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As Zeis do Recife são um instrumento de resistência da população pobre pelo direito à cidade?

Marco Zero Conteúdo / 13/05/2024
Foto de uma rua estreita em um bairro aparentemente carente. As casas ao longo da rua são pequenas e simples, com fachadas desgastadas e construção rudimentar. Um homem está parado perto de uma parede, e alguns cachorros estão vagando pela rua. Um carro está estacionado de forma irregular na beira da estrada, que não é pavimentada e tem poças d’água. O céu está claro, indicando um dia ensolarado.

Crédito: Observatório das Metrópoles

por Danielle de Melo Rocha* e Bruno de Albuquerque Ferreira Lima**

O processo de elaboração do novo Plano Diretor do Recife (PDR) aconteceu sob intensas críticas dos segmentos populares à Prefeitura, sobretudo pelo curto prazo para aprofundar assuntos técnicos com os reais interessados. Depois da pressa para encaminhar à Câmara dos Vereadores ainda em 2018, com apenas seis meses de discussão, passaram-se dois anos, com a pandemia do Covid-19 no meio, até que o texto final foi publicado em abril de 2021 (Lei nº 2/2021). Na disputa pela cidade entre os diversos atores, cabe uma preocupação em relação à permanência da população nos territórios populares. Em 2014, foram identificadas 545 Comunidades de Interesse Social (CIS), que representam 33% do território da cidade e abrigam 53% da população recifense (Atlas, 2014). Ainda que grande parte dessas CIS estejam inseridas dentro do perímetro das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), muitas delas não contam com a proteção legal das Zeis e as famílias tornam-se mais vulneráveis à expulsão e ações de despejo. Quando uma área é reconhecida como Zeis pela legislação urbanística municipal, significa que o poder público está assumindo sua responsabilidade em garantir à população pobre o acesso à moradia em áreas com oferta de bens e serviços públicos, além de respeitar sua morfologia e tipologia específica.

O PDR 2021 (Art.65) define duas categorias de Zeis. A Zeis 1 são “assentamentos habitacionais de população de baixa renda, surgidos espontaneamente, consolidados, carentes de infraestrutura básica, que não se encontram em áreas de risco ou de proteção ambiental, passíveis de regularização urbanística e fundiária, bem como de construção de habitações de interesse social (HIS)”. A Zeis 2 “são áreas com lotes ou glebas não edificadas ou subutilizadas, dotadas de infraestrutura e de serviços urbanos e destinadas, prioritariamente, às famílias originárias de projetos de urbanização ou como conjuntos habitacionais de interesse social promovidos pelo poder público, que necessitem de regularização urbanística e fundiária, nos termos da legislação específica”.

Para a transformação dos assentamentos precários, o reconhecimento das comunidades em Zeis é uma das ações do Estado mais importantes para proteger os territórios ocupados por famílias pobres diante das pressões do mercado imobiliário. Quando essas zonas são reconhecidas como Zeis, os parâmetros urbanísticos específicos são definidos na Lei do Prezeis (1995) que determina que as intervenções de requalificação devem ser realizadas mediante um plano urbanístico específico para cada Zeis.

A elaboração do novo Plano Diretor colocou à prova os instrumentos que garantem a proteção e caracterização das Zeis como espaços singulares na cidade. No discurso, a intenção era construir uma cidade mais integrada e harmônica. Mas o contraste entre as formas de ocupação do território está cada vez mais gritante ao redor das Zeis 1. Isso acontece principalmente em áreas de grande atividade imobiliária, como as frentes de água, seja do mar (Zeis Brasília Teimosa) ou do rio (Zeis Coque, Coelhos e Santo Amaro) ou no entorno de centros comerciais (Zeis Entra Apulso). Além dos impactos na paisagem urbana, a diferença entre as formas de ocupação se torna uma ameaça, com risco de levar à expulsão da população que reside nas Zeis.

Inspiradas na legislação existente para atenuar a disparidade de padrão construtivo nas proximidades de edifícios e sítios de preservação histórica, as representações populares propuseram a criação das Zonas Especiais de Interesse Social de Amortecimento de Potencial Construtivo (Zeis-APC). Essa iniciativa visava minimizar a pressão do mercado imobiliário sobre o entorno de Zeis. Propostas similares foram apresentadas para espaços adjacentes às áreas públicas livres (praça e parques) e das frentes de água. Contudo, parece que estamos enfrentando um refluxo dos avanços conquistados com esforço para consolidação das pautas reforma urbana. Legislações recentes estão tendendo a relativizar e flexibilizar o reconhecimento das características específicas das zonas de interesse social na cidade. O PDR-2021, por exemplo, permitiu que os imóveis localizados em Zeis próximas aos eixos de transporte público adotem os mesmos parâmetros urbanísticos das Zonas de Reestruturação Urbana (ZRU), ampliando assim o potencial construtivo nas bordas das Zeis.

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O Potencial Construtivo é uma medida referente quantidade máxima de construção permitida em uma determinada área, geralmente em termos de área construída (metro quadrado) ou altura de edifícios. Seu aumento implica no adensamento construtivo urbano e consequente necessidade de aumentos nas infraestruturas urbanas ao redor, tais como sistema viário, água, esgoto, energia, calçadas, entre outros

A decisão de ampliar de forma intensa o potencial construtivo dos terrenos das Zeis próximas às ZRU, combinado com um eventual afrouxamento do parâmetro que restringe o remembramento de lote, pode resultar na reconfiguração do perímetro das Zeis. Isso significa uma redução da área protegida e se configura como um grande retrocesso em relação à proteção dessas áreas. Esse temido retrocesso aconteceu com a aprovação da Lei nº 18.772/2020 que permite o remembramento (junção) de lotes em Zeis, mesmo que ultrapassem o limite de 250m² estabelecido na Lei do Prezeis para os lotes nessas áreas. Neste caso, o remembramento abre margem para que os incorporadores imobiliários adquiram terrenos menores, para posteriormente remembrá-los, transformando-os em terrenos maiores que possibilitem a construção de empreendimento imobiliários de porte, o que gradativamente acarreta na mudança do perfil social da Zeis com a expulsão gradativa destas famílias.

Transformar CIS em Zeis para maior segurança da população pobre

As Zeis ainda são um instrumento de proteção da moradia popular. Sua defesa é uma luta contínua que se acirra ainda mais a cada revisão da legislação urbanística. Mas, como demonstra as mudanças expostas acima e que vão fragilizando este instrumento, é sabido que o fato de ser Zeis não garante em definitivo a segurança da permanência. Um exemplo recente é o caso de Vila Esperança Cabocó, reconhecida como Zeis desde 1994 e localizada no bairro nobre do Monteiro. As famílias ali instaladas precisaram deixar a área onde possuíam os seus vínculos identitários para viabilizar a construção de uma ponte pelo poder público municipal.

Não se pode negar que os moradores das Zeis 1 têm maior respaldo para resistir à pressão imobiliária, sobretudo naquelas Zeis localizadas em áreas planas de bairros valorizados. Por esta razão, os segmentos populares reivindicaram o reconhecimento de todas as CIS como Zeis no novo Plano Diretor. O pleito foi parcialmente atendido. Além da criação da Zeis Pilar, outras 162 CIS já estavam dentro das ZEIS existentes, e mais 55 CIS foram incorporadas no entorno das 21 Zeis já existentes, cujos limites foram expandidos. Em resumo, das 545 CIS identificadas em 2014, o PDR incorporou 218 CIS em 70 Zeis 1.

Recentemente foi criada a Zeis Rio Azul (LM 19.093/23), antes considerada uma CIS no levantamento de 2014. Apesar disto, ainda existem 326 CIS desprotegidas, isto sem considerar as novas comunidades que surgiram a partir de 2015. Assim, os moradores dessas áreas são os que se encontram em uma em situação de maior vulnerabilidade socioambiental e necessitam que o poder público assuma sua função de promover o direito à moradia, constitucionalmente legitimado.

Até o momento, a Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos) em vigor, Lei 16.176/96, ainda não foi revisada para ficar coerente com o PDR 2021. Assim, há um árduo percurso para mudar o zoneamento estabelecido no Plano Diretor ou na Leos, sendo necessário que o poder executivo envie um projeto de Lei Municipal para aprovação pelo poder legislativo e posterior sanção do Prefeito. Por isto, para uma CIS, ou várias CIS contíguas, serem reconhecidas como uma nova Zeis 1 são necessários vários passos.

Primeiro precisa que a comunidade solicite a transformação em Zeis à URB-Recife que encaminha para as instâncias do modelo de gestão das Zeis, da qual participam representantes do poder público e das Zeis. O Fórum do Prezeis, tem que aprovar a solicitação e a Câmara Técnica de Urbanização em conjunto com a Câmara Técnica de Legalização fazem a visita em campo para reconhecimento da área e verificação de atendimento dos critérios para transformação em Zeis. Se a análise técnica constatar a viabilidade, as duas Câmaras assinam um parecer favorável, a URB-Recife elabora o memorial descritivo descrevendo o perímetro da nova ZEIS. Em seguida, o processo é encaminhado à Coordenação do Fórum do Prezeis que o envia à Prefeitura da Cidade do Recife para elaboração do Projeto de Lei (PL). O Prefeito, por sua vez, propõe o PL à Câmara Municipal do Recife. Na Câmara, são realizadas as discussões e votação, com a aprovação, o PL vai para sanção do Prefeito. Caso seja sancionado, é publicado no Diário Oficial do Município, tornando-se Lei Municipal.

O processo de disputa pela ampliação do potencial construtivo da terra urbana revela a contradição entre a cidade mercadoria e a cidade democrática. A luta desigual, intermediada pelo Estado em seu duplo papel, ameaça a prevalência do valor de uso do solo urbano como uma condição fundamental do acesso ao direito à cidade por seus moradores. Por isso, os atores comprometidos com as causas democráticas em prol de uma cidade menos fragmentada e desigual precisam estar atentos durante a próxima revisão da Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos/96), prevista para a próxima gestão municipal. Essa revisão é uma grande oportunidade ampliar a proteção das famílias de baixa renda que vivem nas CIS, sobretudo em áreas valorizadas sujeitas à intensa pressão do mercado imobiliário formal.

As perspectivas para o fortalecimento do modelo de gestão das Zeis, garantidas pela Lei do Prezeis e para as conquistas adquiridas apontam para a necessidade de consolidar a política habitacional do município, com a transformação de todas as CIS em Zeis. Resta a esperança de que a resistência das Zeis e do Prezeis encontre o suporte não apenas no arcabouço jurídico institucional, mas sobretudo na cultura técnico-política que envolve as organizações sociais e no imaginário da população pobre que, em sua labuta cotidiana pela sobrevivência, constrói sua moradia e as estende às novas gerações com a tarefa de continuar a luta por direitos.

*É professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (UFPE), representante da UFPE no Conselho da Cidade do Recife (Concidade) e no Fórum do Prezeis, coordenadora da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA/UFPE), pesquisadora do Observatório da Metrópoles (Núcleo Recife). Atuou por 15 anos (1991 a 2005) nas administrações públicas (municipal, estadual e federal) coordenando projetos de desenvolvimento urbano.

**É professor assistente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) membro da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA /UFPE) e pesquisador do Observatório da Metrópoles (Núcleo Recife).

AUTOR
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