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Crédito: Instituto Meu Mundo Mais Verde
Uma problemática obra na praia de Maria Farinha, no município do Paulista, litoral norte de Pernambuco, vem se arrastando desde o ano passado. A briga foi parar na Justiça graças a ativistas ambientais locais. Esse é mais um episódio do processo de erosão costeiro no litoral pernambucano, sobretudo em áreas urbanizadas, por conta do avaço das construções.
De um lado, os moradores de três condomínios querem – e por isso se dispuseram a bancar – a colocação de um muro de contenção em blocos de concreto. Eles têm apoio da prefeitura, que se comprometeu a, finalizado o serviço, recuperar a avenida já degradada, num acordo de cooperação.
Acontece que o projeto, que prevê blocos de cinco metros de altura e 2,5 toneladas numa extensão de 300 metros, foi denunciado por uma série de razões, das licenças ambientais aos danos que a praia já vinha sofrendo. Isso porque o município tentou, há alguns anos, barrar o mar com uma outra obra, de bagwall (com sacos geotêxteis), também de estrutura fixa. A estratégia, além de não resolver o problema, ainda aumentou a erosão no local. Agora, a nova construção prevê a eliminação da faixa de praia onde acontecem desovas de tartarugas.
O correto, dizem especialistas e estudos já contratados pelo Governo de Pernambuco em parceria com universidades, é conter a erosão com um processo de engorda das praias, a exemplo do que foi feito, em 2013, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife. Um investimento, aliás, que custou R$ 41,5 milhões e agora está ameaçado por conta do projeto da nova orla na cidade, como mostrou reportagem da Marco Zero.
Os condomínios em questão, na praia de Maria Farinha, são Jardim dos Coqueirais, Porto Bahamas e Porto Athenas. A obra é de execução da empresa Premier Consultoria, Planejamento e Gerenciamento em Engenharia. Os condôminos, claro, querem proteger o patrimônio da destruição. Há que se dizer, porém, que essa destruição vem se acelerando rapidamente por conta de apostas tidas como erradas por cientistas e ambientalistas.
Essas apostas terminaram desequilibrando ainda mais aquilo que a ciência chama de “perfil praial”. E pior: transferindo o processo erosivo às praias adjacentes, num “efeito “dominó”, que vai do sul para o norte, acompanhando a predominância das correntes. No futuro próximo, se a questão não for bem resolvida desde já, irá comprometer também as praias seguintes.
O Instituto Meu Mundo Mais Verde de Educação e Meio Ambiente foi o responsável por denunciar a obra em Maria Farinha. Segundo o gestor ambiental e idealizador da organização, Lipe Meireles, “a obra encontra-se dentro da praia e desrespeita as legislações ambientais federal, estadual e municipal, trazendo grandes danos ao meio ambiente e interferindo na dinâmica de sedimentos e construção natural das praias”.
A denúncia foi parar no Ministério Público Federal (MPF) e resultou numa Ação Civil Pública (ACP). Em decisão liminar, em junho, a Justiça Federal de Pernambuco acolheu a ação. Os réus recorreram e o processo agora está em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5).
A decisão em primeira instância determinou que a obra fosse paralisada e os blocos de concreto já instalados fossem retirados, para que seja reconstituído o perfil praial, degradado também pela construção de parte do muro. A prefeitura do Paulista, porém, recorreu, através de agravo de instrumento. A gestão municipal alega que tem competência para licenciar a obra.
Enquanto o processo se avoluma com disputas técnicas e jurídicas, os danos ambientais se revelam no local. “O negócio está se devastando rápido demais e, agora, vêm as marés grandes”, alerta Lipe, que também é especialista em auditoria e perícia ambiental e mestre em Engenharia e Tecnologia Ambiental. Lixo e água estão se acumulando, com odor forte.
“A erosão costeira na área desprotegida já derrubou um coqueiro e um poste em decorrência do muro, há restos de construções em toda a área e acúmulo de sedimentos obstruídos pelo muro”, denuncia o instituto nas redes sociais.
Na ACP, o procurador da República Edson Virgínio considerou que o licenciamento ambiental de obras de contenção de erosão costeira é de competência ambiental do Governo do Estado. A prefeitura do Paulista requereu, ainda em 2019, a autorização. No início de 2020, houve reunião do Comitê Gestor do Projeto Orla Paulista e, na ocasião, a representante da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH) informou que, embora o município tenha requerido a autorização para o empreendimento, a CPRH entendia que, para esse caso, seria necessário um licenciamento tríplice (licença prévia, licença de instalação e licença de operação), por conta do “significativo impacto ambiental”.
Mesmo assim, a reunião encerrou-se com a aprovação do projeto. A representante da CPRH e o representante da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Semas-PE) se abstiveram de votar. Em agosto de 2020, a CPRH foi ao local, após denúncia, e constatou que a obra já estava em andamento sem autorização da agência nem do órgão patrimonial responsável pela gestão do terreno, a Superintendência do Patrimônio da União em Pernambuco (SPU-PE). Lavraram-se autos de infração com penalidade de embargo da obra e de multa.
Em março de 2021, houve uma nova denúncia porque as obras continuavam. Foi quando a construtora Premier apresentou a licença ambiental expedida pela Prefeitura do Paulista, junto com um ofício de autorização da SPU-PE. Os responsáveis pela obra ampararam-se num convênio de delegação de competência para licenciamento ambiental firmado com a CPRH em 2019. Estava dado o imbróglio que segue até hoje na disputa judicial.
“Com o convênio, tornou-se possível que a prefeitura licenciasse a si mesma, fiscalizasse a si mesma e exercesse o controle ambiental das atividades potencialmente poluidoras que protagoniza em hipóteses de competência estadual”, disse o procurador na peça da ação.
Diante disso, foi solicitada a paralisação da obra, a apresentação dos documentos e licenças necessárias, a remoção dos blocos já instalados e a recuperação da área já degradada. Por conta do pedido de recurso, a questão segue ainda sem desfecho na Justiça.
A Prefeitura do Paulista sustenta que está amparada pelo convênio com o Governo de Pernambuco e que paralisar a obra pode trazer ainda mais prejuízos ao meio ambiente e à estrutura urbana. A gestão também alega que, em 2019, a CPRH concedeu licenciamento para um projeto igual, com a mesma tecnologia de blocos de concreto pré-moldados. O município ainda diz que a Agência não se manifestou dentro do prazo legal.
Os condomínios, por sua vez, argumentam que o projeto servirá também para possibilitar o acesso público da população à praia, já o processo erosivo prejudica não só as propriedades privadas, mas também o lazer da população e o trabalho dos vendedores ambulantes. Alega ainda que a obra irá substituir a contenção já existente e outrora autorizada pela CPRH.
Em nota à reportagem, a CPRH confirmou que a prefeitura do Paulista detém a competência para o licenciamento ambiental da referida obra, por meio de convênio de delegação de competência, celebrado em 2019, nos termos autorizados pela Lei Complementar n° 140/2011.
Porém, como a obra já havia sido anteriormente embargada e multada pela SPU-PE, a CPRH requereu ao munícipio informações adicionais referentes à obra e às fases do procedimento licenciatório, que não foram apresentadas até hoje, a exemplo dos estudos de impactos ambientais necessários, bem como da manifestação da SPU-PE à realização e continuidade da obra.
Alguns desses estudos necessários, diga-se de passagem, teriam que ser realizados por uma equipe multidisciplinar e formada por profissionais legalmente habilitados, e não apenas por servidores da prefeitura.
A Agência também informou um ponto que pode mudar tudo: a revisão da Resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) 01/2018. A mudança prevê que a atividade de obras que impliquem em mudança na dinâmica marinha voltará a ser exclusiva do Estado de Pernambuco. Essa proposta já foi aprovada no Grupo de Trabalho (GT) de revisão da resolução e será encaminhada para aprovação no pleno do Consema.
Diante dessa possível novidade, a CPRH disse que “será analisada qual será a melhor forma para regularizar o empreendimento”.
ATUALIZAÇÃO
Após a publicação desta matéria, o engenheiro de pesca Assis Lacerda procurou a Marco Zero em defesa da obra. Mestre em oceanografia biológica e pós-graduado em planejamento urbano e rural e também em desenvolvimento municipal, é ele quem assina o relatório dos danos ambientais da orla do Paulista. Assis foi por muitos anos servidor da CPRH, já tend sido chefe da Unidade de Gerenciamento Costeiro, e depois foi cedido ao município até a gestão passada. Seu trabalho é citado pela prefeitura no processo que tramita da Justiça.
Ao contrário das fontes ouvidas pelo reportagem e do que consta no parecer do MPF, o especialista defende que as estruturas de bagwall foram capazes de, em partes, resolver o problema em questão, tanto é que suportaram fortes marés e os invernos nos ultimos anos, segundo Assis. Crítico da atuação e da capacidade técnica das ONGs envolvidas – a quem atribui uma atuação política – , ele é um defensor da proposta que transfere aos municípios o licenciamento e a gestão de seus territórios costeiros.
Também defende parte do litoral do Paulista, com destaque para as praias de Nossa Senhora da Conceição/Maria Farinha, Pau Amarelo e Janga, como sendo de emergência civil, para tratar das situações mais críticas de erosão. Além disso, Assis, que julga haver plantação de desinformação junto ao MPF, avalia que o muro em frente aos condomínios não está na praia e não interrompe a dinâmica dos sedimentos e correntes marinhas. “Eu argumentei tecnicamente junto com o engenheiro da defesa civil municipal e o município decretou emergência”, afirma.
Foi com base no relatório de Assis e na decretação de emergência que as obras e ações de respostas à situação foram autorizadas, na época com a chancela do Governo de Pernambuco, através de parecer técnico, além da autorização da Marinha e da SPU. Portanto, na visão do engenheiro, cai por terra o argumento do MPF sobre a invalidade da autorização ambiental da obra do muro.
A coordenadora do gerenciamento costeiro da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Andrea Olinto, explica que o Governo de Pernambuco, junto com MPF e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), além de governos municipais, vêm investindo em uma nova estratégia de enfrentamento da erosão costeira, com destaque para as engordas, na tentativa de mudar esse cenário de obras pontuais com estratégicas caras, rígidas e fixas que não resolvem o problema, além de serem feias.
“Ao longo do litoral pernambucano, são vários os exemplos onde tais projetos não cumpriram com a função de proteção costeira e acabaram por transferir o problema a áreas contíguas, além de representarem prejuízos ao erário público”, avalia Andréa, que tem especialização em gestão da zona costeira pela Bournemouth University, da Inglaterra, e trabalha no governo desde 1990.
Em 2005, uma ação cooperativa e interinstitucional resultou no Projeto de Monitoramento Ambiental Integrado da Erosão Costeira nos Municípios do Recife, Olinda, Paulista e Jaboatão dos Guararapes (Projeto MAI), com o objetivo de indicar medidas emergenciais e definitivas.
Andréa lembra que, por meio do Projeto MAI, a UFPE adquiriu equipamentos de última geração para estudos e pesquisas no assunto, contando com capacidade intelectual e científica instalada, convertendo a universidade em centro de excelência, nacional e internacional.
Em 2008, a Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe) investiu mais de R$ 1 milhão no aprofundamento dos estudos do MAI, o que possibilitou a identificação e o mapeamento das jazidas de areia submarinas fundamentais para a regeneração das praias.
“Ao se recompor o ambiente natural, valoriza-se, automaticamente, toda a cadeia produtiva dependente de um ambiente praial preservado e de destacável beleza cênica”, frisa a coordenadora. Em 2019, tanto o MPF como a Semas promoveram uma capacitação para gestores costeiros estaduais e municipais nesse intuito.
“Vale destacar que, a partir da instalação da obra dos condomínios, a praia só possuirá parte emersa durante os períodos de baixa-mar. Sendo assim, estando sob ação direta das ondas nos momentos de maré cheia (preamar), interferindo nos padrões naturais de incidência de energia e transporte sedimentar ao longo do trecho (na própria praia e em suas adjacências)”, acrescenta Andréa, reforçando os impactos de se apostar em estruturas fixas, que levam ao “efeito dominó” de erosão.
Atualizado em 12/8/21
Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com