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Aborto, religião e a apropriação indevida das instituições públicas

Débora Britto / 31/05/2018

Fotos: Débora Britto

Reunião pública contra o aborto na Câmara de Vereadores do Recife veio abaixo, na última quarta-feira (30), após manifestações de movimentos feministas no plenário da Casa. Convocada pela vereadora Michele Collins (PP)e aprovada pelo conjunto de vereadores e vereadoras da Câmara – o vereador pelo PSOL Ivan Moraes Filho havia sugerido a realização de uma reunião com participação de vozes dissonantes e foi voto vencido – a reunião pública se vestiu de legalidade, mas passou longe de uma prática democrática ao abordar um único ponto de vista dentro da casa legislativa.

A mobilizaçãofeitapelas feministas, que gritaram e protestaram, surpreendeu Michele Collins. Tensa com a situação, talvez pensando que estava na sua congregação, a vereadora pedia que as manifestantes fossem “educadas”. Como resposta,mais barulho vindo de uma platéiaque enxerga o debate sobre o aborto como uma questão de saúde pública e justiça social. Isso porque a criminalização da prática do aborto inseguro mata uma mulher a cada dois dias no Brasil, mesmo país em que uma de cada cinco mulheres com até 40 anos já realizou, pelo menos, um aborto na vida, segundo Pesquisa Nacional de Aborto, realizada em 2016 pelo Instituto de Bioética e Universidade de Brasília (Anis).

Elisa Aníbal, do Grupo Curumim e Fórum de Mulheres de Pernambuco, acusa a Michele Collins de distorcer informações produzidas por organizações e movimentos, inclusive favoráveis ao aborto legal e seguro. A distorção tem o claro objetivo de construir um discurso com aspecto científico contra o aborto. “É uma apropriação dos nossos discursos, da nossa pauta, usando de uma forma desleal com o movimento e com a vida das mulheres”.

Na abertura do evento, a vereadora citou números da Pesquisa Nacional de Aborto para sustentar seu ponto de vista. “Compreendemos que um dos principais fatores para que existam aborto inseguro no Brasil é a desigualdade social, a pobreza restringe muitas mulheres de terem seus filhos em condições dignas. A falta de informação também faz com que meninas engravidem cedo e o poder público não desenvolve ações no sentido de esclarecer a sociedade. Ressalta-se que a vida é um dom de Deus e por conta disso deve ser preservada e dignificada desde sua concepção até a morte”, argumentou.P_20180530_104808_vHDR_Auto

Para Elisa, a fala da vereadora demonstra a tentativa de esvaziar a questão política do direito ao aborto. “No fim das contas elas estão disputando a discussão dentro dos espaços políticos. Debater aborto é muito importante, mas um debate precisa ter ambos os lados, não se faz de forma unilateral. O que tem acontecido aqui não é debate porque a pessoa veio dar testemunho. E a Casa do povo não é lugar de testemunho, como uma igreja. Aqui é lugar de debates que tem que ter critérios e dados, e ela usa os nossos dados e subverte eles tirando do contexto”, defendeu a ativistadefensora do aborto legal e seguro.

“Não vamos deixar que decidam sobre nosso corpo sem a gente, não só sobre nosso corpo, mas sobre nossa autonomia, nossos direitos, nossa saúde”, comemorou Natália Guimarães, integrante do Fórum de Mulheres de Pernambuco. Segundo ela, as feministas avaliaram como importante ter encerrado a reunião que aconteceria no plenário da Câmara sob um manto de legalidade, mas ferindo princípios democráticos como laicidade do Estado. “O debate sobre aborto não pode ser tratado do ponto de vista de uma única religião. Tem que ser baseado em discussão sobre saúde, autonomia da mulher, saúde coletiva. Então viemos aqui manifestar nosso repúdio. Tem caráter político importante, apesar de sabermos que não mudamos a opinião de ninguém. Mas a gente se posiciona, faz com que isso seja conversado em outros ambientes, mostra que estamos organizadas”, explica Natália.

Distopia religiosa na casa do povo

A convidada da vereadora Michele Collins, uma missionária profissional que roda o mundo para contar sua história de vida, tem a missão de fortalecer os movimentos contra o aborto. Uma rápida busca no Google pelo nome da missionária norte americana Gianna Jessen revela dados importantes. Antes mesmo de completar seu nome, a programação da busca mostra diversas opções para conhecer a pessoa. Autointitulada “sobrevivente de um aborto, ativista pró-vida e palestrante”, a Gianna não conseguiu terminar sua fala no plenário devido às manifestações e optou por cantar no microfone da mesa. Durante a continuação da reunião, feita a portas fechadas na sala da presidência da Câmara (onde já encontra-se um crucifixo na parede) e liberada apenas para apoiadores, se limitou a recontar sua história de vida e afirmou que “com toda honestidade, as pessoas hoje devem ter pensado que ganharam, mas nós ganhamos”.

P_20180530_111255_vHDR_AutoNo entanto, para além de contar sua história de vida, envolvimento com a igreja e trajetória de pregação “em nome de Deus” e contra o aborto, a palestrante passa longe de qualquer debate que pense na condição de mulheres que recorrem ao aborto nos Estados Unidos ou no Brasil. Segundo a também missionária Ina Sobolewa,a vinda palestrantefoi custeada com recursos próprios.

Munidos de declarações fortes, mas dados sem referências seguras, os ativistas religiosos contra o aborto chegaram a citar, por exemplo, que existiria uma “indústria do aborto” no mundo, que funcionaria nos Estados Unidos e no Brasil. “Eu gostaria que você parasse um minuto e pensasse se seus avós abortassem. Você estaria aqui hoje?”, convidou uma das palestrantes. Os argumentos contra o aborto se restringiram à reprodução de argumentos religiosos que não cabem ao debate público, amplo, democrático.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.