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José Carlos Marçal, de 53 anos, é professor de filosofia do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Sua voz potente pode ser ouvida até nos corredores do Departamento de Ciências Sociais ou de História, onde dá aulas de História da Filosofia, Epistemologia e Ética. Além disso, mantêm grupos de estudo do Marxismo e Pós-Modernidade. Também é romancista e poeta.
Nas folgas das aulas, pode ser encontrado nos bares do pátio de Santa Cruz ou do Mercado da Boa Vista, centro do Recife, seu reduto existencial, sempre com algum amigo ou um livro.
Se esquecer o celular em casa, J.C. Marçal, como é mais conhecido pelos alunos, não vai sofrer. Terá a si mesmo como companhia. Ele nunca teve contas em redes sociais. E nem vai ter.
“Ao compreender a fantasia infantil que essas ferramentas fomentam na cabeça das pessoas, achei muito mais saudável me manter distante dessa pseudo realidade”, conta. Nem mesmo de grupos de WhatsApp ele participa.
A partir de fontes filosóficas diversas, e com o refinado senso de que filosofia e vida vestem a mesma camisa, ele acredita que as redes sociais seguem a lógica da produção capitalista , por ter como intuito fundamental a transformação das existências das pessoas – suas vidas pessoais – em produto de consumo de massa.
Enfim. Para ele, a “publicação entorpecida das existências” não é um fenômeno espontâneo, mas sim um novo marco de exploração capitalista que ele denomina de “Indústria Existencial”.
Ele está terminando um artigo intitulado A instância da tecnociência no Capitalismo – a dimensão dominadora da lógica instrumental tanto na produção quanto nos diversos aspectos da cultura, e conversou com o jornalista Samarone Lima, antecipando alguns pontos de suas reflexões.
Marco Zero – Seu mestrado foi sobre Mestre Eckhart, um pensador da Idade Média, e Heidegger. O doutorado, sobre a relação entre Cabala, neoplatonismo, mística medieval e o pensamento de Heidegger, o criador do existencialismo. Como você chegou a esta expressão” Indústria Existencial”?
J. C. Marçal – Tenho um grupo de estudos na UFRPE intitulado Marxismo e Pós Modernidade. Trata-se de compreender a contemporaneidade a partir do Marxismo e de uma gama de pensadoras e pensadores: Lélia González, Silvia Federici, Umberto Galimberti, Hottois, Michel Foucault, Han, Adorno e Heidegger. A questão da técnica surge como um ponto crucial nesse debate. A partir desses estudos, percebi que a lógica da industrialização é a lógica da padronização do consumo e seu incentivo massivo.
E como isso afeta a cultura?
A cultura se transforma em indústria cultural. O sexo em indústria pornográfica, a alimentação, em indústria alimentícia, a religião, em indústria religiosa. Essa lógica instrumental se vale da tecnociência – a ciência usada com o intuito de produção de tecnologias – para mapear e criar espaços de exploração, padronizando os gostos, massificando a cultural em todas as suas esferas.
Um exemplo simples: raramente alguém vai ler a Ilíada de Homero, mas quase todos irão ver Tróia com Brad Pitt. Na esquizofrenia própria desse modelo de produção, é preciso conquistar novos espaços, novos mercados.
E qual seria a lógica das redes sociais?
O advento das redes sociais não é, como pensa Byung-Chul Han, uma interiorização espontânea dos processos de dominação do biopoder como preconizado por Foucault. Ao contrário, o capitalismo trabalha incessantemente na manutenção, expansão e melhoria dessas técnicas de dominação. As redes sociais, portanto, seguem a lógica da produção capitalista por ter como intuito fundamental a transformação das existências das pessoas – suas vidas pessoais – em produto de consumo de massa.
A publicação entorpecida das existências não é um fenômeno espontâneo, mas sim um novo marco de exploração capitalista que denomino de Indústria Existencial.
As pessoas parecem entrar numa obsessão doentia por postagens e “likes”…
A tecnociência irá operar fervorosamente no Instagram, X, Facebook, WhatsApp etc, para que esse mesmo entorpecimento seja mantido por uma ânsia doentia de publicização. O indivíduo só sente que existe – nessa verdadeira rede de sentido – quando compartilha as coisas mais banais: sua comida, relacionamentos, viagens, agruras da vida, festas, conquistas etc. Tudo é passível de ser publicado sem pudor algum. O próprio corpo se transforma em produto de desejo público, ou seja, a existência se transforma em fetiche porque se transforma em mera mercadoria de consumo para todos sem distinção.
“O trabalho hora zero se instaura nessa relação, pois todos são facilmente encontrados a qualquer hora de qualquer dia e sem desculpas”
Mas isso tem um preço, não? Muita gente parece perder uma conexão com o real.
O cansaço que essa atividade acarreta conduz às mais diversas frustrações, porque não encontra lastro no sentido real da vida: a fantasia infantil se transforma no guia desse mercado. Além do mais, o trabalho hora zero se instaura nessa relação, pois todos são facilmente encontrados a qualquer hora de qualquer dia e sem desculpas, pois a produção modela, também, a moral.
A não utilização das redes sociais, no seu caso, é uma forma de seguir um pensamento filosófico?
Não adianta criticar o sistema e seus mecanismos de controle e ser parte dele. Evidente que compreendo que os tentáculos desse mesmo sistema são tão complexos que muita gente ganha a vida graças a essas mesmas redes sociais. Como não preciso delas para sobreviver, não tenho interesse que ninguém saiba absolutamente nada de minha vida. É muito mais saudável me manter distante dessa pseudo realidade.
Não te incomoda esta espécie de “anonimato”?
De fato, para mim, ser incógnito é muito mais saudável e me aproxima de verdade das pessoas que gosto e que prezo ter contato. A fotografia e os vídeos se transformaram na obsessão do Século XXI, quase como um vaticino dado por Walter Benjamin. O valor moral do reconhecimento público se transformou na regra para quem usa as redes sociais.
Samarone Lima, jornalista e escritor, publicou livros-reportagens e de poesia, entre eles "O aquário desenterrado" (2013), Prêmio Alphonsus de Guimarães da Fundação Biblioteca Nacional e da Bienal do Livro de Brasília, em 2014. Em 2023, seu primeiro livro, "Zé", foi adaptado para o cinema.