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Não foi por acaso que as revelações sobre a colaboração entre Deltan Dallagnol e o juiz Sérgio Moro vieram à tona por meio de um jovem site de jornalismo independente. Depois de tantos anos ditando a pauta do noticiário nacional, os chefes da Lava Jato finalmente se viram numa posição defensiva. Mas não só eles. As mensagens reveladas pelo The Intercept deixam evidente como a grande mídia brasileira, ao abdicar dos princípios básicos do jornalismo, foi parte engajada no projeto que derrubou uma presidenta, encarcerou um ex-presidente e conduziu um deputado do baixo clero ao Palácio do Planalto.
“É claro que o jornalismo brasileiro tinha obrigação de cobrir os eventos, mas colecionamos uma série de problemas desde então. Um deles foi a cobertura condescendente e servil às autoridades policiais, sem qualquer contestação ou senso crítico. O que se dizia a partir de Curitiba tinha um tom inquestionável, e isso domesticou a imprensa de uma forma geral”, argumenta o professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, Rogério Christofoletti, que lançou recentemente o livro A Crise do Jornalismo tem Solução? pela Editora Estação das Letras e Cores.
Um dos fundadores do Observatório de Ética Jornalística (Objethos), criado em 2009, Christofoletti analisa, nesta entrevista por email à Marco Zero Conteúdo, como a grande mídia e seus jornalistas espetacularizaram as ações da Lava Jato, ajudaram a corroer a ideia de presunção de inocência e alimentaram o antipetismo, jogando o jogo das autoridades que deveriam fiscalizar. E, para isso, na visão do pesquisador, adotaram o comportamento de manada. Os jornalistas publicavam recorrentemente as informações “vazadas” pelos promotores para que depois essas matérias fossem incluídas nas denúncias. “O jornalismo não cobriu a Lava Jato; ele deu cobertura a ela…”, sentencia.
As mensagens publicadas pelo The Intercept Brasil deixam claro como o apoio da opinião pública aos procedimentos da Lava Jato era considerado estratégico para os procuradores de Curitiba e o juiz Sérgio Moro. Que papel a grande mídia brasileira desempenhou nesse processo?
A grande mídia ajudou a galvanizar a Operação Lava Jato como a grande cruzada nacional contra a corrupção. O acompanhamento sistemático das prisões e cumprimentos de mandados de busca e apreensão, a repercussão insistente dos desdobramentos, a reprodução acrítica de trechos de delação, áudios e vídeos, tudo isso combinado por meses e anos ajudou a formar uma ideia muito nítida no imaginário coletivo: as coisas mudaram no Brasil e o país finalmente decidiu enfrentar o seu maior problema.
É claro que o jornalismo brasileiro tinha obrigação de cobrir os eventos, mas colecionamos uma série de problemas desde então. Um deles foi a cobertura condescendente e servil às autoridades policiais, sem qualquer contestação ou senso crítico. O que se dizia a partir de Curitiba tinha um tom inquestionável, e isso domesticou a imprensa de uma forma geral. Outro problema foi insistir na ideia de que a corrupção é o maior problema do país, quando não é. Os maiores problemas são a desigualdade econômica e a injustiça social. Isso atrasa o país, causa mortes, provoca sofrimento. Isso nos priva de humanidade, de uma sociedade mais equilibrada e justa, e da vigência de direitos para todos.
Outros problemas na cobertura foram a espetacularização, a idolatria em torno de alguns personagens, as frequentes invasões de privacidade, algumas exposições públicas criminosas, assim como a corrosão paulatina de um importante fator: a presunção de inocência. Durante a cobertura, o que menos o jornalismo fez foi investigar. Foi basicamente descritivo, relatorial e declaratório. Cartorial. O jornalismo não cobriu a Lava Jato; ele deu cobertura a ela…
Os procuradores reclamam do vazamento de informações no caso Intercept, mas foram os vazamentos das delações premiadas que conduziram o noticiário em torno da operação Lava Jato. Algumas dessas delações, como as do então senador Delcídio Amaral, mostraram-se inconsistentes, não antes de virarem manchete. Faltou investigação jornalística às grandes redações brasileiras? Houve acomodação ou engajamento automático à agenda ditada pela Lava Jato?
Como disse antes, houve as duas coisas, combinadas: o jornalismo se acomodou e aderiu acriticamente à Operação. Os repórteres ajustaram-se ao padrão orientado pela Polícia Federal e pelo Judiciário, e seguiram as cartilhas ditadas. A Operação tinha muitas frentes, o que significa que renderia informações em grande volume e por um longo tempo. Como os repórteres eram frequentemente abastecidos com essas informações, houve uma certa acomodação, condicionamento do comportamento das redações. De alguma forma, repórteres e editores cristalizaram a ideia de que as notícias que vinham do lado de lá eram todas importantes e confiáveis. Isso é um erro brutal porque leva à publicação de qualquer coisa – até mesmo erros e injustiças – e esvazia algo que é bastante saudável na profissão: a competição para oferecer algo novo e melhor que o concorrente, o que exige investigação e apuração sistemática.
Por outro lado, houve também adesão à operação. Acredite: jornalistas são cidadãos, pessoas comuns. O Brasil tem uma tradição de impunidade e, historicamente, alguns grupos sociais sempre estiveram blindados e o longo braço da justiça não os alcançava. Ricos e poderosos, empresários e políticos quase nunca eram presos, quase nunca cumpriam penas longas. A Lava Jato trouxe esse dado novo: eles não escapariam. Os resultados inicialmente apresentados foram bem assimilados pela população que viu ali uma forma de combater a impunidade. Os jornalistas, sensíveis ao público e humanos que são, também se contagiaram. Isso ajuda a entender um pouco o fascínio de alguns jornalistas – inclusive muito experientes – em torno de certas figuras como juízes e procuradores.
Além da adesão à operação e do recrudescimento da investigação, precisamos colocar um outro fator. Passados alguns meses, diante do cansaço e da automatização das ações, os jornalistas adotaram um comportamento de manada.
Como avalia o fato de que muitas das denúncias feitas pelos procuradores de Curitiba terem sido baseadas em matérias dos jornais da grande imprensa do Rio e de São Paulo? O que aconteceu, por exemplo, no caso da denúncia do triplex do Guarujá contra Lula, que deixou inseguro Deltan Dallagnol às vésperas da sua memorável apresentação de power point.
Para o grande público e até mesmo para alguns jornalistas, a Operação Lava Jato era monolítica. Uma cruzada do país contra a corrupção. E esta imagem não é minha, mas a ideia generalizada pelo imaginário coletivo. Uma cruzada é uma guerra, guerra santa, com um propósito claro e defensável moralmente. Uma guerra precisa de um exército, e ele deve trabalhar de forma coordenada, sincronizada e articulada. Como imagem, funciona que é uma beleza. Na realidade, são outros quinhentos.
Embora seja uma corporação, a Polícia Federal é formada por grupos sociais diversos, com interesses, prioridades e ímpetos distintos. Não é uma sopa homogênea, mas um aglomerado de focos que querem exercer o poder policial em escala nacional. A PF é feita de seres humanos, e as relações e disputas por poder também acontecem ali. Como acontecem no Judiciário e no Ministério Público. Há egos, ambições, idiossincrasias. Curitiba e São Paulo sempre disputaram pelos holofotes, buscando o melhor lugar na vitrine. Também tinham energias e velocidades diferentes de investigação e tramitação judicial.
Aproximar-se dos jornalistas é também cavar mais lugar de visibilidade. E como a cobertura se arrastou por meses e anos, relações antes profissionais e distantes tornaram-se mais flexíveis, amistosas e contaminadas. Em alguns casos, chega a acontecer uma espécie de mutualismo entre jornalistas e promotores. Mutualismo é aquela relação ecológica que aproxima indivíduos com interesses distintos (e às vezes, até conflitantes), mas que podem cooperar entre si em algum contexto, de modo a gerar benefícios para ambos. Na vida concreta, o promotor precisa rechear sua denúncia com documentos ou provas. Ele “vaza” informações a jornalistas para que reportagens e matérias possam ser apensadas em suas denúncias. Os jornalistas não são inocentes, e sabem muitas vezes que essa proximidade vai gerar esse combustível, mas os jornalistas precisam de informação, e informação exclusiva e em primeira mão é muito sedutora. Para além desse magnetismo, o jornalista também pode “acreditar na causa”, e considerar que estará contribuindo com o país à medida que ajuda a colocar atrás das grades criminosos e gente que prejudica a nação.
O vazamento do áudio da conversa da então presidenta Dilma com Lula foi decisivo para impedir que o ex-presidente assumisse a Casa Civil. Como avalia o comportamento de Deltan Dallagnol e de Sérgio Moro no episódio à luz das mensagens reveladas pelo Intercept? A mídia poderia ter dado um outro tratamento a esse caso específico?
As informações que temos são poucas, e este primeiro vazamento é bastante econômico no que tange este caso. Se não me engano, há apenas uma troca de mensagens entre o então-juiz e o procurador. Me parece um diálogo perigoso, delicado, impróprio para aqueles personagens naquele momento do país. Talvez hoje ou amanhã mais vazamentos tragam outra luz ao episódio e a gente perceba a coisa com mais nitidez.
A mídia poderia ter dado outro tratamento sim, pois cabe às redações aplicarem seus filtros e decidirem o que vão tornar público e o que não vão. Eles poderiam simplesmente não ter reproduzido o áudio. Em nome do que poderiam fazer isso? De sua autonomia editorial, da autoridade de quem decide o que vai espalhar. Eu dou um exemplo: em 1997, quando Diana Spencer e Dod Al Fayed morreram num túnel em Paris, após a perseguição dos paparazzi, ninguém publicou fotos da ex-princesa morrendo entre as ferragens do carro. Ninguém. Havia dezenas de fotógrafos ali e é impossível que ninguém tenha feito registros. Fizeram, e sabemos hoje que sim, pois eles vazaram há poucos anos na internet. Mas naquela época, não se publicou aquilo. As redações tinham a informação e tinham o material, mas decidiram dizer não. Por decoro, respeito às vítimas, pudor, sensibilidade ou simplesmente entender que aquelas imagens não eram de interesse público, mas apenas imagens que poderiam satisfazer a curiosidade popular. Interesse é bem diferente de curiosidade. E os meios britânicos disseram não.
Voltando ao caso do áudio, o que poderia justificar a sua não publicação? A perda do controle editorial sobre o material. Explico. A interceptação telefônica foi ilegal e foi vazada com propósitos claramente políticos. Foi ilegal porque gravada depois da ordem de interceptação ter sido revogada. Então, se foi captada depois, deveria ser descartada. É o procedimento policial e jurídico. Mas não foi. E o juiz que autorizou a interceptação decidiu derrubar o sigilo do material em seguida. Sergio Moro, à época, justificou que atendia ao interesse público, mas não era disso que se tratava. Era interesse político.
Os jornalistas que cobrem justiça e política costumam não ser ingênuos. Era cristalina a intencionalidade do juiz àquele momento. As redações abdicaram de seu poder de recuar e não se prestar ao serviço, deixando de publicar. As redações deram de ombros e tornaram público o diálogo, que poderia ser suspeito e até inadequado, mas não era ilegal. Ao publicar o áudio, os jornalistas trabalharam para os propósitos pessoais de Moro se concretizarem e não para satisfazer o interesse público. O jornalismo deixou-se usar não pela justiça, mas por um juiz em particular. Vamos lembrar que ministros do Supremo, entre outros operadores do direito, criticaram a atitude de Moro, que depois pediu desculpas. O jornalismo desviou-se do interesse público para atender a interesses particulares, e isso é um desvio ético.
Muito se fala na força do antipetismo e como ele teria sido decisivo na vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Qual o papel da grande mídia na proliferação do antipetismo e na eleição de Bolsonaro?
Parcelas nítidas e poderosas da grande mídia ajudaram a alimentar o antipetismo. As revistas semanais de informação estamparam dezenas de capas acusando Lula e Dilma. Os telejornais produziram horas de cobertura sobre a Lava Jato sem qualquer senso crítico, engolindo tudo o que vinha dos juízes e acusadores. O país todo respirou uma atmosfera de um noticiário que se propunha a satanizar a esquerda em geral, mas o PT em especial. Analisamos isso muitas vezes no Observatório da Ética Jornalística. Então, a pessoa comum vê aquilo por anos em toda a parte, e pensa: só pode ser verdade. Este é o pior partido do país, uma quadrilha que rouba o nosso dinheiro, um punhado de corruptos que me prejudicam todos os dias. Temos que pegar e tirá-los de circulação!
O antipetismo foi muito alimentado pela grande mídia, que ajuda a formar o imaginário coletivo nacional, que ajuda a nos fazer ver as balizas do que julgamos ser a realidade. O antipetismo foi o terreno fértil para a eleição de Jair Bolsonaro, pois grande parcela do eleitorado decidiu fazer novas apostas. Isso se deu no âmbito federal e nos estados também. Vamos ser sinceros: quem conhecia Romeu Zema e Wilson Witzel antes? Pois eles se tornaram os governadores do segundo e do terceiro maior colégio eleitoral do Brasil! No meu estado, Santa Catarina, aconteceu o mesmo. Uma pesquisa desta semana mostrou que 4 em cada 10 catarinenses não sabem que Carlos Moisés é o governador. Ainda podemos torcer os números das eleições de 2018 para entendê-los melhor, mas um dado é sintomático: Bolsonaro foi eleito, mas seus eleitores são minoritários. Ele recebeu 57 milhões de votos, mas os votos brancos, nulos, abstenções e os dirigidos a Haddad chegam a 90 milhões. Esta comparação mostra um eleitorado dividido e não totalmente satisfeito com o candidato vencedor ou não totalmente aderente ao seu projeto.
A grande mídia ajudou a disseminar o antipetismo, mas as plataformas digitais e os grupos de WhatsApp tiveram um papel inédito. Ainda precisamos compreender o que aconteceu. Isso nos ajudará a entender a cabeça do eleitor e como ele toma suas decisões.
Como tem percebido até o momento a cobertura da grande mídia em relação aos vazamentos das mensagens divulgadas pelo The Intercept?
É cedo para dizer, mas é um misto de incredulidade e despeito. Como se trata de tema explosivo e de alto interesse público, os meios simplesmente não podem ignorar os vazamentos. Eles dão a notícia, mas às vezes sem o justo peso que ela tem. Os telejornais da TV Globo adotaram inicialmente uma postura que chega às raias do ridículo. Chegaram a dizer que, segundo o site, a Constituição diz tal coisa. Ora! Se a Constituição diz, não é preciso atribuir ao The Intercept. Deve ser dado como um fato e ponto. Não é questionável. É como dizer: de acordo com a Marco Zero, a Bíblia narra a vida de Jesus Cristo. Isso é um fato, não é necessário colocar na boca da Marco Zero.
Vejo que a cobertura nos grandes meios tem sido marcada por ceticismo e algum despeito, pois um veículo menor trouxe um furo de reportagem histórico e retumbante. E o que é pior: pode dar outros mais, pois só ele tem a informação. Tem a ver com despeito e com ceticismo. Mas pode haver algo mais…
Observo que a Folha de S.Paulo e o UOL parecem ter mais boa vontade com a notícia, e assimilaram as informações, incorporando-as às suas coberturas. Talvez se The Intercept se aproximasse deles e oferecesse a oportunidade de uma parceria, o impacto das publicações seria outro. Me lembro que o Wikileaks fez uma costura muito bem sucedida para a divulgação de seus leaks quando trabalhou com The New York Times, The Guardian, Le Monde, El País e Der Spiegel. Isso não apenas favoreceu a penetração da informação em distintos mercados influentes, mas sobretudo deu chancelas jornalísticas fundamentais para a informação vazada.
Qual o significado de as comprovações da relação indevida entre procuradores e juiz na Lava Jato terem vindo à tona num veículo de jornalismo independente, natural do mundo digital, e não da mídia tradicional? O fortalecimento e crescimento da mídia independente pode colocar em xeque ou abalar a hegemonia dos grandes grupos de comunicação do país? Até que ponto mais diversidade de mídia significa mais democracia?
Uau! São perguntas muito difíceis de responder! Vamos por partes.
Ainda sabemos muito pouco do que virá nas próximas reportagens, mas já podemos afirmar sem medo de errar que se trata de uma série histórica. Não só para o jornalismo independente, mas para o jornalismo brasileiro como um todo. Os envolvidos não negaram as informações. Então, as condições indicam que estamos diante de algo muito sério e importante, e que pode ter sim interferido nas eleições presidenciais. Se for comprovado que os movimentos de Moro e Dallagnol tinham como propósito tirar do pleito o candidato favorito, temos uma situação muito delicada. Não estou dizendo que o favorito venceria de qualquer jeito. Mas tirá-lo da disputa muda o cenário concorrencial!
É muito importante o que The Intercept Brasil está fazendo. Do ponto de vista jornalístico, espero que a redação de cerque dos maiores cuidados para que o material publicado seja correto, preciso, bem apurado, ético e responsável, e orientado pelo interesse público. Do ponto de vista cidadão, gostaria muito de saber dessa história oculta por inteiro.
Particularmente, não acho que o fortalecimento da mídia independente coloque em xeque ou abale a mídia hegemônica. É uma disputa assimétrica demais. Mas é vital, essencial para o jornalismo brasileiro que a sua cena independente seja mais forte e seja viável economicamente. Acabei de lançar um livro em que falo um pouco disso, e da necessidade de apostarmos em novos pactos com os públicos. Os veículos independentes têm muito mais facilidade nesse sentido, e oferecem serviços e produtos que os maiores veículos não querem produzir ou não se interessam. Acredito que a diversidade pode prover o público com mais pluralidade de visões e temas, e que isso fortalece a democracia no sentido de contemplar mais grupos sociais, de convocar mais vozes e de nos levar a ouvi-las. Como professor e jornalista, consumo tanto a mídia hegemônica quanto a independente. Como cidadão faço questão de apoiar ambas, financeiramente, inclusive. Sou assinante-apoiador de três iniciativas jornalísticas independentes, duas delas, locais. Sinto que preciso fortalecer a minha comunidade, e uma forma de fazer isso é dar suporte àqueles que me informam sobre o que se passa na minha aldeia. Tem a ver com cidadania e democracia.
Co-autor do livro e da série de TV Vulneráveis e dos documentários Bora Ocupar e Território Suape, foi editor de política do Diário de Pernambuco, assessor de comunicação do Ministério da Saúde e secretário-adjunto de imprensa da Presidência da República