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Articulação entre ONG e prefeitura eliminou ultraprocessados da merenda escolar em Cumaru

Inácio França / 22/12/2025
Bom dia, Inácio! 😊 Aqui está uma descrição acessível da imagem: Um grupo de crianças está em um refeitório escolar. Três delas estão na fila do balcão de comida, e uma está recebendo um prato azul com espaguete, feijão e um pedaço de ovo cozido. Todas usam uniforme branco com detalhes vermelhos e azuis. Ao fundo, outras crianças estão sentadas em cadeiras coloridas, comendo ou esperando a refeição. As paredes têm azulejos nas cores vermelho, branco e azul, e há uma placa com a palavra “REFEITÓRIO”. Se quiser, posso adaptar essa descrição para diferentes públicos ou formatos!

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Cumaru (PE) – A macarronada praticamente sem molho vinha acompanhada de uma coisa enlatada chamada kitut, feita com sobras de carnes e impregnada de produtos químicos como tripolifosfato de sódio, corante, antioxidante eritorbato de sódio e conservante nitrito de sódio. Se não tivesse o tal kitut no estoque da prefeitura, a opção seria sardinha com óleo, também em lata. Para completar, biscoito de maisena.

Essa era a merenda com a qual Martilene Iraci do Nascimento acostumou-se quando era aluna da rede escolar de Cumaru, no início dos anos 2000. Na época, havia até uma barraquinha dentro da escola que vendia biscoitos recheados, salgadinhos, pirulitos e confeitos.

Hoje, aos 35 anos, ela e suas vizinhas produzem e fornecem as hortaliças, macaxeira, inhame e frutas oferecidas aos seus filhos e às outras crianças nas escolas do município.

“Sabe como a comida industrializada entra na mesa das famílias? Pela merenda das crianças, que pedem para os pais comprarem aquilo que comem na escola. Agora, está acontecendo o contrário, as famílias estão começando a optar por frutas frescas, por exemplo, porque os filhos e netos estão dando o exemplo”, garante Martilene, mãe de Gabriel, de 10 anos, e Gabrielly, de cinco.

A qualidade começou a mudar em 2020, quando a prefeitura passou a comprar os produtos para a merenda com recursos do Programa Nacional de Alimentação Escolar, o PNAE, que impõe aos municípios comprarem da agricultura familiar pelo menos 30% dos produtos. A mudança foi acelerada graças a uma soma de esforços pouco comum no Brasil: o poder público e entidades ligadas ao movimento social.

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A partir de 1º de janeirode 2026, de acordo com a nova lei federal 15.226, esse percentual será de 45%. Como o orçamento do programa para 2026 é de R$ 5,5 bilhões, isso significa que R$ 2,4 bilhões serão destinados à agricultura familiar.

Como 76% das 2,4 mil propriedades rurais desse município de 16 mil habitantes no agreste pernambucano têm menos de cinco hectares, abriu-se uma janela de oportunidade com potencial para aumentar a renda das próprias famílias dos estudantes.

O problema é que, àquela altura, poucos agricultores estavam aptos a vender seus produtos ao poder público. O secretário de agricultura do município, Rogério Jerônimo da Silva, contou que, ao assumir o cargo em 2023, pouco menos de 500 agricultores tinham o CAF, o Cadastro de Agricultor Familiar. Sem esse documento, não é possível participar dos editais do PNAE. “Isso inviabilizava qualquer tentativa de implementar uma política pública”, explica o gestor.

Esse era o caso da maior parte das famílias de Lagoa de Aninha, onde vivem Martilene e sua vizinha Maria Aparecida da Silva, a Cida, presidente da associação de agricultores da localidade. Elas estão entre as mais de 2 mil camponesas e camponeses de Cumaru que, agora, possuem o CAF e estão habilitados a participar do PNAE e de outros programas governamentais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

O resultado desse incremento pode ser constatado nas planilhas de repasses do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para o município. Em 2024, do total de R$ 307 mil usados na compra de alimentação escolar, 38,36% foram para a agricultura familiar, ou seja, acima do mínimo estabelecido pela lei. Até setembro de 2025, foram mais de R$ 493 mil repassados ao município.

Martilene do Nascimento está em um curral pequeno, ao lado de vários cabritos que se alimentam em um cocho de madeira. Ela sorri e veste uma camiseta laranja com estampa branca e shorts bege. O espaço tem piso de madeira ripada, cobertura de telha metálica e paredes de concreto com aberturas para ventilação. A cena mostra um ambiente rural simples, destacando o cuidado com os animais e o trabalho no campo.

Com o cadastro no CAF, Martilene pôde vender produtos para a merenda escolar

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

As mulheres são as protagonistas

Ao mesmo tempo em que a prefeitura procurou ampliar a quantidade de agricultores cadastrados, as organizações sociais que atuam na região passaram a mobilizar as famílias, principalmente as mulheres, para incrementarem e diversificarem a produção. O Centro Sabiá, organização não governamental que faz parte da Rede de Assistência Técnica e Extensão Rural de Agroecologia (Rede Ater Nordeste), é uma dessas entidades.

Presente em Cumaru desde 2004, o Sabiá trabalhou diretamente com 200 famílias em que as mulheres estavam à frente da propriedade, cultivando, cuidando dos filhos, dos animais de criação e fazendo a gestão da água nas cisternas. Pelo menos 100 dessas mães e esposas se habilitaram a fornecer produtos para a merenda durante os dois anos (2024-2025) em que as famílias receberam assessoria técnica da entidade.

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As atividades do Centro Sabiá em Cumaru neste período foram desenvolvidas junto com a organização de cooperação internacional Pão para o Mundo (Brot für die Welt, em alemão) e financiadas pelo ministério da Agricultura, Alimentação e Identidade Regional da Alemanha.

O mesmo projeto apoiou ações em seis estados nordestinos – Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe -, algumas delas já abordadas pela Marco Zero na série de reportagens A reinvenção do Nordeste.

“Meu marido trabalha num condomínio em Caruaru [a 64 quilômetros de distância], eu fico aqui cuidando de tudo nos quatro hectares que divido com minha cunhada. Quando precisa, eu mando Gabriel cortar palma para dar para os animais”, explica Martilene, se referindo ao filho mais velho. O protagonismo gerou relevância no trato com as autoridades municipais. Considerada uma das lideranças das agricultoras, ela ocupa a vice-presidência do Conselho de Desenvolvimento Sustentável de Cumaru.

Cida mora a menos de um quilômetro do sítio de Martilene. De temperamento mais reservado, ela supera a timidez para compartilhar com a amiga o papel de liderança dos agricultores familiares da Lagoa de Aninha e Queimada. Mãe de Diogo Fábio, de 15 anos, e Ana Beatriz, de 10, ela sente orgulho de ser uma das fornecedoras de alimentos para as escolas onde os filhos estudam: “na minha época de estudo era só kitut e sardinha, hoje eles comem inhame, batata e carne que o pessoal daqui produz”.

Ao falar sobre o passado recente, Cida conta que seu temperamento a atrapalhava até para ganhar um dinheiro extra. “Eu faço dudu [o mesmo que sacolé ou dindim, em outras regiões] de frutas da região para vender, mas tinha vergonha de oferecer, de levar para vender. Foi o pessoal do Sabiá que mudou meu jeito de pensar, pois nos eventos que eles realizavam na cidade, pediam para eu fazer mais para que pudessem comprar e servir no lanche”, recorda.

Cida aumentou sua renda com a venda de picolés caseiros e bolos que produz

Ao receber R$ 4.600,00 do projeto tocado pela organização não-governamental, ela comprou um freezer vertical capaz de armazenar e preservar a produção de dudus. “Antes eu apertava no congelador da geladeira, dava para uns 20, no máximo. Agora, posso fazer 200 ou 300 que tenho onde guardar”, explica a agricultora.

Segundo a coordenadora territorial do Sabiá, Juliana Peixoto, a entidade “contribuiu fortemente para que mais gente pudesse ficar sabendo que o edital do PNAE estava aberto e que mais famílias poderiam se inscrever, além disso trabalhamos para uma maior aproximação da secretaria municipal de Agricultura com as comunidades rurais”.

O poder do intercâmbio

Cida, no entanto, garante que não foi só a insistência para vender os picolés caseiros que quebrou a resistência imposta pela timidez. “O melhor do projeto do Sabiá foi poder conhecer o que outras mulheres fazem em outros lugares, poder participar de congressos de Agricultura Familiar em Brasília, em Juazeiro da Bahia”, afirma.

Foi em uma dessas viagens de intercâmbio que elas conheceram na Paraíba o fogão agroecológico, que gera mais calor com menos lenha. “Todas as mulheres daqui querem um igual, pois a gente viu na Paraíba como a vida de Maria Helena mudou depois do fogão”, conta Marcilene, sem saber que Maria Helena foi protagonista de uma das reportagens da Marco Zero em 2024.

Na Paraíba, elas também aprenderam que não precisam esperar pelo poder público ou por projeto de uma ONG para adquirir um fogão agroecológico – ou qualquer outra estrutura para suas propriedades. “Lá, tudo quanto é comunidade tem um fundo rotativo, que é uma espécie de consórcio. Nós vamos começar um com dez mulheres que estão interessadas no fogão e em telas para galinheiro”, revela Cida. O Centro Sabiá informou que irá ajudar com recursos para os dois primeiros fogões.

Para conhecer a história de Maria Helena e o fundo rotativo, é só clicar no link abaixo:

Infraestrutura: o gargalo

Sexta-feira sim, sexta-feira não, uma picape da prefeitura vai às comunidades de Lagoa de Aninha e Quebradas para levar as agricultoras e dezenas de engradados cheias de hortaliças, frutas, mel, bolos, carne de bode, ovos e tubérculos como inhame e macaxeira até a lateral da igreja matriz, no centro de Cumaru. Quando as mulheres chegam ao raiar do dia, as barracas já estão lá, montadas pela equipe da prefeitura, como um “puxadinho” da feira livre tradicional que acontece no largo formado pelas avenidas Pailu e Manoel Gonçalves de Lima.

A agroecóloga Íris Maria da Silva sabe como é importante a participação na feira da agricultura familiar. Assessora técnica do Centro Sabiá, ela passou os dois últimos anos acompanhando o cotidiano das agricultoras do município e via a necessidade de um espaço para comercializar aquilo que era produzido em suas terras. Afinal, as vendas para o PNAE não acontecem todo dia. “Já houve uma feira desse tipo no passado, mas só há pouco tempo foi possível reativá-la com ajuda da gestão municipal”, explica.

Viabilizar a feira é uma das maneiras encontradas pela prefeitura para compensar a falta de infraestrutura de um pequeno município nordestino.

Rogério Jerônimo, o secretário de agricultura, é quem explica: “a feira é uma conquista recente, mas é necessário apoiar o agricultor familiar também nas etapas anteriores. Na época de arar a terra, disponibilizamos 10 tratores que vão de sítio em sítio até fazer a aração completa. Quando chega a época de fazer a forragem, os agricultores têm acesso às quatro ensiladeiras da prefeitura”.

Rogério Jerônimo está sentado em um sofá marrom acolchoado, em uma sala com paredes brancas e uma pequena janela com persianas verticais. Ele veste uma camisa polo azul-marinho com detalhes vermelhos e brancos na gola e nas mangas. Na camisa, há um logotipo com quatro quadrados coloridos e a palavra “CUMARU”. Rogério parece estar conversando ou sendo entrevistado, gesticulando com as mãos enquanto fala

Prioridade é cadastrar agricultores para garantir acesso a programas federais, afirma Rogério

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Cumaru não é um município rico. Longe disso.

De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), seu Produto Interno Bruto (PIB) per capita o coloca em 123º lugar entre os 184 municípios pernambucanos. Já o seu IDH de 0,572 o classifica como de “baixo desenvolvimento humano”. Para efeitos de comparação, a média do estado é 0,673. Em um país com 5.570 municípios, Cumaru está na 4.802ª posição no ranking nacional de desenvolvimento humano.

Segundo Íris Silva, com mais estrutura seria possível absorver ainda mais a produção dos agricultores locais no PNAE. Uma situação vivida por Maria Aparecida Silva ilustra bem isso. No segundo semestre de 2025, Cida vendeu 100 frangos para a merenda escolar, mas ainda não recebeu o dinheiro da venda. E por que isso tem a ver com a infraestrutura precária?

“Cumaru não tem abatedouro municipal de aves, então precisa fazer o abate em Caruaru, passando a depender da burocracia do outro município para fazer os pagamentos de acordo com a legislação do PNAE”, explica a agroecóloga do Centro Sabiá.

O leite e os ovos oferecidos aos alunos nas escolas cumaruenses não são produzidos nos sítios de lá. Mais uma vez, a explicação está na infraestrutura. “Aqui ainda não tem o SIM, o Selo de Inspeção Municipal”, resume Íris Silva. O SIM é uma exigência do PNAE.

O secretário Rogério Jerônimo garante, que, sozinho, o município não resolverá essas questões: “o Brasil precisa de mais políticas de incentivo e fomento com olhar para a agricultura familiar”.

Água da transposição está perto

Ao menos para solucionar o histórico problema de falta de água na área urbana, há, pelo menos, uma perspectiva, pois a água da transposição do rio São Francisco está para chegar a Riacho das Almas, a 29 quilômetros de distância. O próximo município seria Cumaru.

A área rural conta com 1.181 cisternas de 16 mil litros para o consumo doméstico, e de 322 cisternas com capacidade de armazenar 52 mil litros de água destinadas à produção. A maioria dessas cisternas foi construída pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), rede da qual o Centro Sabiá também integra.

Esta reportagem foi produzida em parceria com a Rede Ater Nordeste.

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.