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“Bolsonaro ainda espera sua sentença, mas eu já estou condenado pelo resto da vida”

Inácio França / 09/09/2025
A foto mostra um momento de enterro em um cemitério. No centro da cena, um caixão de cor dourada com detalhes marrons e alças douradas está sendo baixado à cova com a ajuda de cordas seguradas por alguns homens. Ao redor, cerca de dez pessoas, a maioria vestida de preto ou com roupas escuras, acompanham a cerimônia em silêncio, muitas usando máscaras de proteção no rosto. No fundo, há árvores verdes e arranjos de flores depositados próximos ao túmulo, reforçando o ambiente de despedida e luto. A expressão corporal dos presentes transmite tristeza e respeito.

Crédito: Acervo pessoal

A frase que dá título a esta reportagem é do professor de História e youtuber Flávio Muniz. Ele sabe que o ex-presidente não está sendo julgado pelos crimes contra a saúde pública durante a pandemia. Mas, para quem perdeu parentes e amigos ou sofreu em uma UTI infectado pela covid-19, como é o caso do professor, o julgamento retomado hoje no Supremo Tribunal Federal (STF) tem um significado adicional, que não consta da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet.

Muniz e as pessoas que compartilham essa dor aguardam uma possível condenação também como uma forma de punir o ex-presidente por incitar o descumprimento das regras sanitárias, prevaricação, charlatanismo, uso irregular de verbas e infração de medidas sanitárias. Como essas acusações foram arquivadas pelo ex-procurador-geral Augusto Aras, Jair Bolsonaro nunca poderá ser julgado por ajudar a propagar a doença que matou 700 mil pessoas no Brasil.

“Anistia é não olhar, é esquecer. Eu me dou ao direito de não esquecer porque eles não podem se sentir confortáveis com nosso esquecimento”, desabafa Muniz, doutorando pela Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.

Responsável pelo canal Caçador de Histórias, especializado em contar a história dos povos africanos, Muniz passou 31 dias na UTI – dos quais 17 em estado de coma –, no início de 2021, depois de ser infectado quando faltavam poucos dias para tomar a primeira dose da vacina. Meses depois, seu filho Lucas Khristen, de 24 anos, foi contaminado e acabou morrendo no dia 13 de julho. É por isso que ele não se permite esquecer.

Também é por isso que ele considera como um ataque covarde o esforço do governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de articular o centrão para arrancar a anistia do Congresso Nacional.

Em seu perfil pessoal, Muniz espera que a 1ª Turma do STF não ceda às pressões da extrema-direita. “Desejo que a condenação seja a mais dura. Mas a pena dele nunca será proporcional à minha: viver o luto que não acaba, sepultar meu filho sabendo que não foi acaso, mas política deliberada de morte”.

O julgamento e os gatilhos da memória

Em entrevista para a MZ, o professor contou que faz questão de acompanhar não apenas o julgamento, como todas as etapas do processo contra o ex-presidente e os demais integrantes de seu governo que planejaram o golpe de Estado. E isso o faz reviver tudo o que passou em julho de 2021.

É disso que Flávio Muniz se recorda:

Eram 10h55 da manhã, o telefone toca. E eu conhecia aquele tipo de ligação, porque era muito comum no hospital a gente ouvir isso. Os médicos ligarem pra família… a assistente social só ligou e falou assim pra mim: ‘Flávio – ela já me conhecia, todo mundo lá me conhecia, já sabiam da minha história – a doutora pede pra você vir aqui urgentemente no hospital, pra resolver um assunto com você’. Aí, na hora que ela falou assim, eu só falei ‘ah, tá’.

Desliguei o telefone… lógico, o chão fugiu dos meus pés na hora. Chamei minha esposa, disse: ‘se arruma, nós vamos pro hospital. Acho que o Lucas não resistiu’. Ela falou: ‘não, Flávio, ele tava bom ontem, ela falou que ele ia andar hoje’. Eu falei: ‘não, não, não é isso’. Não me lembro de como fiz essa viagem aqui de casa até o hospital. Na hora que eu cheguei no hospital, a assistente social não me falou nada, ela só segurou no meu braço, minha esposa começou a chorar, aí fomos indo.

Nós subimos, foi no terceiro andar da UTI, fomos lá, chegamos no terceiro andar, fiquei na salinha de espera da UTI, eu já tava, assim, os olhos cheios d’água, já chorando. Na hora que a médica chega, ela me olha, e ela ajoelha no chão, eu tô chorando, eu ajoelho junto com ela, ela fala pra mim: ‘eu fiz o que eu pude, eu fiz o que eu pude…’

Nem quis saber o que tinha acontecido de fato na hora. Eu falei: só quero ir lá ver ele. Eu só quero ir lá ver ele. Aí eles me deixaram, eu fui lá, cheguei lá, eu abracei ele, ele tava enroladinho no tecido, no lençol da cama, como eles arrumam o corpo, rosto quietinho, e eu abracei ele. Fiquei uns cinco, dez minutos ali, falando tudo com ele, sabe, eu acho que muita gente ora a Deus, aquele dia eu orei ao meu filho, pra ver se ele me ouvia. Foi um momento muito especial pra mim”.

Flávio Muniz era evangélico; hoje, aos 49 anos, se considera um cristão desigrejado, ou seja, sem igreja. E é impressionado em saber que o filho, tão parecido fisicamente com ele, morreu com uma cicatriz nas costas exatamente igual a uma que marca seu próprio corpo, resultante de drenos colocados no mesmo ponto quando a doença agravou.

“Fui eu quem escolheu e comprou o berço dele, fui eu quem escolheu e comprou a urna funerária dele”, contou o emocionado youtuber. As manifestações bolsonaristas no 7 de setembro o encheram de indignação: “Aos que choram por Bolsonaro, mas nunca derramaram uma lágrima pelos enlutados: saibam que somos nós que já estamos condenados”.

Sankofa

Muniz recorre a um conceito africano para auxiliá-lo nas reflexões sobre a importância histórica do julgamento que ocorre no STF: sankofa.

“Trata-se de um pássaro que anda para frente, com os pés bem firmes no chão, mas que está olhando para trás, nos ensinando a recordar o passado para construir o futuro”, explica. Para ele, a anistia ou a absolvição de Bolsonaro seria o oposto disso, seria o mesmo que apagar a história.

Sem anistia

Nas redes sociais, centenas de outras vítimas e parentes de vítimas da covid vêm fazendo postagens pedindo a condenação de Bolsonaro e impulsionando uma mobilização contra a iniciativa para anistiá-lo:

AUTOR
Foto Inácio França
Inácio França

Jornalista e escritor. É o diretor de conteúdo da MZ.