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“Ainda Estou Aqui”, a ditadura sob uma perspectiva feminina

Eunice representa a mulher branca da elite intelectual e política da época. É preciso falar da ditadura, mas evitar os perigos de uma história única.

Marco Zero Conteúdo / 26/12/2024
Esta é uma fotografia em preto e branco de Fernanda Torres no papel de Eunice Paiva, uma mulher de meia-idade. Ela tem cabelos escuros, volumosos e na altura dos ombros. O rosto dela é sério, com expressão neutra, e ela está olhando diretamente para a câmera. A mulher veste um suéter claro e usa um colar de contas pequenas, possivelmente de tons claros. Ao fundo, parcialmente visíveis, estão folhas de papel com texto manuscrito, em letras cursivas, aparentemente correspondências ou anotações pessoais. Além disso, um dedo segura a foto na parte inferior, indicando que ela está sendo manuseada.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

por Lua Lacerda*

Há muitos filmes sobre a ditadura militar brasileira, mas Ainda Estou Aqui traz uma perspectiva diferente: enquanto diversos outros filmes se concentram na história de homens revolucionários que sacrificaram suas vidas pela liberdade do país ou de mulheres combativas e destemidas, como Dilma Rousseff, a obra de Walter Salles narra a trajetória de Eunice Paiva. O filme encarna uma versão feminina — entre tantas possíveis — sobre os anos de chumbo, representando a experiência de uma esposa branca inserida na elite intelectual e política da época.

A narrativa nos leva ao ambiente doméstico, ao cotidiano de uma família de elite, para revelar o lado ‘do lar’ da tortura. Em vez de heróis públicos, vemos quem carrega as chagas do autoritarismo na “esfera privada”: uma mulher forçada a criar os filhos sozinha, em meio à violência dos “gorilas”, sem sequer derramar uma lágrima. “Nós vamos sorrir”, afirma Eunice Paiva quando os jornalistas pedem uma foto séria e triste da família. Como ela consegue ser tão forte? Claro que nós sempre questionamos e nos surpreendemos com a força das mulheres. 

Afinal, poucas pessoas estão interessadas nas versões femininas sobre os eventos históricos. Na ditadura — e ainda hoje — os heróis masculinos frequentemente ocultam as contribuições e os sofrimentos femininos. O impacto das decisões “públicas” desses homens, no entanto, recai sobre elas. E, assim, sem a participação e as demandas femininas, a agenda pública vai refletindo os interesses dos homens.

Por isso, quando Eunice questiona Baby, personagem de Dan Stulbach que é amigo de seu marido, ela revela o coração da narrativa: “Baby, por que o Rubens foi preso? Eu estive lá, eu vi. Tenho o direito de saber o que Rubens estava fazendo”. Destinadas à gestão da casa e ao cuidado dos filhos, essas mulheres eram frequentemente excluídas da participação política nas decisões tomadas por seus maridos. Essa exclusão era justificada pela ideia da fragilidade feminina branca, que demanda proteção, e pela visão da família como uma instituição sagrada, que cabia às mulheres zelar e preservar. Esse é o ângulo do filme: a experiência de uma mulher branca da elite intelectual e política durante a ditadura militar. 

Enquanto via sua vida desmoronar, criando cinco filhos sozinha, Eunice foi negada até mesmo à verdade sobre a prisão e a morte do marido. Sem sequer saber do envolvimento de Rubens Paiva, ex-deputado, com pequenas ações contra os militares, ela passa a suportar sua dor em silêncio. Por isso, o pôster de divulgação do filme captura a cena de uma fotografia de família: marido e filhos estão sorrindo, mas Eunice se dispersa. Nesse instante, ela fita os caminhões do exército que passam ao fundo. Seu olhar é introspectivo e aflito. Como responsável pelo cuidado do marido e dos filhos, Eunice teme que a “normalidade” de sua família seja comprometida pela ditadura.

No entanto, é justamente o destroço causado pelo exército, literalmente no seio de seu lar, que a convoca a assumir um papel socialmente ativo. Ela retorna à faculdade e passa a desempenhar um papel importante na luta pelos direitos dos povos indígenas do país. A ditadura arranca o véu da estabilidade familiar, da proteção e do heroísmo masculino, forçando-a a um protagonismo que parecia distante de seu destino inicial.

A história de Eunice não se distancia do Brasil de hoje. O autoritarismo ainda nos ronda e os homens continuam a assumir uma postura paternalista em relação às mulheres. Sim, claro que o sofrimento de Eunice foi causado pela ditadura militar, mas, ao nos contar a perspectiva da esposa e mãe, o filme também evidencia como a dita “proteção” masculina, tantas vezes, condena à ausência de escolha feminina. Para fazer um gancho com a atualidade, basta observarmos o controle sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Muitas vezes mulheres são excluídas do direito de intervir, de colocar suas perspectivas à mesa e dizer o óbvio: “querido, eu carrego o peso das suas decisões”. Sim, ainda às custas das mulheres que muitos revolucionários são feitos.

Claro que a história de Eunice Paiva é apenas uma entre as diversas perspectivas femininas possíveis daquele período. Por isso, o filme está sendo tão criticado por apresentar “mais do mesmo”: o sofrimento de uma família branca e rica. Em Ainda Estou Aqui, testemunhamos a ruptura da aparente normalidade de uma família abastada do sul do país. Momentos familiares — danças em grupo, encontros com amigos, copos de whisky e partidas de gamão — são interrompidos pela brutalidade da ditadura.

Sim, para a classe média progressista, a violência do regime era uma novidade, enquanto, para os pobres e negros, ela já era cotidiana. Assassinatos por mãos fardadas, prisões arbitrárias, encarceramento em massa, maternidade solo e a ausência de redes de apoio sempre fizeram parte de suas realidades. Talvez seja por isso que a história dos Paivas provoca tanta comoção, enquanto as histórias daqueles que vivem sob constante tortura não são contadas? É uma possibilidade.

Mas, francamente, o que o filme de Walter Salles nos adverte, ao narrar pelos olhos de Eunice, é precisamente isso: há histórias que, quando finalmente narradas, ampliam nossa compreensão dos acontecimentos. 

Ao mesmo tempo em que abre portas para uma nova perspectiva, o filme também nos deixa evidente o quanto ainda falta conhecer histórias de outras mulheres — negras, pobres, operárias, camponesas, militantes de base e tantas outras — que também enfrentaram a brutalidade do regime. Somente ao contarmos essas histórias seremos capazes de enfraquecer o discurso de que “a ditadura só afetou uma pequena parcela progressista da classe média” e compreender a dimensão concreta do autoritarismo brasileiro. 

Após assistir Ainda Estou Aqui, o que fica é a certeza de que ainda há muitas outras histórias para serem contadas — mulheres de outras classes sociais, regiões, sexualidades e realidades. Dizemos que é preciso “relembrar para não esquecer”, mas precisamos também desafiar o risco da história única, como alerta Chimamanda Ngozi Adichie. Precisamos continuar discutindo e produzindo sobre a ditadura militar brasileira, mas optando por novas perspectivas, por personagens que ainda não foram narradas. Muito além de Eunice, inúmeras pessoas tiveram suas vidas marcadas pelo silêncio imposto pelo autoritarismo e pela violência.

São histórias que ainda aguardam para serem contadas.

*Jornalista e escritora, mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É autora dos livros Ultramar (Editora da União, 2023) e Redemunho (Editora UFPB, 2019).

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