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As armadilhas da nova Lei de Uso do Solo do Recife

Marco Zero Conteúdo / 24/09/2025
Vista aérea do Recife com muitos prédios altos dos dois lados do Rio Capibaribe, na altura dos bairros das Graças e Torre. As margens do rio são cobertas por árvores verdes e há uma avenida movimentada à direita da imagem

Por Pedro Alcântara*

Nessa terça-feira (23), a Câmara de Vereadores do Recife aprovou a nova Lei de Parcelamento e Uso do Solo da cidade, enviada à casa pelo prefeito João Campos (PSB). Na prática, a legislação aprovada extingue a Lei dos 12 bairros, criada em 2001, que estabelecia rigorosos parâmetros urbanísticos com o objetivo de impedir o avanço indiscriminado do setor imobiliário sobre áreas valorizadas da cidade, sob intensa pressão do mercado.

A Lei dos 12 bairros foi criada na gestão do PT, pelo ex-prefeito e agora deputado estadual João Paulo, e garantiu avanços urbanísticos consideráveis na época. Entre eles, a imposição de rígidos parâmetros de taxa de uso do solo natural na beira dos rios, impedindo o avanço total das construções. Parâmetros sobre remembramentos, largura das ruas e tamanho de prédios a serem construídos evitaram um estrangulamento ainda maior dos bairros protegidos pela lei.

A nova Lei de Uso do Solo, da gestão João Campos, extingue a antiga legislação. Faz isso expressamente no artigo 202 do projeto aprovado. Põe fim a um ordenamento urbano conquistado com muita luta por movimentos sociais e pelo campo progressista e popular da cidade. Mas, evidentemente, não o faz afirmando isso. Foi construída uma narrativa diferente para justificar a nova Lei de Uso do Solo.

Em primeiro lugar, a atual gestão “vendeu” a ideia de que a Lei dos 12 bairros era elitista e que seria preciso um regramento que levasse em conta toda a cidade. Ora, a lei antiga aumentava o rigor sobre determinados bairros exatamente porque eles estavam demasiadamente adensados e sob imensa pressão do mercado imobiliário. Pode-se argumentar que ao proteger alguns bairros transferiu o problema para outros. Se essa for a crítica, a nova Lei de Uso do Solo poderia ampliar o antigo ordenamento legal espalhando para outras áreas da cidade suas regras inteiramente preservadas, à luz da nova realidade da cidade. Não é isso o que faz.

A lei aprovada desidrata a antiga legislação para só aí propor sua expansão. Ela cria algumas normas boas de menor impacto e as espalha pela cidade, mas em compensação enterra o núcleo central da histórica Lei dos 12 bairros. Alguns pontos da nova lei foram tão escandalosos que foi preciso uma mobilização emergencial e o barulho de grupos de urbanistas alarmados com as mudanças para que a prefeitura, só assim, topasse, por exemplo, não mexer na taxa de solo natural em áreas próximas ao Rio Capibaribe, que iria passar a permitir o dobro de área construída. Numa cidade tão vulnerável a mudanças climáticas e com desigualdades gritantes, cujas vítimas de desastres ambientais tem raça e Cep bem definidos, seria um desastre ambiental e social ter menos solo natural para absorção da água das chuvas.

É muito grave o que pode acontecer em algumas áreas onde o governo municipal não recuou, a exemplo de perímetros que cobrem os bairros do Espinheiro, Aflitos, Tamarineira e Graças, onde haverá permissão para alteração da taxa de solo natural em favor de mais concreto e menos resiliência ambiental. Além disso, em algumas áreas desses bairros haverá permissividade para a altura das edificações além de condições aceitáveis para o contexto já tensionado daqueles territórios. É preocupante.

Porta-vozes da prefeitura têm dito que estudos comprovam que não é mais necessário proteger o solo natural se houver compensação com plantação de árvores e outras “medidas verdes” adotadas por construtoras com “responsabilidade ambiental”. Esses estudos devem estar para as construtoras como certos estudos fármacos estão para a felicidade das empresas produtoras de remédios.

Além disso, uma margem do Rio Capibaribe, que contorna uma área mais popular da cidade, a região da Caxangá, não ganha parâmetros rígidos como os da Lei dos 12 bairros, que vai desaparecer deixando na nova lei apenas alguns aspectos e virando poeira em outros tão fundamentais.

Como pode uma cidade que figura entre as mais vulneráveis do mundo a desastres climáticos e que viveu uma das principais tragédias socioambientais de sua história, em 2022, simplesmente ter que pressionar o prefeito para não “cimentar” ainda mais as beiras dos seus rios e áreas naturais fora das margens? Esse deveria ser um compromisso inegociável da própria gestão desde o início. É realmente absurdo.

Com a nova Lei de Parcelamento e Uso do Solo alguns parâmetros que impediam construções desenfreadas também morrerão. Será permitida a prática do remembramento em muitas áreas, o que possibilita mais construções com maior impacto por todo o desenho urbano do Recife. Alguns urbanistas progressistas chamam essa política de “arrasa quarteirão” e temem a entrega da cidade à lógica do adensamento predial para além de sua capacidade.

Com a morte da Lei dos 12 bairros desaparece também o rigor de construções em ruas menores. Antes, só poderiam ser construídos prédios pequenos em ruas de menor porte. Em bairros como Casa Forte, por exemplo, no máximo 4 pavimentos. Agora estão liberados prédios com até 4 vezes mais pavimentos. Segundo vários especialistas isso aumentará o fluxo de veículos em áreas já congestionadas, na cidade com um dos piores trânsitos do país, que deveria agora mesmo estar enrijecendo suas regras ambientais, investindo em transporte público e contendo o avanço das construtoras em áreas de tensão urbana.

O prefeito João Campos nos vende a narrativa de que, na verdade, estaria “espalhando a Lei dos 12 bairros” para a cidade toda, porque manteve alguns de seus parâmetros. Mas ao modificar regras tão fundamentais ela esvazia e desidrata o centro pulsante da antiga legislação e deixa a especulação imobiliária mais à vontade para seguir avançando na cidade.

Dentre todos os argumentos favoráveis à Nova Lei de Uso e Ocupação do Solo da atual gestão, que será o novo regramento a reger parte importante da vida na cidade, o mais “pirotécnico” é a suposta “priorização da habitação popular” na nova lei. Tem se propagandeado insistentemente que o novo ordenamento priorizará a habitação de interesse social e fará o “pobre morar em área de rico”. Não será assim.

A lei apresentada pela prefeitura do Recife e aprovada pela Câmara Municipal não estabelece sequer prioridade para as faixas mais pobres da população. Se limita a destacar programas sociais de habitação, obviamente o “Minha Casa, Minha Vida”, dos governos do PT, como centrais na política de habitação a ser consolidada na cidade. Ocorre que o referido programa atende a vários segmentos sociais, agrupados em faixas de renda, que variam desde a 1 – para os mais pobres – até a 4, para pessoas que ganham até R$ 12 mil.

Ora, é óbvio que as construtoras farão empreendimentos para as faixas 3 e 4 nos melhores bairros – inclusive na pretensa retomada do centro do Recife – cobertas sob o manto da “política de habitação de interesse social”. Isso contraria a própria diretriz nacional dessa política, que trata expressamente as populações socialmente vulneráveis como segmento prioritário de qualquer política de habitação de interesse social. Como uma lei que sequer garante isso pode se arrogar o direito de autodeclarar-se centrada na ideia de democratizar a moradia para os pobres nos melhores territórios da cidade? Mais grave ainda quando constatamos que 80% da população que sofre com o déficit habitacional na região metropolitana está na faixa 1, o que não é muito diferente no Recife.

Além disso, é muito importante que lembremos que política de habitação não se faz apenas com novas construções. Experiencias em alguns países mostram a importância do setor público regular firmemente o mercado imobiliário impedindo o aumento extraordinário no preço dos aluguéis. Recife, a terceira cidade com os aluguéis mais caros do país, segue o caminho de rendição cada vez maior aos interesses desse mercado.

Por fim, as Zeis, Zonas Especiais de Interesse Social, que entre 2013 e 2020 tiveram um
Investimento pífio da prefeitura, cerca de apenas R$ 400mil por ano. Para se ter uma ideia do contraste de prioridades, somente este ano a prefeitura gastou mais de R$ 50 milhões em publicidade. Na nova Lei, enfim, uma boa notícia: serão criadas mais 16 Zeis na cidade, o que é bom! Assim como a ampliação das áreas de preservação histórica. É preciso, porém, saber se essas áreas serão de fato respeitadas, especialmente as Zeis, que são os territórios socialmente mais vulneráveis da cidade. Nos últimos anos ações de despejo tem ocorrido nessas áreas, o que não deveria acontecer, já que são, como o nome indica, zonas de proteção especial.

Foi o caso da Vila Esperança, em Monteiro. Essa comunidade que ocupava há décadas espaço num dos territórios mais desejados da cidade está sendo destruída. Aliás, seus moradores não serão realocados para áreas nobres daquele bairro. Ao invés do novo parque na 17 de agosto feito para o desfrute da classe média, por que não se usou o terreno para realocar essas famílias pobres, as tornando vizinhas de prédio dos ricos, já que o discurso de habitação da prefeitura é tão bonito? Sabemos porque. Que a ampliação das Zeis ocorra com a retomada de investimento e o respeito ao caráter protetivo especial desses territórios.

Não menos importante, isso tudo foi feito sem a devida participação popular. Recife já não tem política de participação social há muito tempo, desde o fim do Orçamento Participativo em 2013. Numa cidade tão complexa e desigual, a inexistência de uma política real, consistente e articulada de participação e controle social é um vexame. Política de participação não deve ser tocada no improviso. É preciso haver canais reais e articulados de participação, que envolvam todo o governo e possibilitem à sociedade como um todo não só ser ouvida, mas participar efetivamente das decisões sobre os rumos da cidade.

A nova Lei de Uso do Solo não teve participação popular efetiva em sua formulação e acabamento. O fato de terem sido feitas algumas escutas localizadas anos atrás e de se ouvir um ou outro técnico não faz desse processo algo participativo. A prefeitura realizou uma audiência maior esse ano e a câmara uma única escuta em audiência. É muito pouco, é quase nada. É para inglês ver.

A entrada na pauta da nova lei, para ser votada já nesta terça-feira, pegou muita gente de surpresa. Ora, por que a Câmara de Vereadores quis votar com tanta pressa? Se a única audiência feita pelos vereadores estava lotada e foi marcada por intenso debate, por que não estimular mais debates com a sociedade no intuito de melhorar a lei? Causa espanto e revela a falta de interesse de controle social sobre a feitura dessa lei, que em muitos aspectos abre a porteira para passar a boiada do mercado imobiliário no já problematico solo urbano da nossa querida cidade.

O sentido geral da nova lei de uso do solo é a flexibilização de parâmetros urbanísticos rígidos para construções prediais na cidade. A Lei dos 12 bairros está morta e agora teremos que conviver com o novo ordenamento. Assim como morto está o Orçamento Participativo e as políticas de controle social que faziam da cidade um centro pulsante de debates e intervenções políticas. Aos poucos um outro modelo de cidade vai sendo implementado, de tipo empresarial e elitista, desfazendo os avanços que lá atrás o campo progressista recifense, liderado pelos governos do PT e dos movimentos sociais, construíram histórica e duramente.

Já passou da hora da esquerda da cidade acordar e entender a necessidade urgente de se mobilizar novamente e reconstruir as condições para lutar por um outro modelo de cidade, verdadeiramente popular e democrático.

Recife vale a luta!

  • Pedro Alcântara é doutor em Ciências Sociais e vice-presidente estadual do PT em Pernambuco
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