga, pelo sertão” – Célio Rodrigues de Almeida, biólogo, em depoimento à Fiocruz e UFPE
A expedição de Baltazard deu as bases para a implementação, dois anos depois, do Programa de Peste no Brasil. Foi em Exu que consideraram o melhor local para estudar a peste, pelo número de casos, a geografia e a existência das instalações de uma escola agrícola nunca usada. Surgia assim o Plano Piloto de Exu, o primeiro laboratório de peste do Brasil.
Trabalhando com Baltazard, havia também consultores da França e do Irã,notadamente os médicos iranianos Younes Karimi e Mahmoud Bahmanyar, que fizeram algumas missões a Exu durante os sete anos do projeto. Junto com a equipe brasileira – que contava com Alzira Almeida e o biólogo Célio Almeida, marido dela – os trabalhos na Chapada Araripe colaboraram com importantes descobertas sobre a peste.
Uma delas foi a resistência da pulga de roedores (Xenopsylla cheopis) e a pulga “humana” (Pulex irritans) a um tipo de de classe de inseticidas (os organoclorados), que era inclusive entregue pelo governo aos moradores de áreas de foco de peste. O grupo também ajudou na criação de uma metodologia para um teste rápido.
A peste – É uma doença que afeta humanos e outros mamíferos. É causada pela bactéria yersinia pestis e geralmente é contraída pelos humanos após serem picados por uma pulga de roedor que carrega a bactéria. É possível se contaminar também ao manusear um animal infectado. A peste é famosa por ter matado milhões de pessoas na Europa durante a Idade Média. Hoje, os antibióticos são muito eficazes contra a doença. Sem tratamento imediato, a peste pode levar à morte.
A peste pode se apresentar de três formas:
Bubônica – É a mais comum. Ocorre quando a pessoa é picada por um pulga infectada e a bactéria se multiplica nos linfonodos, geralmente o mais perto da picada, que ficam inflamados, formando os chamados bubões. Há febre alta, calafrios, dor de cabeça e fraqueza, entre outros sintomas.
Septicêmica – Pode ocorrer por conta de picadas de pulga e manipulação de animais doentes ou ainda como uma complicação da bubônica. Um sintoma característico é a necrose de extremidades do corpo, como dedos dos pés e das mãos.
Pneumônica – É a mais grave. Ocorre tanto como uma complicação dos outros tipos, como também pode ser pela manipulação de animal morto. Pode passar de pessoa para pessoa com extrema facilidade, por gotículas e aerossóis da tosse e da fala. Sem tratamento, mata quase todos os doentes. O tratamento com antibióticos adequados deve ser feito nas primeiras 24h de sintomas.
A descoberta mais importante feita em Exu, contudo, foi a confirmação de que roedores nativos e outros pequenos mamíferos são responsáveis pela conservação da peste na natureza. Antes, havia uma forte corrente que defendia que apenas os ratos domésticos carregavam a bactéria. Foram décadas de controvérsia sobre o assunto. E décadas focando o combate à doença apenas nos ratos domésticos.
Essa linha de pensamento ganhou mais força quando, em 1940, o pestólogo chileno Atílio Machiavello Varas, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), fez estudos no Brasil e refutou a ideia de peste silvestre, culpando apenas os ratos (Ratus rattus).
Na década seguinte, outro pestólogo estrangeiro veio para Pernambuco. O argentino José Maria de la Barrera visitou várias cidades, como Triunfo, e concluiu o contrário: sim, havia contaminação de peste nos roedores silvestres. Seu relatório, no entanto, circulou pouco, não foi publicado e não diminuiu as dúvidas do Ministério da Saúde.
Na época que chegou a Pernambuco, Baltazard, que dirigia o departamento de epidemiologia do Instituto Pasteur de Paris, era a maior autoridade do mundo sobre o estudo da peste. Junto com Karimi e outros pesquisadores, já havia comprovado o papel dos roedores silvestres na transmissão da peste em epidemias no Curdistão e no Azerbaijão.
Baltazar queria vir passar três semanas em Pernambucom mas acabou ficando três meses, com um salário mensal de 900 dólares pagos pela OMS. Viria outras vezes, assim como Karimi e Bahmanyar.
A convivência dos estrangeiros com a equipe brasileira nem sempre foi fácil. Em carta, Bahmanyar reclamava aos superiores de que não havia pesquisadores cultos: queria alguém que falasse inglês e francês. Também era difícil conseguir funcionários qualificados que quisessem ir morar em Exu. Não havia energia elétrica na cidade em 1967 – o plano piloto usava um gerador a diesel – e, até hoje, o abastecimento de água na cidade é problemático.
Exu também passava por um período violento de guerra entre as famílias Saraiva, Alencar e Sampaio, que fez até Luiz Gonzaga levar o pai Januário para o Rio de Janeiro. Apesar de tudo isso, o empenho da equipe de brasileiros era enorme. Não demorou para Alzira e Célio caírem nas graças de Bahmanyar. “Meus colaboradores, especialmente Célio e Alzira, estão me ajudando extraordinariamente e aprendendo avidamente todas as fases do trabalho”, escreveu ao diretor do INERu, José Rodrigues da Silva.
Poucas semanas depois de chegar em Exu, o iraniano conseguiu isolar a Yersinia pestis em um Bolomys lasiurus, um pequeno roedor comum na Caatinga e no Cerrado. Vinte dias depois, um caso da doença em humanos foi descoberto em Exu.
As espécies de roedores da caatinga e doença
Das quase 2 mil espécies de roedores catalogadas no mundo, cerca de 230 albergam naturalmente a Yersinia pestis. Mas somente de 30 a 40 espécies servem como reservatórios básicos ou primários, com as demais atuando como reservatórios secundários, assegurando a manutenção e a difusão da doença.
O pequeno pixuna (Necromys lasiurus) é considerado o principal responsável pela epizootização – o conceito de epidemia aplicado aos animais – da peste nos focos do Nordeste, por ser também um dos roedores silvestres mais numerosos.
As famílias de roedores caviidae e echimydae também têm importância epidemiológica, tanto para a epizootização como para a manutenção da bactéria. O preá é relativamente resistente à Y. pestis, enquanto o punaré é extremamente sensível.
O médico infectologista Celso Tavares, falecido em 2020, escreveu a tese de doutorado dele sobre o Plano Piloto de Exu. É de onde tiramos as informações sobre as cartas dos pesquisadores que estão nesta matéria, por exemplo. Na publicação, se explicita que os brasileiros não tinham acesso aos relatórios de Bahmanyar e de Karimi e que as publicações de Baltazard “compunham-se basicamente de descrições e comentários”. Os brasileiros chamavam as anotações de “romance de Baltazard”. Havia também muitas disputas entre os pesquisadores.
Em 1971, Baltazard morreu de repente. “…O que fez com que aquele patrimônio se perdesse entre as querelas e o desinteresse do DNERu/SUCAM, Bahmanyar, Karimi e Mollaret (sucessor de Baltazard)”, escreveu Tavares. O último relatório de Baltazard sobre Exu só foi publicado em 2004, graças a Alzira.
Muito além do trabalho científico dos estrangeiros, o Plano Piloto de Exu foi importante para a formação de técnicos e pesquisadores da peste no Sertão. O biólogo Francisco Gomes começou lá varrendo o chão. Terminou pesquisador. Para fazer a graduação em biologia, ia todo dia para o outro lado da Chapada do Araripe, no Crato, em um ônibus fretado por Luiz Gonzaga para ajudar os estudantes de Exu. Só no lado cearense havia faculdade – até hoje é assim.
Trabalhou como “guarda de endemias” capturando roedores na caatinga. Também atuou fazendo punção nos bubões – bolhas resultantes do inchaço doloroso do linfonodo, que atinge os tecidos da axila ou da virilha – dos acometidos pela peste bubônica. Nunca teve medo de se contaminar. “Só fui pensar nisso na verdade quando chegou a covid-19. E aí me lembrei da época da peste e de como não passava na minha cabeça essa preocupação”, afirmou. Apesar de ter tratamento eficaz, a peste bubônica é uma doença muito dolorida. “Lembro que quando ia coletar o material dos bubões, as pessoas deliravam de dor, até desmaiavam”, lembrou.
Também moradora de Exu, Mirtes Saraiva era uma estudante do colegial quando foi trabalhar no laboratório de peste. Só ela e Alzira de mulheres. Ficava com receio apenas quando tinha que acompanhar a captura das pulgas: se passava um pente fino nos roedores, levando as pulgas a caírem numa vasilha com água e ficarem imobilizadas. Mas o sentimento que lembra da época não é de medo, mas de orgulho de trabalhar ali. “Na cidade, todos me tratavam com respeito. Me agradeciam por estar ajudando a fazer um trabalho que beneficiava a região, principalmente os mais pobres, e ajudava a nos livrar de uma doença tão terrível”.
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Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org