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Ambulantes e comerciantes da Guararapes não sabem qual será seu destino no novo projeto da prefeitura

Maria Carolina Santos / 10/11/2025
A foto mostra uma feira de livros ao ar livre, montada sobre um calçadão de pedras em um espaço urbano. À direita, há uma grande quantidade de livros dispostos diretamente no chão, com as capas voltadas para cima. Os títulos são variados, incluindo literatura, autoajuda e materiais didáticos — alguns visíveis são “Verissimo”, “Estudo Dirigido de Interpretação de Textos” e “O Papo Reto”. Próximo a uma parede roxa coberta por grafites, há uma pilha alta de livros encostada verticalmente. Ao fundo, pessoas caminham e exploram a feira, que conta com outras bancas e quiosques.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

A avenida Guararapes, seus arredores e seus prédios construídos entre 1940 e 1960 foram, durante décadas, a parte mais efervescente do centro do Recife. A decadência da área comercial se tornou aguda no século XXI e, hoje, a região é um fantasma do que já foi. Mas não há como olhar para aquela área e não ver que há grande potencial ali. Apesar dos prédios sem uso, da população de rua desamparada, do medo de assaltos e da feiúra da estação de BRT, ainda se vê muita gente andando por lá durante o dia. E há um vuco-vuco de ambulantes e comerciantes que resistem, uns desde os tempos áureos.

O projeto que a prefeitura do Recife está chamando de Distrito Guararapes – uma fatia do bairro de Santo Antônio que o prefeito João Campos (PSB) quer conceder para a iniciativa privada por 30 anos – pode mudar significativamente a área.

Na quarta-feira passada, a Marco Zero foi entrevistar os comerciantes e ambulantes do Distrito Guararapes para saber o que eles acharam das ideias da prefeitura. Todos reconhecem que uma intervenção radical é necessária e que o centro do Recife não pode ficar escanteado como está. Mas reclamam da falta de transparência da prefeitura: ninguém havia visto o projeto apresentado na audiência pública – que, além de ser online, não foi divulgada entre as pessoas que estão todos os dias na Guararapes.

Dos entrevistados, apenas o dono da tradicional Banca Globo, Orlando Patrocínio Oliveira, participou de uma reunião na prefeitura que teve também a presença de outros comerciantes e do BNDES, financiador do projeto, mas isso foi há mais de um ano, em outubro de 2024.

Foto colorida mostra Orlando Patrocínio em pé, de braços cruzados, em frente à tradicional Banca Guararapes, localizada na Avenida Guararapes, no centro do Recife. Ele é um homem de barba e cabelo grisalhos, veste camiseta verde e calça clara. A banca tem fachada vermelha com letreiro amarelo que anuncia a venda de quadrinhos, jornais, revistas e apostilas para concursos. Nas laterais, há ilustrações de personagens de histórias em quadrinhos, como o Coringa e o Superman. Ao fundo, aparecem prédios antigos da avenida e um ônibus passando pela rua. A cena foi registrada em um dia ensolarado.

Orlando do Patrocínio

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
Foto de José Pinheiro sorridente atrás do balcão de sua lanchonete, vestindo uma camisa azul escura. O balcão está decorado com adesivos coloridos de personagens e logotipos, transmitindo um clima descontraído e acolhedor. Ao fundo, há dois quadros de menu com opções de sucos naturais — como uva, laranja e maracujá — e pratos variados à base de bife, incluindo versões aceboladas, à milanesa e à parmegiana. Um cartaz também destaca vitaminas feitas com frutas como abacate, banana e mamão. A parede tem um padrão geométrico discreto e um ventilador está ligado acima dos menus.

José Pinheiro

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

“A Guararapes já está há muito tempo degradada. Está abandonada e esquecida. Esse pessoal que entrou na prefeitura agora, é que do Recentro (pasta criada por João Campos em 2021 para cuidar do centro), alertaram que não podem continuar do jeito que está e tem feito ações pontuais. Mas isso de entregar uma parte do bairro para a iniciativa privada eu não sei se é certo ou errado”, pondera.

Para ele, o incentivo à moradia é uma ótima iniciativa e ele concorda com o projeto de que não deve ser para pessoas de baixa renda – os 873 kitnetes e apartamentos da parceria da prefeitura e a concessionária serão para as faixas 3 e 4 as mais altas do Minha Casa, Minha Vida, para renda mensal de até R$ 12. “Nada contra a moradia popular, mas, na moradia popular, o pessoal que assume não vai poder pagar condomínio, não vai poder manter o prédio”, acredita.

No também tradicional Chá Mate Brasília, vizinho à praça do Sebo, José Pinheiro ficou sabendo do projeto pelos clientes. Acredita que o Recentro ainda precisa apresentar melhorias concretas para a área. “Eu não tenho a menor ideia de como é que vai ser esse projeto. Política é aquela coisa, né? Daqui que venham a realizar o negócio se passaram décadas. E a questão é que o centro está morrendo e ele precisa de mudança urgente”, cobra.

Se José fosse escutado pela prefeitura, iria sugerir que os órgãos públicos e cartórios fossem transferidos para o centro. Da pandemia para cá, a debandada da região se agravou com o fechamento dos Correios (que tinha sede na Guararapes desde 1943), o fechamento de faculdades e a saída da Secretaria de Educação do Recife – que ele lembra com carinho, pois trazia ótimos clientes. “O que sustenta comércio é loja aberta, com muita família trabalhando em cada loja, e clientes. Até um concorrente aberto perto da gente é melhor do que uma loja fechada. Eu espero realmente que esse projeto movimente o centro”, diz Zé, como é chamado pelos clientes.

Uma coisa que ele não quer é que o novo projeto tire a essência de Santo Antônio. “Não tem porque mudar a Praça do Diário. É uma praça bonita e tão antiga, já faz parte daqui”, pede.

“Privatização” sem ouvir a população

Trabalhando há 28 anos na Praça do Sebo, Kátia Sales viu no Instagram de João Campos o anúncio das mudanças. “Mas da mudança da Praça do Sebo eu nem vi, só do entorno da avenida Guararapes”, disse ela, que não gostou da ideia. “Tudo aqui está passando para a iniciativa privada. Está tomando esse rumo e ninguém fala com as pessoas que estão no local. Deveriam ter essa preocupação de escutar, de chegar junto e perguntar: o que é que você acha que pode dar certo? O que é que você acha que vale a pena ser feito?”, sugere Kátia, que também não ficou sabendo da audiência pública. “Por que não fizeram essa apresentação na avenida Guararapes, que vez ou outra fecha para eventos? Ou aqui mesmo na Praça do Sebo?”, questionou. A audiência foi realizada pelo Google Meet, com apenas 70 pessoas, muitas delas da própria prefeitura.

Para Kátia, com esse projeto a prefeitura não está pensando em que hoje ainda resiste no centro. “A primeira mudança que deveria vir era que os órgãos públicos realmente investissem aqui. Quando foi criada a pasta Recentro, eu me animei. Eu pensei: ‘poxa, agora vai ter uma pasta exclusiva para o centro, agora a coisa vai funcionar’. Mas eu não pensei que o projeto ia ser transformar o centro num setor imobiliário. E um setor imobiliário muito caro, por sinal”, critica. “Porque uns apartamentos pequenos por R$ 310 mil? pela misericórdia! Não é padrão de classe média de jeito nenhum”, exclama.

Sem informações, ambulantes temem remoção

Dividindo a calçada do prédio dos Correios com a população de rua, nenhum dos cinco ambulantes da avenida Guararapes e rua do Sol sabia dos planos da prefeitura para eles. Todos viram a novidade pela imprensa ou pelo perfil de Instagram de João Campos – que tem mais de 2,2 milhões de seguidores.

Mais economicamente vulneráveis, eles esperam permanecer nas ruas sob a gestão privada. “Do jeito que está, pior não pode ficar. Porque quando eu era criança aqui passava muita gente. Tudo que botava aqui, vendia rápido. É bom que tenha moradia e mais comércio aqui, porque aí vai ter mais gente pra poder comprar também”, acredita Cleyton Brilhante, que está há 18 anos lá.

Vendendo cartões postais na frente dos Correios, Terezinha Maria Camelo, de 74 anos, diz que está ali há seis décadas. Tem dia que não vende absolutamente nada. E dias assim têm sido cada vez mais frequentes. Mesmo assim, quer permanecer lá quando a concessionária chegar. “O que precisa melhorar aqui é a segurança. Ninguém aguenta mais tanta violência”.

No fiteiro para o lado da Rua do Sol, Maurinete Inácio, de 77 anos, achou que não ia ser atingida pelo projeto, já que não ficava bem na Avenida Guararapes. Ao ser informada pela reportagem que o Distrito Guararapes abarca mais de 45 quadras do bairro, ficou preocupada. “Sou cadastrada na prefeitura há mais de 30 anos. Quero ficar aqui até quando aguentar”, disse.

A foto mostra Kátia Sales, uma mulher de pele clara, cabelos escuros presos e expressão serena, em pé dentro de uma banca de livros localizada em um mercado popular. Ela veste uma camiseta preta com letras brancas e uma saia estampada. Ao seu redor, há pilhas e prateleiras repletas de livros usados e raros, criando um ambiente acolhedor e culturalmente rico. Acima de sua cabeça, um cartaz informa os serviços oferecidos — compra, venda e troca de livros — além de seus contatos e redes sociais. O espaço tem estrutura simples, com teto de metal ondulado e uma cadeira plástica azul ao fundo.

Kátia Sales

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A foto mostra Cleyton Brilhante, um homem de pele morena, cabelo curto e expressão tranquila, sentado em um banquinho atrás de uma mesa repleta de materiais escolares e de escritório. Ele veste uma camiseta azul clara e shorts listrados. A mesa está organizada com itens como canetas, lápis, borrachas, corretivos, cordões de crachá e cadernos, todos dispostos de forma acessível para os clientes. Ao fundo, há uma parede de pedra com uma grade metálica decorativa, e o ambiente é parte de uma movimentada feira de rua, com outras barracas e pessoas circulando.

Cleyton Brilhante

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A foto mostra Terezinha Maria Camelo, uma senhora de pele clara e cabelos grisalhos, em pé ao lado de sua banca improvisada em uma calçada urbana. Ela veste uma blusa azul vibrante com estampa de pássaros e uma bermuda florida, transmitindo alegria e personalidade. Sua banca é composta por um carrinho metálico com cordões coloridos pendurados, uma caixa de papelão com bebidas embaladas — possivelmente suco de maçã — e uma mesa de madeira com pacotes amarelos organizados em pilhas. Ao fundo, vê-se uma parede de pedra com janelas gradeadas.

Terezinha Camelo

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero
A foto mostra Maurinete Inácio, uma pessoa idosa de pele clara, sentada confortavelmente em um banquinho branco diante de sua pequena banca de rua. Ela veste uma camiseta amarela estampada em azul, shorts pretos e sapatos marrons. Com uma expressão tranquila, Maurinete apoia um braço em um isopor e o outro no banco. Atrás dela, há um quiosque simples repleto de produtos variados: pacotes de biscoitos pendurados, potes e caixas com alimentos e bebidas organizados em prateleiras. O chão é de tijolos e há um suporte de madeira ao lado do isopor.

Maurinete Inácio

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Secretário garante permanência de comerciantes

Em entrevista para a Marco Zero na segunda-feira, 3 de novembro, o secretário de Desenvolvimento Urbano e Licenciamento do Recife, Felipe Matos, afirmou que haverá quiosques para os ambulantes e comerciantes. Esses quiosques serão entregues e terão manutenção da concessionária que vencer a licitação. “A prefeitura hoje já tem um cadastro, tanto dos comerciantes instalados em quiosques e bancas, quanto também daqueles comerciantes ambulantes. Com base nesse quantitativo, a gente dimensionou a quantidade de quiosques que vão ser necessários. A ideia é que a gente consiga prover para todos eles um espaço digno e seguro. E mais qualificado do que aqueles que eles têm hoje”, afirmou.

Pela minuta de contrato disponível no site da licitação, são 446 comerciantes fixos e 200 móveis na área da futura concessão. Serão eles os integrados ao padrão dos novos quiosques. Esses mais de 600 quiosques serão classificados como bens reversíveis. “Ou seja, serão de propriedade da prefeitura. A concessionária constrói, faz a manutenção, ela dá todo tipo de tratamento para que esse quiosque esteja operacional durante os 30 anos de concessão. Fica sob a posse da prefeitura e operação do comerciante”, explicou.

Felipe Matos também afirmou que os comerciantes já cadastrados não pagarão aluguel pelos quiosques, mas que novos espaços comerciais serão cobrados. “O único aluguel que a gente previu é para aqueles novos comerciantes, digamos assim, que seriam dos novos espaços comerciais. Por exemplo, nos térreos dos edifícios, prevemos que tenha espaço comercial, que tenha fachada ativa. Então, nesses locais, sim, a concessionária vai poder cobrar aluguel”.

Vitrines ao sol em imagem de projeção da Praça do Sebo no projeto do Distrito Guararapes

Sobre a prefeitura estar privilegiando as faixas de renda mais altas do Minha Casa, Minha Vida, Matos afirma que não vê problema, uma vez que outra Parceria Público-Privada na região, a PPP Morar no Centro, vai contar com habitações para a faixa 1 e 2. Segundo ele, são 1,1 mil unidades habitacionais na Boa Vista e em Santo Antônio, sendo 600 para aluguel social, subsidiados pela prefeitura. Apesar do centro do Recife ser majoritariamente de área construída e de dezenas de prédios estarem sem uso, mais da metade dessas moradias serão em edificações novas, que ainda serão construídas. “É porque tem um imóvel na Dantas Barreto que é um terreno vazio e pertencente à União. E que a gente vai poder edificar. Obviamente, seguindo todas as regras do patrimônio histórico”, disse.

As unidades habitacionais do Distrito Guararapes terão, em média, 35m² por R$ 310 mil. O valor do metro quadrado será de R$ 8,77 mil, o que é acima do valor médio do Recife, que foi de R$ 8,40 mil no mês de setembro. O secretário não concorda com essa comparação, já que, nessa média, entram “imóveis já construídos, antigos, nem sempre perfeitas as condições de habitabilidade”.

O secretário também não considera que a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS) aumenta as vantagens para a futura concessionária. Ele afirmou que, por ora, o crédito do retrofit não está entrando na conta. “Caso esse crédito venha a ser incluído posteriormente, vai reduzir a parte que a prefeitura vai colocar na PPP”, garantiu. Segundo Felipe Matos, será definido nos trâmites da licitação como esse crédito aparecerá no contrato.

O secretário afirmou ainda que os 14 edifícios que serão concedidos estão escolhidos, mas a prefeitura optou por ainda não divulgar seus locais exatos no momento para evitar especulação ou pressão política, uma vez que o processo ainda estava em escuta pública no site. A expectativa é que a informação sobre edifícios venha a público no momento da licitação, com o devido decreto de utilidade pública.

Felipe Matos afirmou que a prefeitura optou por realizar uma desapropriação paga para os 14 edifícios, e não uma desapropriação baseada na dívida de IPTU. “No entanto, aqueles que estiverem com dívida a gente abate do pagamento”, disse. A escolha dos imóveis se deu, segundo ele, após o estudo da condição fundiária de 60 prédios.

O foco, segundo o secretário, foi em identificar imóveis que “não iriam reagir aos incentivos tributários e urbanísticos que a gente tem oferecido, seguiriam abandonados mesmo que eventualmente aquele local se regenere”. Ele citou como exemplos imóveis com múltiplos donos, de propriedade de empresas em recuperação judicial e que estão em massa falida ou espólios de difícil resolução.

A expectativa da prefeitura é que as obras tenham início nos primeiros meses de 2027. Com o fim da contribuição do público para o projeto, a prefeitura diz que vai analisar as sugestões e propostas. Depois, o edital vai para análise do Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE-PE). Só então começarão os trâmites para a licitação. O plano de investimento total na área pública tem uma previsão de duração de seis anos, mas o secretário mencionou que, em paralelo a isso, será permitido que o concessionário realize o desenvolvimento e a venda de algumas unidades em menos tempo.

AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org