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A vida pulsa na Carolina de Jesus

Luiz Carlos Pinto / 24/03/2017

Fotos: Keila Vieira / Direitos Urbanos

Não digam que fui rebotalho,

que vivi à margem da vida.

Digam que eu procurava trabalho,

mas fui sempre preterida.

Digam ao povo brasileiro

que meu sonho era ser escritora,

mas eu não tinha dinheiro

para pagar uma editora.

Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de despejo”, 1960

No próximo domingo a Comunidade Aliança com Cristo, em Areias, recebe a ocupação Carolina de Jesus para um jogo de bola. O racha acontece no campinho que existia antes da Aliança se instalar, já tem quase dois anos isso. Na semana passada, a ocupação com o nome da escritora mineira completou seus 30 dias de sol e chuva, ao lado da estação do Barro, na BR-101 Sul, numa esquina improvável vizinha ao Ibura, Caçote, Areias, Sancho e o Jequiá.

Na Carolina já são cerca de mil famílias. Todos os dias mais pessoas chegam, no interesse de um canto de espaço entre os 10 mil metros quadrados da ocupação – 8,5 mil, se não contarmos a vacaria que já existia no local, que aliás tem colaborado com a horta – cede água e esterco.

A horta já tem quiabo, tomate, onze horas, cidreira, manjericão, maracujá, babosa, hortelã da folha grande, boldo da folha grande, manjericão, cenoura, milho, banana, cana-de-açúcar, feijão arbóreo.

“A formação da horta contribui com a questão da autonomia e segurança alimentar da ocupação. Mas é também um caminho para a construção da comunidade, baseada em outros princípios, pensando nas questões de gênero, fortalecendo a comunidade de ordem cultural e de necessidades básicas. É uma ferramenta bem importante também para se pensar o uso da água e os nossos vínculos de dependência com o sistema”, diz Juliana Melo, integrante do coletivo Kilombo Joaninha.

Juliana é psicóloga e atua em ações de agroecologia nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em outras ocupações e também está colaborando com a ocupação Carolina de Jesus.

Juliana ainda relata que tem observado várias mulheres se empoderando, modificando as relações com os companheiros, se percebendo capazes de realizar atividades que não realizavam antes, “e aí isso vai modificando o processo interno delas e consequentemente as relações sociais”, diz.

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Não é surpreendente que mesmo depois de um mês a Carolina de Jesus continue a receber famílias. Segundo as pesquisas da Fundação João Pinheiro, o Grande Recife tem o maior déficit habitacional entre as regiões metropolitana do Nordeste: em 2014, eram 131 mil habitações que faltavam. Ainda que frágeis, essas pesquisas ajudam a traçar tendências do problema da habitação. Uma dessas tendências é a relação entre o crescimento do déficit e o custo com aluguel. O próprio IBGE calcula que 40,8% do déficit habitacional nacional é resultado do gasto excessivo com aluguel.

Essa sangria empurra gente como Dona Inajaí, cujo salário da sorveteria onde trabalha, no bairro da Estância, não paga direito os remédios e sua morada atual. Esses dias dona Inajaí tem acordado mais preocupada: cortaram-lhe o benefício da licença do trabalho que conseguiu por ocasião de uma cirurgia que precisou fazer, uma correção em um dos ossos do pé por causa de uma mordida de cachorro. Pitbull.

“Agora isso. A médica que me analisou não acredita que a cirurgia não serviu. Tenho que fazer de novo. Sem dinheiro fiquei sem pagar o aluguel”. Um mês de atraso.

Dona Juceli ouvia entre cansada e paciente o drama de Inajaí. Havia dormido pouco e mal, acompanhando seu marido, Benito, no hospital Pelópidas da Silveira: “quarto AVC. Não consegui vir no dia da entrada (no terreno) porque Benito adoeceu na véspera, só hoje consegui um filho cuidando dele durante o dia”.

Na terça em que Inajaí e Juceli foram à Carolina de Jesus, o gás faltou ao meio-dia. Um leve silêncio preocupado tomou conta das cerca de 100 pessoas que estavam no local. Era dia de cozido.

Armou-se uma vaquinha pra comprar o botijão, mas depois de 15 minutos sem levantar mais que sete reais, uma das cozinheiras da escala, Lindinalva, tomou o microfone e foi a vez de sua voz cheia tomar o espaço, com a autoridade de quem tinha um cozido para terminar.

– O gás acabou! Se não tiver vaquinha, não tem comida. Eu que não vou cozinhar na lenha não!

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Não é só a vacaria que faz uso do terreno da Carolina de Jesus. O local também já foi um conhecido ponto de compra e venda de drogas, o que tem exigido uma negociação delicada da coordenação com os traficantes. O terreno também serviu de descarte de carros roubados.

Embora tenha sido desapropriado para a construção da estação de integração do Barro, em 2008, quando houve a ampliação do terminal integrado de passageiros, o terreno nunca foi objeto de nenhum outra intervenção do poder público. Como se vê, a ausência de uma ação do Estado abriu espaço para que outras funções aparecessem. “É resultado da falta de política habitacional. A regulação da terra tem sido pura e simplesmente uma regulação pelo mercado, com o Estado investindo os recursos públicos para fortalecer esse modelo”, afirma Rudrigo Rafael, da coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto em Pernambuco.

O terreno onde fica a Carolina de Jesus atende ao perfil, por exemplo, da produção de unidades ou conjuntos voltados para o aluguel social. Há legislação para isso e algumas experiências – relacionadas aos programas de Bolsa-aluguel, do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), que foi implantado pelo Governo Federal através da Caixa Econômica Federal (CEF), e do Programa de Locação Social da Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP).

Em um entorno de 500 metros da Carolina há três escolas municipais e uma estadual, uma unidade do Programa Saúde da Família, um terminal integrado, a Ceasa e o Hospital da Mulher – além do trabalho que se demanda nos vários bairros do entorno.

A ideia é que os 8,5 mil metros quadrados sirvam a uma unidade verticalizada que possa acomodar 500 famílias. Um projeto arquitetônico já começou a ser rascunhado pelo Centro Acadêmico de Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS), com a Organização Não-Governamental Habitat para a Humanidade – Brasil. O objetivo é aproveitar o próximo chamamento de projetos do Minha Casa Minha Vida.

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12h30

Apareceram mais três reais. O almoço ia mesmo atrasar. Tia Li roía as unhas com a preocupação de quem tem um cozido para terminar.

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Nelson Baltrusis e Laila Nazem Mourad escreveram a dois anos o que muitas pessoas ligadas à questão da habitação sabem bem: a pressão exercida pelo déficit habitacional é responsável pelo encarecimento do preço do solo urbanizado, fazendo com que a população pobre e os agentes públicos (responsáveis por suprir esse déficit) disputem o mesmo espaço com agentes do mercado imobiliário.

E outros agentes mais: tráfico, milícias, quadrilhas de roubo de carro, as vacarias.

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13h

Só R$ 11 na vaquinha. Dona Edileuza conhecia o homem do gás. Moradora do Iraque, invasão da Avenida Recife com mais de 30 anos, estava na Carolina de Jesus dando uma força para o filho, Wellington, e sua nora, Marli, que já reservaram o pedaço de terra no local.

O botijão de 13 kg custa R$ 40. Dona Lelêu sabia que se levantasse R$ 20 conseguiria fazer o gás chegar, porque era para a ocupação. O restante ficaria para pagar depois. Pegou decidida o telefone celular que trazia amparado no sutiã – um Samsung que só liga e recebe ligações – e ligou. Conseguiu a promessa de que o gás chegaria em 40 minutos.

– Pede pra vir logo, disse Tia Li, mexendo os olhos verdes bem claros e que, naquela hora, mostravam a aflição de quem tinha um cozido para terminar.

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13h30

Com a promessa de que R$ 20 fariam o botijão chegar, a vaquinha caminhou mais rápido.

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A formação do senso de comunidade entre pessoas vindas de bairros diferentes vai ganhando corpo na Carolina de Jesus e já se percebe no dia a dia e também em episódios isolados. No dia 21 de Fevereiro, 10 de seus integrantes foram presos, acusados de resistência à prisão, tentativa de incêndio, associação ao crime e dano qualificado à propriedade. As acusações totalizavam mais de quatro anos de reclusão para cada um deles. Por isso, foi necessário uma audiência de custódia no Fórum Joana Bezerra.

A mobilização no dia seguinte se estendia pela tarde quando surgiu a ideia de se buscar o almoço no acampamento para os que faziam a vigília pela libertação dos ocupantes.

“A gente só sai daqui quando liberarem nossos irmãos”, alguém respondeu depois da ideia ser colocada em votação.

E assim foi.

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Nélia tem cerca de 18 anos, está grávida e muito acima do peso. Chega lenta, na esperança de demarcar um canto para si. Não sabe com quem falar para deixar o nome na lista. Começa a chorar em silêncio.

– Tá chorando por que?, perguntou alguém mas velha, mais negra, mais calma.

– …

– Tá doente?

– Não.

– Tá com frio, mulher?

– Não.

– Tá com fome, é?

– Não.

– Então te acalma que a gente tá tudo junto.

E assim também é.

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A Carolina de Jesus já começa a sofrer com falta de espaço. Às mais de mil famílias se juntam um sem número de razões. Nem todas as famílias dormem no local e a metodologia do MTST reserva uma unidade com uma oca formada por três bambus e um pedaço de lona. E uma lista de presença, que precisa ser assinada para atestar a participação no processo. A pressão por um local passível de ser revertido em habitação leva alguns novos ocupantes a destruírem as ocas e substituí-las por outras, ou construir barracos maiores no local da oca de outra pessoa.

Além de espaço para compra e venda de drogas, vacaria, desmanche de carro, o terreno onde fica a Carolina de Jesus também vinha servindo como estacionamento para caçambas de caminhão. A retirada das caçambas, no meio da tarde da terça passada, abriu um espaço que não estava sendo contabilizado pelos ocupantes e pela vizinhança.

O resultado foi uma ocupação do espaço vago de forma descontrolada, que gerou a destruição de algumas ocas, roubo de material, colchões, roupas e muita reclamação – principalmente de quem já está na ocupação desde os primeiros dias.

Durante o dia, a ocupação tem bem menos gente do que à noite, quando os ocupantes vão ao local. Formigueiro mesmo nas assembleias, a cada dois dias. Poucas são as famílias dormindo na Carolina – a maioria dorme nas casas que aluga, ou na casa de familiares. Aliás, poucos são os ocupantes em situação de rua em todo o Brasil. A maioria trabalha, embora a informalidade e a precarização (sem direitos trabalhistas) seja a regra geral.

A Fundação João Pinheiro afirma que, das 22 milhões de pessoas no Brasil sem moradia, 39% viviam em casas de parentes, onde ocupavam um pequeno cômodo. Outros 32% tinham gasto excessivo com aluguel. Isso em 2007/2008.

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14h

O gás não havia chegado. Tia Li e as ajudantes esperavam ouvindo o funk de Nego do Boréu a toda altura. O barracão onde o almoço é feito cheirava a hortaliça fresca e à carne de cozido levemente esquentada pelo gás que foi embora.

Dois pneus velhos de trator e um sofá rasgado embaixo de uma árvore ouviam a conversa.

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A organização da ocupação espera agora uma deliberação do governo do Estado para a cessão do terreno. Se vingar, será a primeira ocupação organizada pelo MTST-Pernambuco a conseguir a efetivação de uma área para moradia popular.

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 15h

Enfim, o almoço só saiu.

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AUTOR
Foto Luiz Carlos Pinto
Luiz Carlos Pinto

Luiz Carlos Pinto é jornalista formado em 1999, é também doutor em Sociologia pela UFPE e professor da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisa formas abertas de aprendizado com tecnologias e se interessa por sociologia da técnica. Como tal, procura transpor para o jornalismo tais interesses, em especial para tratar de questões relacionadas a disputas urbanas, desigualdade e exclusão social.