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“A negação do racismo é algo muito comum em todo o mundo”, afirma cineasta francesa Rokhaya Diallo

Giovanna Carneiro / 19/01/2024

Crédito: Fran Silva / Baobácine

Definida como uma das ativistas mais proeminentes da luta antirracista na França pelo The New York Times, a jornalista, escritora e cineasta francesa, Rokhaya Diallo esteve no Recife na última semana para participar da terceira edição da Mostra de Filmes Africanos e da Diáspora de Pernambuco – Baobácine

Criada nos bairros operários de Paris, Rokhaya visitou o Nordeste do Brasil pela primeira vez para promover um intercâmbio de conhecimentos em debates com ativistas do movimento negro, que foram realizados pela organização da mostra. 

As atividades do Baobácine aconteceram entre os dias 15 e 18 de janeiro nas cidades do Recife e Caruaru. A mostra contou com a exibição de três documentários dirigidos por Rokhaya Diallo, entre eles, o longa Bootyful, que promove um debate sobre os padrões de beleza e os estigmas em torno da bunda, pensando na hiper sexualização das mulheres negras.

Cartaz de Bootyful

Reconhecendo a importância de manter o diálogo e criar confluências com as pessoas negras descendentes da diáspora africana, a ativista francesa utiliza de sua projeção para manter ativo os debates sobre o antirracismo. Para isso, Diallo dirige filmes que têm como tema principal a representatividade de pessoas negras nas mídias, além de escrever para jornais reconhecidos mundialmente como o The Guardian. A jornalista também já escreveu diversos livros e artigos e foi apresentadora de programas de rádio e TV na França. 

De acordo com Rokhaya, realizar trabalhos com múltiplas linguagens em diferentes lugares do mundo é uma forma de combater um traço marcante do racismo: a negação. Em entrevista para a Marco Zero Conteúdo, a ativista francesa falou sobre sua passagem por Pernambuco e as afinidades da luta antirracista no Brasil e na França. 

Marco Zero Conteúdo – Como foi a sua estadia no Brasil e a participação na Baobácine?

Rokhaya Diallo – Foi uma oportunidade de descobrir um espaço que eu não conhecia no Brasil, nunca tinha estado no Nordeste. Então eu pude ter uma nova perspectiva, um olhar diferente do que você costuma ouvir de como é o Brasil lá no exterior e o acolhimento das pessoas tem sido muito bom, vivi muitos encontros emocionantes. 

Você consegue reconhecer semelhanças na luta antirracista no Brasil e na França?

Obviamente a situação política de todos os países é diferente. Mas o que noto em qualquer lugar que conheço e que vou falar sobre o antirracismo é que existe uma negação. A negação do racismo é algo muito comum em todo o mundo. Eu acredito que no Brasil, por ter uma população que em sua maioria se identifica como negra, o sentimento de injustiça é muito maior do que na França, então há também suas diferenças.

Quais estratégias você adotou na sua trajetória profissional para se tornar uma figura pública de visibilidade internacional?

Isso não foi planejado, eu nunca teria imaginado ter tanta visibilidade. Eu diria que minha jornada é, ao mesmo tempo, uma sucessão de acidentes e encontros, e eu precisei ser muito resistente. Não vou negar que sendo um das únicas mulheres negras no campo do jornalismo de opiniões eu enfrento muitas dificuldades, porque há muitos jornalistas negros na França, mas são poucos os que realmente fazem uma análise política de enfrentamento. Há muito racismo e seximos envolvidos, e eu já passei por situações de assédio, polêmicas, tentativas de intimidação, há muita gente que é contra o meu trabalho na França. Então eu posso dizer, entre aspas, que uma das minhas estratégias tem sido trabalhar para a mídia internacional. Por exemplo, atualmente eu escrevo para o Washington Post e o The Guardian e com isso eu acabo estabelecendo uma forma de ter autoridade, e assim as pessoas na França não conseguem me ignorar, elas precisam ouvir o que eu tenho a dizer. 

A ativista francesa, Rokhaya Diallo, conversou com ativistas do movimento negro pernambucano. Crédito: Fran Silva/Baobácine

Como foi para você poder encontrar com ativistas negros do Brasil durante essa participação na Baobácine e qual a importância desse intercâmbio?

Para mim é muito enriquecedor. E eu acho muito importante porque isso permite com que a gente se situe em uma diáspora para observar, como tenho visto também nas idas aos Estados Unidos e em outros países, que temos lutas em comum e também precisamos criar espaços seguros para dialogar. O que eu vejo é que realmente há uma sede, uma sede de troca, uma sede de criar uma ligação e um espaço onde estejamos seguros e nesse sentido o trabalho da Baobácine tem muito mérito. 

Em seus documentários você traz sempre a questão da representatividade para o centro do debate. Por que você faz essa escolha? E para você, qual é a relação do cinema com a propagação do antirracismo?

O cinema cria o imaginário coletivo e tem um impacto extremamente forte nas representações, tanto daquelas pessoas que são representadas quanto das que não estão representadas. O cinema é um lugar onde as pessoas podem ser vistas e, eu tenho certeza, que quando você nunca vê certas pessoas no cinema você começa a questionar a existência delas, você acha que essas pessoas são indignas de existir. Nina Simone dizia que o dever dela enquanto artista era refletir sobre o seu tempo e eu concordo com ela, acho essencial ecoar as questões que precisam ser debatidas na sociedade. 

Eu trabalhei em um documentário intitulado Onde estão os negros? E neste documentário, uma das sociólogas que é entrevistada, Marie-France Malonga, diz que para as minorias negras existem três tipos de representações que são muito comuns no cinema francês. Há a representação de “selvagem”, essa é uma pessoa que não é adequada para viver em um ambiente civilizado. Há a representação da “vítima”, essa é uma pessoa que está sempre necessitada, que precisa ser salva, geralmente por pessoas brancas. E por fim, tem a figura do “encrenqueiro”, é um delinquente, um terrorista, uma pessoa que não é honesta e causa problemas. Estas são representações que ainda continuam muito presentes no cinema, mesmo que ao longo dos anos nós tenhamos evoluído nos debates raciais, porque há cada vez mais diretores negros que contam suas próprias histórias. 

Uma das principais dificuldades encontradas por cineastas negros no Brasil é conseguir aporte financeiro para produzir seus filmes. Você também enfrenta essa dificuldade na França?

É muito difícil conseguir financiamento na França também. E é incrível porque meus filmes são muito mal financiados, mas depois de lançados, eles são muito úteis, ganham muito reconhecimento e circulação. Eu sempre tenho que trabalhar com orçamentos muito pequenos. Para conseguir fazer meu primeiro filme eu tive que apelar para a solidariedade, fiz um apelo nas redes sociais para que as pessoas colaborassem.  E o meu último filme, que eu codirigi, demorou oito anos para conseguir financiamento. Então, não é fácil, mas já fiz oito documentários e hoje digo a mim mesma que, se não tenho meios para fazer meu trabalho corretamente, não irei mais trabalhar, porque eu não acho normal que com a minha experiência eu ainda possa ter dificuldades em encontrar meios de financiar os meus trabalhos. 

Cartaz de Onde estão os negros?, de Rokhaya Diallo.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.