Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Atender ao sonho da propriedade é suficiente para transformar as cidades?

Marco Zero Conteúdo / 31/05/2024
A foto retrata um contraste marcante entre duas áreas de vida diferentes. De um lado, há um aglomerado de casas improvisadas com telhados de metal ondulado, todas próximas ao longo de um curso d'água poluído, de cor verde escuro. As estruturas parecem ser construídas com diversos materiais e estão densamente situadas, sugerindo um assentamento informal ou uma favela. Do outro lado, ao fundo, há edifícios modernos de grande altura que dominam o horizonte com sua aparência uniforme e estruturada, indicando uma área urbana mais afluentes. O céu está parcialmente nublado, permitindo uma boa iluminação natural da cena.

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

por Fabiano Rocha Diniz* e Ronaldo Campos**

Nas cidades da Região Metropolitana do Recife (RMR), a Regularização Fundiária Urbana (REURB) parece estar sendo impulsionada pelo desejo de acesso ao título de propriedade da terra. Nos últimos anos, essa tendência tem sido reforçada pelo novo quadro legal trazido pela Lei 13.465/2017, que orienta a ação de distintos atores sociais, seja do Poder Judiciário, dos governos  municipais ou dos cartórios de registro. Na maioria das vezes, suas intervenções não consideram os possíveis impactos da titulação, como produto estratégico no processo de regularização, na transformação dessas cidades. Diante disso, pode-se perguntar: muitos títulos de propriedade de áreas ocupadas por populações vulneráveis são suficientes para a garantia de permanência dos moradores? Esses títulos também podem ser a garantia de mudança na qualidade das cidades?

O comprometimento desses atores com essa transformação deve contribuir para a melhoria da qualidade de vida nos territórios titularizados. No âmbito do Direito à Cidade, a REURB é um instrumento de política urbana essencial à promoção da segurança jurídica para a fixação dos moradores de Núcleos Urbanos Informais (NUI). Porém, o apoio da regularização não deve se limitar a isso, mas também incluir aspectos como acesso a infraestruturas e serviços urbanos de qualidade, moradia segura e saudável — em terrenos livres de riscos — e espaços públicos acolhedores. Deve-se oferecer aos ocupantes condições para aproveitarem mais os benefícios propiciados pela urbanização. O Direito à Cidade ainda pressupõe a participação dos cidadãos nas decisões sobre que cidade se deseja e se deve construir.

Todos esses pressupostos embasam o ideal de regularização plena, trazido no bojo da luta pela Reforma Urbana e adotado na formulação de políticas públicas de habitação de interesse social desde a primeira gestão Lula da Silva, em 2003. Para ser plena, a regularização deve tratar de aspectos qualitativos do espaço habitado e não apenas do processo legal de garantia de segurança fundiária aos moradores. Desde 1987, esses elementos fundamentam o processo de regularização fundiária e urbanística do Plano de Regularização de Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis) do Recife, iniciativa popular de política pública que persiste até hoje. A gestão dessa política sintetiza e corporifica um instrumento a serviço da REURB em sua concepção plena, pois se dá em instâncias de participação democrática. No nível local das Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social), há as Comissões de Urbanização e Legalização. Para o conjunto das Zeis, tem-se o Fórum do Prezeis, espaço de deliberação coletiva apoiado por Câmaras Técnicas de Urbanização, Legalização, Meio Ambiente e Trabalho e Renda.

Entretanto, nos 37 anos de operação do Prezeis, poucas Zeis do Recife são beneficiadas pela regularização plena. Este quadro contrasta com o processo recente de regularização fundiária na RMR, que prioriza a entrega de títulos de propriedade sem maiores pretensões em relação ao acompanhamento das demandas sociais, urbanísticas e ambientais das cidades. Para tentar solucionar essa questão, a Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco (CGJ-PE) criou o programa Moradia Legal, em 2018. Esse programa visa a orientar os entes públicos sobre como proceder à REURB de interesse social — modalidade aplicável em NUIs ocupados por população de baixa renda —, ajudando-os a efetivar o registro imobiliário nos cartórios.

Desde 2021, a CGJ-PE firmou convênio com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), visando a incluir inovações, sobretudo tecnologias sociais suportadas por sistemas de processamento de dados, e aprofundar o alcance da REURB-S no estado. A parceria tem tido êxito: entre os anos de 2020 e 2024, foram registrados 23.850 títulos no estado, sendo 8.944 na RMR — 3.411 deles no Recife. Este desempenho, em especial na RMR, tem provocado preocupações e críticas por parte de movimentos por moradia digna e de instituições envolvidas na execução de projetos com alvo na regularização e titularização da propriedade.

A imagem é um gráfico de barras intitulado “Evolução do Quantitativo de Títulos Emitidos na RMR [2019-2024]”. Ele mostra a progressão da quantidade de títulos emitidos em uma região específica (RMR) ao longo de seis anos. O eixo vertical começa em 0 e vai até 2500 em incrementos de 500, indicando o número de títulos. O eixo horizontal lista os anos de 2019 a 2024. Cada ano tem uma barra correspondente que representa o número de títulos emitidos. As barras aumentam de altura da esquerda para a direita, começando com a barra mais curta em 2019 e terminando com a barra mais alta em 2024, sugerindo uma tendência de aumento no número de títulos emitidos ao longo desses anos.
Fonte: Fonte: Diniz e Campos, 2024, com base em dados do CGJ-PE.

Temem-se prejuízos para territórios e comunidades informais advindos de REURB-S pautadas na titulação em larga escala, visto que a individualização da propriedade particular e a garantia coletiva da segurança jurídica devem andar lado a lado. Um dos riscos possíveis é a gentrificação, processo em que os beneficiários da REURB-S vendem ou cedem seu direito real de propriedade a terceiros. Estes não necessariamente se enquadram no perfil de interesse social e podem promover alterações profundas nos padrões de ocupação dos NUIs, levando à valorização das terras e à progressiva expulsão — ainda que consentida — dos moradores alvos da regularização.

Essa é uma ameaça que intervenções como a do Moradia Legal podem representar, à qual os poderes públicos e, sobretudo, as comunidades beneficiadas têm que estar atentos. Deve-se evitar o desvirtuamento de instrumentos a serviço dos princípios do Direito à Cidade e do reconhecimento da posse como exercício da função social da propriedade, base da legislação fundiária nacional e dos processos jurídicos de registro da titularidade das terras. Não se pode permitir desestruturar as diretrizes da Política Urbana Nacional, nem afastar a condução das políticas de regularização do princípio de gestão democrática. Interesses políticos também podem gerar desvios de objetivos-chave, ao minimizar riscos socioambientais a que as comunidades estão expostas e consolidar condições não conformes em favor de um maior número de títulos a serem entregues.

Nesse sentido, é possível perguntar: qual a chave para afastar os riscos de uma gestão que favoreça privilégios políticos e oriente mal os investimentos sociais na REURB-S? Como barrar a tendência de que o processo de titulação sirva indevidamente à oferta de terras regularmente registradas a agentes privados, em detrimento do atendimento aos direitos dos ocupantes? É necessária a revisão no processo de regularização fundiária, apostando na qualidade ao invés da quantidade, sem estimular metas de titulação em massa, mas intensificando os investimentos em capital social e mais justiça urbana. Para isso, deve-se buscar uma coordenação das políticas públicas urbana, socioambiental e fundiária, fortalecendo estruturas de gestão que estimulem processos participativos e mecanismos de decisão comunitária. Uma nova configuração de REURB-S deve também resgatar práticas comunitárias nas áreas de intervenção, trazendo-as ao centro da condução do processo.

Além dos aspectos jurídicos de registro de títulos de propriedade, tratados pela Lei 13.465 como o objetivo maior da REURB, é preciso aprofundar as experiências de elaboração dos Projetos Urbanísticos, que atualmente são vistos como acessórios ao processo de regularização. Estes projetos devem ser entendidos como estruturadores, pois estabelecem as diretrizes das condições de consolidação dos NUIs, apontando o que, onde e como deve se dar a titulação. Os Projetos Urbanísticos têm o pendão de indicar o caminho e as ações necessárias para a transformação real do habitat nas áreas alvo, pois sem eles a regularização nunca será plena.

Além disso, outra preocupação é como lidar com a pressão do mercado imobiliário sobre os moradores beneficiados e evitar a sua expulsão de áreas regularizadas, urbanizadas e requalificadas. Quanto a isso, a barreira contra a gentrificação, o Recife tem algo a ensinar. O art. 72 da Lei Complementar 02/2021 estabelece que “a regularização jurídico-fundiária dos assentamentos habitacionais de população de baixa renda será precedida da transformação da respectiva área em Zeis”. Esta vinculação da aplicação dos instrumentos a serviço da REURB-S a um instrumento de ordenamento territorial cria uma barreira clara e objetiva ao risco de substituição da população alvo de investimentos públicos. Nesse sentido, uma conquista recente merece destaque: a ampliação de 21 Zeis no Plano Diretor, em 2021, com a incorporação de 52 CIS a elas, além da criação de uma Zeis tipo 1 — áreas de ocupação consolidadas — e 13 Zeis tipo 2 — conjuntos habitacionais ou terrenos disponíveis para abrigá-los —, em 2023. Ademais, a maior parte das melhorias habitacionais e construção de conjuntos habitacionais se concentraram nessas últimas ZEIS.

Por ora, salientamos que quantidade de títulos emitidos não é o único indicador da eficiência da gestão pública para minimizar as desigualdades socioambientais das cidades. Ela participa do conjunto de políticas de regularização urbanística e fundiária, respondendo apenas parcialmente pelo sucesso das iniciativas nesse campo. Não basta o título de propriedade para transformar as cidades metropolitanas. Se conduzida num contexto de integração de políticas públicas setoriais, como as de melhorias urbanísticas, ambientais e habitacionais, a REURB terá ampliado o seu potencial de interferir no ordenamento territorial metropolitano e de promover transformações qualitativas no habitat social das cidades da RMR.

*Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife) e da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA)

**Professor da Universidade Federal do Tocantins (UFTO), doutor em Administração Pública e Políticas Públicas pela Deutsche Universität für Verwaltungswissenschaften Speyer. Pesquisador do Observatório das Metrópoles (Núcleo Recife) e da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA)

AUTOR
Foto Marco Zero Conteúdo
Marco Zero Conteúdo

É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.