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Crédito: Inês Campelo/MZ Conteúdo
Pouco depois das 6h30 da segunda-feira, 28 de dezembro, o vereador Almir Fernando (PCdoB) estava sentado diante de uma tela, participando de uma reunião online da comissão de Legislação e Justiça da Câmara Municipal do Recife para aprovar, às pressas, os projetos de lei enviados pelo prefeito Geraldo Julio (PSB). É possível que o esforço de acordar cedo após o feriadão tenha cobrado seu preço.
Quatro horas depois, às 10h24, ao ser chamado pelo primeiro-secretário Romerinho Jatobá, que comandava a votação, para dar seu primeiro voto na sessão plenária extraordinária remota, Fernando foi surpreendido e, com o microfone aberto, pediu: “repete aí, eu tava dormindo”. Jatobá insistiu no chamado, perguntando como ele votaria na ampliação e desmembramento em duas da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) Ibura/Jordão, mas o sono atrapalhou o vereador comunista. “Depois eu respondo”.
No final da votação, já informado sobre o que estava sendo votado, Almir Fernando confirmou o voto a favor do projeto, que acabou sendo aprovado por unanimidade: 32 x 0.
Essa foi o único projeto em que situação e oposição votaram juntas.
Em seguida, 25 dos 32 vereadores presentes à sessão virtual aprovaram o Projeto de Lei 24/2020 que ameaça diretamente 12 comunidades Zeis espalhadas em 10 bairros do Recife: Apipucos, Alto do Mandu, Alto Santa Isabel, Campo do Vila, Lemos Torres, Poço da Panela, Tamarineira, Vila Esperança/Cabocó, Vila Inaldo Martins, Vila Marcionila, Mussum e Vila do Vintém.
O projeto autoriza o remembramento de lotes nessas Zeis, mesmo que ultrapassem o limite legal de 250m2. A possibilidade de remembrar – juntar e reunir terrenos diferentes em único lote – elimina um dos mecanismos criados pela legislação das Zeis para proteger as comunidades. Em lotes maiores, é possível construir prédios maiores, o que impulsionaria o preço dos aluguéis e expulsaria os atuais moradores dessas áreas. A médio prazo, isso aumenta o trânsito e a sobrecarga do transporte coletivo.
Em entrevista recente à Marco Zero Conteúdo, a doutoura em Planejamento Urbano e professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE, Norma Lacerda, explicou que o projeto “abre as porteiras” das áreas mais protegidas da cidade para o avanço do mercado imobiliário porque “o dispositivo mais importante do Prezeis (Programa de Regularização Fundiária das Zonas Especiais de Interesse Social) é exatamente o que não permite lotes maiores de 250 metros quadrados e que não permite o remembramento “.
A sessão extraordinária que aprovou a mudança na legislação das Zeis e um projeto reforma administrativa só aconteceu graças a uma decisão do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na manhã de domingo, 27, que suspendeu a liminar do Tribunal de Justiça de Pernambuco que impedia a tramitação dos projetos durante o recesso parlamentar.
Na semana anterior, os vereadores da oposição conseguiram que o desembargador Josué Antônio Fonseca de Sena anulasse a tramitação dos projetos. Para o magistrado pernambucano “não foram poucas as ilegalidades relatadas nestes autos, todas aparentemente desrespeitando frontalmente o trâmite legal para apreciação de projetos de lei”.
A ilegalidade apontada pelo desembargador estava no desrespeito ao artigo 241 da própria Câmara, que impede que projetos de leis sejam enviados às comissões temáticas após o dia 18 de novembro. A prefeitura recorreu ao STJ alegando que projetos essenciais deixariam de ser votados e que “gestão que assumirá a prefeitura ficará impedida de recrutar os gestores que irão fazer parte da nova administração municipal, o que causará atraso na implementação das políticas públicas programadas”. Foi o bastante para convencer o presidente do STJ.
O conflito jurídico não deve acabar tão cedo. Dois vereadores oposicionistas, Aline Mariano (PP) e Jayme Asfora (Cidadania), anunciaram que, mesmo sem mandato por não terem conseguido a reeleição, pretendem recorrer às instâncias superiores para que as votações sejam anuladas. “É caso claro de nulidade”, afirmou Mariano.
A decisão do STJ fez a bancada do PSB e seus aliados correrem para não serem surpreendidos por outra decisão judicial em sentido contrário. De maneira inédita, às 6h30 as comissões temáticas estavam se reunindo para aprovar pareceres cujos textos eram rigorosamente idênticos. A reunião da Comissão de Legislação e Justiça, presidida por Aerto Luna (PSB), aquela em que Almir Fernando participou, foi a mais longa: durou 14 minutos, incluindo o tempo usado por Luna, que não se reelegeu, para se despedir.
A comissão de Finanças e Orçamento, presidida por Eriberto Rafael (PP), foi a mais rápida: os três vereadores presentes precisaram de apenas 3 minutos e 29 segundos para aprovar os relatórios. Outra reunião relâmpago foi a da comissão de Planejamento Urbano e Obras, em que apenas dois vereadores, os governistas Rodrigo Coutinho (SDD) e Augusto Carreras (PSB) gastaram 3 minutos e 35 segundos para aprovar seus respectivos relatórios.
Em todas essas reuniões, o tempo aberto para que os relatórios entrassem “em discussão” eram preenchidos por um silêncio constrangedor.
Às 10h15, o plenário online estava reunido. A maior parte dos vereadores, porém, manteve suas câmeras desligadas, respondendo às chamadas para votar com lacônicos “sim” ou “a favor”, no caso dos governistas, e extensas declarações de votos dos quatro oposicionistas.
Quando chegou a vez do PL 24 ser apreciado, apenas os vereadores de oposição se inscreveram para discuti-lo.
Os quatro oposicionistas fizeram duros ataques aos colegas da situação, ao prefeito Geraldo Julio e ao prefeito eleito João Campos e também à própria presidência da Câmara. Estranhamente nenhum vereador governista se inscreveu para defender as próprias posições ou a prefeitura.
O líder da oposição, Renato Antunes (PSC), se ressentiu dos vereadores terem se transformado em motivo de chacota por se reunirem bem cedo, antes das 7h, “para discutir um projeto que sequer deveria estar tramitando, por descumprir o regimento da própria Casa. Recebemos altos salários pagos pelo contribuinte e ao povo que devemos prestar contas, não estamos sendo pagos para satisfazer as vontades do senhor prefeito”.
Depois de explicar como o projeto iria afetar as comunidades, Ivan Moraes (PSOL) disse que sentia vergonha da postura da Câmara Municipal. “Nos constrange a prefeitura usar seu poder de fogo para, num feriado, ir até Brasília para obter uma liminar ilegítima, porém não fez o mínimo esforço, não bateu na porta de desembargador nenhum para reverter a decisão que suspendeu a lei que proíbe a dupla função de cobrador e motorista de ônibus. Ficou claro que a prefeitura do PSB está ao lado de quem tem grana, de quem faz grandes negócios no Recife, mas está contra a maior parte da população que pega ônibus e luta pelo direito à moradia”.
Jayme Asfora comparou Geraldo Julio a prefeitos do antigo PFL, atual DEM: “Roberto Magalhães era conservador, mas a atual gestão da cidade é atrasada. Nem Magalhães, Joaquim Francisco ou Gilberto Marques Paulo tentaram estraçalhar a cidade como o PSB está fazendo. O que aconteceu hoje foi um capítulo horroroso da história da Câmara, que nunca se curvou tanto à vontade de um prefeito”.
Antiga aliada do PSB, Aline Mariano atacou a tática “de comunicação” do prefeito. “O mandado de segurança impetrado pela oposição não teve como objetivo impedir a votação da reforma administrativa. O que está por trás dessa reforma é o projeto de lei 24, que atinge diretamente as comunidades mais vulneráveis e visa à higienização dos bairros mais valorizados. O projeto é tão ruim que foi apresentado depois das eleições”.
O projeto foi aprovado por 25 x 7. Votaram contra Aline Mariano, Fred Ferreira (PSC), Ivan Moraes, Jayme Asfora, Renato Antunes, Ricardo Cruz (PP) e Jairo Brito (PT). O outro petista, o ex-prefeito João da Costa (PT) votou a favor da proposta de Geraldo Julio.
Até o fim da sessão, os vereadores governistas não reagiram às críticas.
A Marco Zero Conteúdo também procurou a chefia do gabinete de Imprensa da Prefeitura, mas até o fechamento deste texto não obteve resposta para as seguintes questões:
Qual interesse da prefeitura em liberar a o remembramento des lotes das Zeis? Já que este é considerado o principal dispositivo de proteção das comunidades Zeis, qual será o impacto urbano dessa medida?
Se a resposta for enviada, a publicação será editada imediatamente.
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Jornalista e escritor. É o diretor de Conteúdo da MZ.