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A via crúcis dos estudantes que estagiam nos museus e galerias de arte do Recife

Maria Carolina Santos / 21/12/2022
Parede em tom amarelo com três tabuletas indicativas em primeiro plano. Ao fundo, silhueta de figura masculina no fim do corredor.

Crédito: Andréa Rego Barros/PCR

Quando começou a estagiar em um equipamento cultural da Prefeitura do Recife, Luciana (nome fictício) se viu realizando um sonho: conseguir um estágio em Artes Visuais, área que, geralmente, dispõe poucas vagas no mercado. Mas logo o sonho foi se desfazendo. Demorou quase dois meses para receber a primeira bolsa, as demandas eram exaustivas e logo se viu em um dilema. Era um trabalho que ela gostava de executar, mas as condições eram péssimas, principalmente com os atrasos constantes da bolsa. “É algo que mexe muito com o meu emocional, mexe muito com a minha criatividade. Mexe com tudo. Porque não dá para pagar alimentação, ou transporte, ou pagar as contas. É sufocante demais”, contou a jovem artista em formação.

A Marco Zero conversou, por meio de videoconferência, com pelo menos dez estagiários e ex-estagiários dos equipamentos culturais da Prefeitura do Recife. Todos e todas fizeram relatos parecidos: cobranças que fogem do programa de estágio, horas extras e demandas que se estendem ao longo do dia, falta de material de trabalho e de supervisão para as atividades. E o pior: atrasos nas bolsas de estágio e no vale transporte que chegam a quase dois meses, com valores sem reajustes há vários anos.

Para os estagiários de nível superior, a Prefeitura do Recife paga uma bolsa de estágio de R$ 350 e de R$ 300 para os do ensino técnico, ambos para meio expediente. Ambos recebem R$ 77 de auxílio para transporte, considerado extremamente deficitário pelos estagiários ouvidos pela reportagem, que chegam a gastar R$ 150 com as passagens de ônibus.

Muitas vezes os estagiários não têm dinheiro para se deslocar até o trabalho. Um dos ouvidos pela reportagem estava com atraso de 40 dias na bolsa e sem receber vale transporte até que deu uma oficina em um dos museus da prefeitura do Recife. Foi com o dinheiro arrecadado com esta oficina, que vai para uma “caixinha” improvisada para ajudar na manutenção do museu, que ele conseguiu pagar as passagens daquele mês. “Mas não foi um pagamento, foi um empréstimo. Quando, semanas depois, recebi o valor da bolsa e do transporte, eu tive que colocar o valor de volta na caixinha”, contou.

No Mamam, com o atraso do vale transporte, estagiários e estagiárias ficaram sem ir ao trabalho depois que se juntaram e foram cobrar a coordenação do museu. Foi uma “greve” que durou duas semanas, até o dinheiro ser depositado. Em novembro, novamente houve atraso do pagamento e a coordenação – formada por apenas duas pessoas – fizeram uma reunião conjunta.

“Elas contaram que repassaram nossas demandas para a prefeitura e explicaram alguns detalhes sobre o funcionamento do fluxo de dinheiro da Secretaria de Cultura. A diretora frisou que a orientação que ela dá é de que a gente não vá para o museu se a bolsa atrasar ou a passagem acabar”, contou uma estagiária do Mamam, lembrando que não é por conta das coordenações que a bolsa atrasa. “Nossa denúncia é sobretudo por causa do sucateamento estrutural, que passa pela coordenação e recai na gente. Não temos intenção de prejudicá-las, e sim de pressionar a prefeitura a se responsabilizar pela quebra de contrato que acontece todo mês e a reavaliação do valor dessa bolsa, que é insuficiente”, afirma a estagiária.

A liberação do trabalho quando a bolsa atrasa começou apenas recentemente, após recorrentes reivindicações dos estagiários. “Várias vezes eu já tive que arrumar dinheiro emprestado para poder ir trabalhar, mesmo indo menos dias. Porque realmente não tem como fazer o nosso trabalho de casa”, contou um estagiário do setor educativo de um dos museus da prefeitura.

Salário de estagiário, demandas de CLT

O sucateamento dos equipamentos citado pelos estagiários se reflete em equipes extremamente enxutas. Na galeria Janete Costa, que funciona no parque Dona Lindu, em Setúbal, há um coordenador e mais dois funcionários. Todo o setor educativo é formado por estagiários. “Sinceramente eu acho que às vezes a gente trabalha como se fosse um CLT, porém ganhando uma bolsa de estagiário. Porque as demandas são como se a gente fosse realmente CLT”, diz um estagiário.

São esses estudantes que recebem o público e passam as informações sobre as exposições para grupos e visitantes. Sem o educativo, não dá para o museu receber grupos de escolas, por exemplo. E esse trabalho no Museu Murillo La Greca, na galeria Janete Costa e no Museu de Arte Moderna Aluísio Magalhães é feito exclusivamente por estagiários.

Com tão poucos funcionários nos equipamentos culturais da prefeitura, os museus simplesmente não conseguem abrir sem os estagiários. Quando chega um novo estagiário, também não há uma preparação, um treinamento para como e o que falar ao público. Simplesmente porque não há funcionários suficientes para isso.

“As coordenadoras chegam junto, mas é a equipe do educativo que realmente se auxilia entre si. Assim que eu entrei no museu eu me senti meio perdida porque meio que jogam você para fazer sua própria mediação. O que dizem assim que a gente chega é para ficar perto de algum estagiário que está lá há mais tempo”, conta uma estagiária. “E a gente vai se guiando com base nessa mediação dos estagiários mais antigos. E se você quiser adicionar alguma coisa, você adiciona. Pela minha experiência, o que realmente ajudou foi a equipe. É um estagiário mais antigo passando para o mais novo”, conta.

Há também o sucateamento de material. Os estagiários denunciam que não há computadores suficientes e muitas vezes ficam dias sem internet nos museus. As demandas também são de funcionários. Uma estagiária contou que costuma receber mensagens com tarefas pela manhã e à noite, ainda que trabalhe somente durante quatro horas no período da tarde.

“Temos uma coordenadora, mas ela é praticamente para tudo. Não tem um profissional da área que possa dar um suporte. Então desde que eu entrei no estágio, e faz mais de um ano, eu venho descobrindo como executar a minha função, porque não tem uma pessoa para me guiar. Vou no erro e no acerto, mas fazendo tudo. É uma coisa muito forte para mim. Fico muito mal por conta do estágio, por não conseguir dar conta de tudo e ainda sim ter uma cobrança muito grande de executar essa função como profissional. O estágio é esse momento de aprendizado, mas eu aprendi fazendo”.

Nenhum dos estudantes ouvidos pela reportagem quis ter seus nomes expostos aqui, como foi o caso de “Luciana”, mencionada na primeira frase deste texto. Mesmos os que não estagiam mais na Fundação de Cultura do Recife. Isso porque é um espaço muito restrito de trabalho e de circulação. “As pessoas da prefeitura podem participar de uma seleção de edital, por exemplo, e ter o nome exposto em uma denúncia pode nos prejudicar”, afirmou uma das ex-estagiárias.

Estagiários dos museus do Recife fazem de atendimento ao público à organização de exposições. Crédito: Sérgio Bernardo/PCR

Jogo de empurra

São duas empresas que fazem o meio de campo da Prefeitura do Recife com os estagiários: a Super Estágios, que tem os contratos dos estudantes do ensino superior, e a Universidade Patativa do Assaré (UPA), que faz os contratos com os alunos do ensino técnico. Quando os estagiários reclamam com as empresas do atraso, elas afirmam que a prefeitura não fez o repasse. E vice-versa. “Já levamos esses atrasos para a Ouvidoria da prefeitura do Recife e recebemos uma resposta super burocrática. É sempre um jogando a responsabilidade para o outro”, disse uma estagiária.

A Marco Zero entrou em contato com as duas empresas e com a prefeitura. E recebeu respostas parecidas com aquelas dadas aos estagiários. A UPA não respondeu à MZ.

Já a Super Estágios afirmou que é a prefeitura quem estabelece o valor dos pagamentos e que o pagamento é recebido mês a mês para o repasse aos estudantes. E que os atrasos ocorrem porque o “repasse referente ao pagamento dos estagiários só pode ocorrer após o fechamento da folha e aprovação da concedente para emissão dos dados para o pagamento. Se o fechamento não ocorrer até o fim do mês corrente, poderá ocorrer atraso no repasse devido ao não recebimento das documentações para o pagamento por parte da concedente.”

Já a Fundação de Cultura Cidade do Recife informou em nota que “o setor responsável foi orientado a adotar, de imediato, as providências administrativas cabíveis, no sentido de solucionar o problema junto à empresa responsável”.

Sobre o valor das bolsas e vale transporte, há anos sem reajustes, afirmou que é uma pauta que está na agenda. “O valor pago incorpora aquele relativo ao transporte, sendo o mesmo objeto de estudos da área administrativa da gestão, uma vez que a política é geral, para o conjunto da Prefeitura, no que diz respeito a possíveis reajustes, uma pauta que consta da agenda, também, da Cultura.”

O atraso nas bolsas é uma reclamação que atravessa as gestões do PSB. Uma das ex-estagiárias ouvidas pela MZ entrou em um museu da prefeitura em 2019, na gestão de Geraldo Julio, e a bolsa costumeiramente atrasava. E era o mesmo valor que é pago hoje. “Na situação econômica que estamos, de crise, e a bolsa é a mesma que era há 10 anos. É um descaso”, reclamou.

Mesmo com as reclamações, a Fundação de Cultura do Recife tem reiteradamente prorrogado os contratos com as duas empresas. O contrato com elas é de 2018 e já está no quarto termo aditivo, assinado pela então diretora-presidente Edelaine Gonçalves de Britto em novembro desse ano, que assumiu o cargo durante um breve afastamento do secretário de Cultura Ricardo Mello, que acumula também a FCCR.

Estagiários e estagiárias também temem que o sucateamento dos museus e galerias seja um caminho para a privatização ou para os projetos de concessão por longos períodos que estão sendo implementados pela Prefeitura do Recife. Na nota à MZ, a prefeitura afirma que está concluindo agora em dezembro um levantamento de todos os equipamentos municipais geridos pela Fundação, “para atualização de demandas e construção de alternativas para solução, o que inclui o processo de supervisão, acompanhamento e apoio à formação dos estagiários, bem como demandas relativas a pessoal, considerando a composição das equipes”.

E que isso vale para “o conjunto, a rede de teatros e museus, não havendo ainda qualquer processo de concessão em curso, o que passará a ser objeto de detalhada discussão, caso avance”. A Galeria Janete Costa, porém, já está incluída no plano de concessão por 30 anos de quatro parques municipais aprovado em agosto de 2021 pela Câmara de Vereadores. A galeria faz parte do parque Dona Lindu. Apenas uma audiência pública foi feita para discutir o projeto.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com