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Cacique Marcos (Republicanos) em vídeo de agradecimento aos eleitores. Crédito: Instagram
O ano era 1998. O líder Xikão Xukuru, com 48 anos, era assassinado com seis tiros numa emboscada na porta da casa da irmã, em Pesqueira, no Agreste de Pernambuco, a mando de posseiros, em decorrência de históricos conflitos pelo direito indígena à terra. Marcos, um de seus sete filhos com Dona Zenilda, hoje cacique, tinha apenas 18 anos, mas já havia sido designado pelos encantados para ser o sucessor do pai e liderança do povo xukuru do Ororubá.
Desde cedo, ele acompanhou a luta de Xikão, que teve papel fundamental na formulação das garantias indígenas da Constituição de 1988, e também participou dos processos de demarcação e retomada de terras. Em 2020, com 42 anos, Marquinhos, como é conhecido, é eleito prefeito de Pesqueira com mais de 51% dos votos (17.654 votos), derrotando a atual prefeita Maria José (DEM). Quebrando uma tradição oligárquica, esta é a primeira vez que um indígena ganha a disputa pelo cargo político mais importante do município.
Sob forte pressão da oposição, que montou uma coligação com nada menos do que 11 partidos (DEM, Progressistas, PSB, Pros, MDB, PCdoB, Podemos, PSD, PSDB, PTC e Patriotas), a campanha do Cacique Marcos (Republicanos), líder xukuru há mais de duas décadas e referência internacional na luta indígena, viu antigos desafetos políticos se unirem na cidade para tentar derrotá-lo.
“Pesqueira não vai ser comandada por um índio” foi uma das tantas afirmações preconceituosas que Marquinhos precisou enfrentar nesse processo, marcado também, segundo ele, por fake news e disparos em massa no WhatsApp. O cacique avalia como perseguição política o que vem sofrendo. Ele é alvo de um processo na Justiça Eleitoral e por isso sua candidatura está sub júdice (entenda mais abaixo).
Essa não foi a primeira vez que o filho de Xikão sofreu perseguição em Pesqueira. Em 2003, ele foi alvo de uma emboscada. Dois indígenas foram mortos na ocasião. Ferido, o Cacique Marcos conseguiu, com ajuda, sobreviver e fugir se jogando por debaixo do caminhão que ele dirigia e depois correndo a pé entre arames farpados. Com o envolvimento de fazendeiros em mais uma disputa de terra, o ataque foi feito por José Lourival Frazão, conhecido por Louro, do povo xukuru de Cimbres, liderado pelo cacique Biá, também de Pesqueira.
O conflito se desdobrou e terminou com dois indígenas de Cimbres alvejados e veículos e imóveis danificados, saqueados e destruídos, incluindo os de propriedade de Biá e Louro. Como resultado, em 2015, a Justiça condenou Marquinhos Xukuru a 10 anos e quatro meses de prisão por incêndio e dano e por induzir outras pessoas à execução do crime. A pena ainda foi majorada por crime continuado. Além do cacique, outros xukuru foram condenados.
Como publicou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na época, a investigação e o processo judicial foram questionados por antropólogos e entidades de defesa dos direitos humanos. Os advogados dos xukuru questionaram o cerceamento de direito de defesa e o tamanho das penas, consideradas exageradas. No caso da condenação do cacique, a sentença foi publicada antes de se juntar ao processo os depoimentos de importantes testemunhas de defesa: o deputado federal Fernando Ferro (PT) e a subprocuradora geral da República na época, Raquel Dodge.
O histórico recente dos xukuru também foi marcado por grandes conquistas. A Associação Xukuru, que representa quase 12 mil pessoas de 24 aldeias, teve, no início do ano, em meio a tantos retrocessos na política indigenista, a notícia do depósito, por parte do governo brasileiro, de uma indenização de US$ 1 milhão.
A indenização foi uma reparação após condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no início de 2018, por violar direitos à propriedade coletiva e à garantia e proteção judicial dos indígenas. A lentidão e o descaso do governo federal abriram espaço para o descumprimento de demarcação de terras e o acirramento de conflitos. Essa foi a primeira vez que o Brasil foi condenado por uma corte internacional por violar direitos indígenas. O caso foi denunciado na CIDH em 2002.
Como prefeito, o Cacique Marcos pretende fazer uma gestão participativa, inspirado na forte organização social xukuru, pela geração de emprego e renda, saneamento básico, pavimentação, saúde e educação.
Em meio a uma agenda lotada após a vitória, o Cacique Marcos (Republicanos) concedeu entrevista à Marco Zero Conteúdo, nesta sexta-feira (20), pela manhã. Confira a conversa e saiba mais sobre o pedido de indeferimento de sua candidatura.
Qual a importância da sua vitória em Pesqueira?
Nós quebramos tabus, levando em consideração que a cidade sempre foi comandada pelas oligarquias rurais e por grandes famílias tradicionais. E aí saiu um indígena da Aldeia Cana Brava, que tinha todo um desafio para chegar a assumir um posto desse, com um histórico de perseguição, porque a grande luta se inicia pela recuperação do território e a nossa luta foi extremamente difícil, nós lutamos e enfrentamos todos esses atores da política antiga das famílias tradicionais, além da máquina pública. Foi uma disputa muito difícil, mas conseguimos nos sobressair pela questão da estabilidade na nossa liderança. Eu assumi com 21 anos e conseguimos ter um projeção a nível de Brasil, Nordeste e mundo, consolidada e respeitada. Isso nos deu credibilidade na disputa em que as famílias mais carentes, que sempre ficaram à margem, enxergaram um momento novo, de mudança e transformação dentro do projeto político que queremos implementar com uma gestão participativa e orçamento participativo. Estamos há um ano e seis meses nessas rodas de conversa com as famílias, os mais de 51% de votos são uma questão histórica no município.
O sr. é uma liderança que até então não tinha concorrido a um cargo eletivo na política institucional. Por que resolveu se candidatar?
Cada um de nós carrega consigo uma missão e a minha sempre foi lutar pelos que mais precisam. Minha questão sempre foi lutar pelo povo indígena. Sempre participamos da política como coadjuvantes, nosso projeto é indissociável da questão política. Nunca havia passado pela minha cabeça exercer um cargo como esse ou qualquer outro, mas acredito que Deus tem um propósito nas nossas vidas e isso fica claro a cada dia que passa, de qual é minha missão nessa espaço físico em que vivemos. Analisando o nosso município e os pedido de muitos amigos que começaram a incentivar a nossa candidatura como única esperança, como uma forte liderança, passei um ano refletindo se eu queria isso para minha vida, refletindo também, como filho da cidade, que não tinha opção de votar em alguém, que já não acreditava mais nessas pessoas e na forma de fazer política numa cidade comandada há mais de 30 anos pelo grupo político que aí está. Era o momento de ampliar essa missão, então entrar na política institucional não foi pelo cargo propriamente dito, mas pensando que, chegando ali, seria mais um instrumento, uma ferramenta para viabilizar um projeto político dos sonhos e desejos dos que sempre foram excluídos. E aí eu me coloquei à disposição para enfrentar.
É a primeira vez que um indígena se elege para assumir a Prefeitura de Pesqueira e seu mandato está ameaçado por uma disputa jurídica. Qual sua interpretação sobre o que está acontecendo?
Se trata de uma perseguição política do grupo que tentou prejudicar nossa candidatura de todo jeito, com fake news e disparos de WhatsApp. Também adentraram com a questão de uma ação de pedido de cassação de registro de candidatura. Nós ganhamos na primeira instância, eles recorreram no TRE, venceram por 4 X 3, numa disputa apertada. Somos confiantes na Justiça, nossos advogados estão acompanhando o caso e a argumentação deles é muito frágil. Em 2003, devido a eu ter sido réu, houve toda uma discussão política e jurídica, eu fui condenado a 10 anos e 4 meses. A gente recorreu, nem eu nem os outros fomos presos, prestamos serviços sociais com cestas básicas e nosso processo já foi transitado em julgado. As acusações são de incêndios, eu não estava presente, mas infelizmente houve essa condenação e estão tentando incluir o caso na Lei da Ficha Limpa. Há uma fragilidade do ponto de vista jurídico. Agora, cabe à Justiça analisar, estamos aguardando o resultado.
Entenda o caso
A candidatura do Cacique Marcos é alvo de um processo na Justiça Eleitoral numa ação de impugnação proposta pela atual prefeita de Pesqueira, Maria José (DEM), derrotada nas urnas e
Ministério Público Eleitoral de Pernambuco (MPE-PE), sob alegação de inelegibilidade decorrente de uma condenação criminal. O indígena venceu em primeira instância, a que é julgada por um juiz eleitoral. Mas tanto o MPE-PE quanto o DEM recorreram da decisão, levando o caso para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-PE), onde o candidato do Republicanos perdeu por 4 X 3.A oposição quer enquadrar o cacique pela Lei da Ficha Limpa, que possui um hall de crimes que tornam um candidato inelegível. Na visão da defesa xukuru, crime de incêndio não entra nessa lista. Mas a oposição argumenta que o fogo destruiu propriedade privada, que essa, sim, se encaixa no hall da Lei da Ficha Limpa, o que deixaria o cacique inelegível por oito anos após o caso ter sido transitado em julgado (2015), impossibilitado-o assim de assumir a prefeitura.
A defesa de Marquinhos entrou com um pedido de embargo de declaração, que agora aguarda julgamento na pauta do TRE-PE. Trata-se de uma espécie de recurso com a finalidade de esclarecer uma contradição ou omissão ocorrida em uma decisão proferida por um juiz ou por um órgão colegiado. Será preciso esperar pelo novo resultado, ao qual ainda cabe recurso das partes. Somente a partir daí será possível saber se o caso sobe ou não para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Segundo o TSE, no caso de prefeitos eleitos sub judice, se o candidato estiver com registro deferido no dia da diplomação (18 de outubro), ele poderá ser diplomado. O que não impede que, após julgamento de recurso, ele perca o mandato. Já candidato sub judice com candidatura indeferida, caso não haja decisão julgada pelo TSE no dia da diplomação, não poderá ser diplomado. É o caso do cacique Marcos. Será nomeado interinamente como prefeito o presidente da câmara, até a situação ser resolvida no TSE. Caso tenha ganho de causa, ele assume.
Sua campanha conseguiu costurar uma candidatura pelo Republicanos, partido de direita, mas que teve apoio do PT, com depoimento de Lula, e de entidades como a CUT, mostrando que a disputa em Pesqueira vai além da questão partidária. Por que mesmo com esses apoios, o sr. não conseguiu se candidatar por um partido de esquerda ou progressista?
Porque a conjuntura local aqui é bastante emblemática. Se uniram todas as forças locais e empresariais e você sabe que os municípios do interior ficam muito mais nas mãos dessas pessoas, que construíram uma afronta para fazer com que eu não estivesse na disputa. Eu não tinha segurança alguma de estar num partido de esquerda, lado que militei sempre. Então fui procurar um partido que me desse a segurança de que não acontecesse nenhum tipo de ação para tentar prejudicar a disputa. Como sempre dissemos, a disputa é local, independente de onde eu esteja, nosso luta continuará fazendo a defesa contra todas as violações que existirem por parte de qualquer governo. Mesmo estando no Republicanos, temos um projeto de governo com um viés de esquerda, uma gestão participativa, com orçamento participativo, escutas, fortalecimento das instâncias de governo. Vai de encontro ao que o partido ideologicamente pensa, então isso também é quebrar um tabu dentro do próprio partido em que estamos. É entrar no olho no furacão quebrando por dentro, como um cavalo de troia, esse o grande desafio.
O sr. considera que a frente que se formou na tentativa de derrotar sua candidatura é também racial, além de política?
Sim, porque rolou muito isso aqui nos grupos do WhatsApp, com fake news, dizendo que Pesqueira não iria ser comandada por um índio. Essas expressões surgiram muito, então houve preconceito racial. Assumir a prefeitura é também quebrar com isso. Entramos na Justiça e algumas pessoas tiveram que responder.
Três xukuru se elegeram para a Câmara de Pesqueira. Como isso mostra a força política do povo xukuru na política da cidade? Como a presença indígena irá influenciar a governabilidade no executivo?
Por si só, já mostra que há aceitabilidade da presença indígnena e mostra nossa capacidade de articulação, de entendimento de um projeto novo, com alinhamento entre executivo e legislativo para garantir uma gestão de qualidade.
Como a amplitude da visão indígena e as práticas de organização social estarão presentes no seu mandato?
Não tem muito segredo, é parte da organização sociopolítica do povo xukuru, com mesas temáticas de discussão nos bairros, levando para a população a construção coletiva sobre projetos coletivos de educação, saúde, discutindo com vários segmentos. São coisas que já realizamos dentro do território, culminando com a assembleia anual, momento de juntar todas as forças e lideranças políticas e instituições para discutir e avaliar.
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com