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Bolsonaro em visita a Canção Nova, em 2018.
A pesquisadora guatemalteca Brenda Carranza estuda religiões e o fundamentalismo cristão há mais de três décadas. Acompanha o fenômeno das comunidades católicas desde que ganharam força no Brasil, ainda no final da década de 1980 e começo dos anos 1990, com a ascensão da Canção Nova e da Shalom.
Na esteira do movimento da Renovação Carismática, que sacudiu a igreja a partir da década de 1970 com práticas pentecostais, as comunidades cresceram e se fortaleceram. Hoje, são cerca de 1,5 mil comunidades no Brasil, que variam de simples grupos de oração a conglomerados com emissoras de televisão e missões na África, Europa, Estados Unidos e países da América Latina.
Morando no Brasil há várias décadas, Brenda vem acompanhando a radicalização do cristianismo no Brasil com apreensão. Professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do Laboratório de Antropologia da Religião da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a doutora em sociologia e estudiosa das religiões conversou com a Marco Zero sobre as correntes do catolicismo e o fundamentalismo cristão. Uma aula de como religião e autoritarismo podem caminhar lado a lado.
A Renovação Carismática Católica é um imenso movimento nacional e internacional e vai tendo vários desdobramentos. É um movimento orgânico, o que significa que ele tem suas secretarias, organização interna, ministérios, diretorias, grupos. Diferentes organizações. Tem seus grupos de oração, que são a base, tem as organizações municipais, estaduais, federais e depois se organiza por grupos temáticos. Até politicamente há representantes. Ao lado do movimento carismático, como um desdobramento, há toda uma lavra de jovens cantores, de grupos que cantam nas missas, que vão crescendo à sombra de sacerdotes que cantam, os padres cantores. Então, a renovação carismática tem três grandes pilares: evangelização pela mídia, evangelização com a ajuda da música e a vida no Espírito Santo. Esses padres cantores também vão ter apelo com os jovens, e vão cantar e ter seus grupos. O primeiro foi o padre Marcelo Rossi, temos também o padre Fábio de Melo, o Reginaldo Manzotti. Uma grande ala de sacerdotes, jovens e religiosos e religiosas que se dedicam, nos anos 90, a evangelizar através da música.
Junto com isso vão nascendo grupos que surgem na Renovação Carismática, mas vão criar suas próprias organizações. Vão surgir mais ou menos 1,5 mil novas comunidades católicas. Podemos colocar duas como centro: a Shalom e a Canção Nova. A Shalom, de Fortaleza, é uma das grandes comunidades que surgem no Nordeste. E se espalha. A Canção Nova nasce em Guaratinguetá (São Paulo) e se espalha por todo o Brasil. As duas são internacionais, vão exportar missionários para a Europa, África, Estados Unidos, Israel. Tem outra que se chama Ave Maria, não tem a força da Shalom, mas é internacional também.
Essas comunidades nascem com um carisma. O que é carisma? É alguma missão do Espírito Santo que convoca um indivíduo ou grupo e o grupo vai e faz essa missão. A missão da Canção Nova, por exemplo, é evangelizar pelos meios de comunicação. Ela nasce no ano de 1978. Padre Marcelo cresce na Canção Nova, padre Fábio de Melo cresce na Canção Nova. São filhotes dela. Outra comunidade forte é a que nasce com o padre Eduardo Dougherty, que é um sacerdote que tem o canal Século 21. Um canal católico, que oferece muitos programas carismáticos e não carismáticos. Ele está tão forte como a Rede Vida, a Canção Nova, como aqueles grupos que se reuniram com Bolsonaro em maio para solicitar ajuda e apoio para aumentar a concessão de suas redes no Brasil.
São todos renovação carismática? Quando se pensa em espiritualidade, sim. Mas são todos organizados pela Renovação Carismática? Não. A Renovação Carismática como movimento organizado é um. O padre Marcelo, com o império que ele tem em São Paulo, é outro, independente. Manzotti é outra coisa. A espiritualidade carismática é a obediência ao Papa, a devoção à Nossa Senhora, a fé no Sacramento, a reza do terço e a confissão. Esses são os cinco pilares da renovação carismática.
Tudo está atravessado por uma agenda. A agenda das questões feministas, da moralidade, da homossexualidade, do aborto. Tudo o que tem a ver com sexualidade, moral e bons costumes é uma agenda que perpassa aos grupos conservadores em geral. Eles podem ser conservadores católicos, evangélicos ou não religiosos. É a defesa de um tipo de família, heteronormativa, onde a sexualidade é somente para procriação. Uma agenda que percebe uma família mononuclear, não uma família extensa onde entra madrinhas, tias, mães solteiras. Esse tipo de família não é aceita, mas tolerada. Isso é um componente que atravessa todos os grupos conservadores. Esses grupos se colocam na defesa desse determinado tipo de família. É um traço do conservadorismo moral. Enquanto espiritualidade, em que se parecem os pentecostais evangélicos e as novas comunidades católicas? Se parecem na espiritualidade ligada ao Espírito Santo.
O pentecostes é a vinda do Espírito Santo (Ato dos Apóstolos, 2:42, que descreve o encontro dos apóstolos de Jesus Cristo com o Espírito Santo) e que é a base do pentecostalismo: línguas de fogo, que significa o fogo do Espírito Santos, que dá energia; o trecho “faz missionários para ir por todo mundo”; o fato de que eles estavam reunidos em oração e também que falavam em línguas (glossolalia) que só eles entendem.
Esse fenômeno de pentecostes é antigo e acompanha todo o cristianismo. Mas é no século XX que ele ganha muitíssima força no catolicismo a partir dos Estados Unidos, em 1978. Antes, os protestantes tinham tido a experiência pentecostal com a Azusa Street, que é um movimento que nasce no final do século XIX, passa por todo os Estados Unidos e chega ao Brasil. Wiliam Joseph Seymour, um pastor afro-americano, lidera o movimento. Em 1910, o pentecostalismo protestante chega ao Brasil, em Belém do Pará.
O padre Eduardo Dougherty e o Padre Haroldo é que inauguram o pentecostalismo católico no Brasil, com a Renovação Carismática, que nasce em Campinas (SP). Há o elemento do Espírito Santo tomar conta da pessoa, que canta e dança. Há também os elementos de exorcismo, quando espíritos do mal se apossam da pessoa. E para sair só com exorcismo, e só pode ser realizada por um padre na Igreja Católica. Nas evangélicas, a Universal do Reino de Deus começou com esses exorcismos. E com a ideia de que o espírito do mal iria se apossar de todos aqueles das religiões afro-brasileiras. Aí vem um fortíssimo ataque a essas religiões, sobretudo a umbanda.
As comunidades não falam em dízimo, é uma nomenclatura das paróquias. Eles falam em contribuição. Elas solicitam dinheiro para manutenção das obras. A Canção Nova, por exemplo, tem diferentes maneiras de arrecadar dinheiro. Tem o clube dos ouvintes, em que colaboram com a rádio. Tem a colaboração por boleto bancário para pagar a manutenção do canal. Você vai ter o apoio dos colaboradores, se fala muito em “sócios”, que recebem uma revista. Há coisas mais criativas, como ter uma maquininha para passar o cartão, assim como tem nas igrejas pentecostais evangélicas.
Em outubro de 2017, quando o Sesc de São Paulo trouxe a palestra de Judith Butler (filósofa norte-americana, uma das principais teóricas do feminismo) havia muitos grupos católicos e evangélicos protestando contra a vinda dela, com cartazes, dizendo que ela iria falar pró aborto – a palestra era sobre a ascensão do fascismo. Mas foi colocado assim. No Aeroporto de Congonhas houve agressão física quando ela foi embora. E identificaram grupos religiosos. De lá para cá, tenho observado que os grupos aumentam na maneira de se posicionar. São grupos que se colocam junto com o Pró-Vida, que é uma movimentação internacional dos Estados Unidos muito forte da direita norte-americana, ligada a Trump, aos republicanos. Esses grupos atravessam toda a América Latina, fazem muitos protestos em clínicas de aborto legal nos EUA, ficam na porta com crianças (a pesquisadora indica o documentário Jesus Camp sobre o assunto).
A ala pró-vida católica no Brasil discute a questão do aborto e muito provavelmente tem conexões com o grupo norte-americano, mas tem vida própria, tem uma pauta própria. As conexões são muito fluídas, os iguais se encontram: vão se conectando um com o outro pelas pautas. Se você vai a um carnaval promovido pelas novas comunidades, vai encontrar gente da Renovação Carismática. Se permeiam.
As novas comunidades católicas são muito diversas. Tem a Canção Nova e a Shalom com milhares de pessoas e também pequeniníssimas comunidades. As novas comunidades se unem para apoiar políticos que se posicionem contrários ao aborto ou que não passem a homofobia como crime. Todos esses grupos têm uma articulação: se não têm pernas para colocar um candidato, apoiam um político já eleito. É só pegar políticos católicos – como o ex-deputado federal Salvador Zimbaldi (PROS-SP) – que você vê que a pauta pró-vida é fundamental. Eles têm pauta comuns com os evangélicos. É só ver que agora em 2020, em plena pandemia, houve uma urgência em se discutir gênero.
O que nós estamos observando é um movimento mundial. A radicalização dos grupos de extrema direita é pautada pela violência, pela supremacia racial, pela supremacia sexual, onde a masculinidade vence qualquer tipo de emancipação feminina, onde o machismo é a maneira de se relacionar socialmente. Onde o autoritarismo ignora a complexidade da sociedade.
Eles estavam aí e a gente não via? Eu acho que eles estavam na surdina, não se manifestavam com a radicalidade e o apoio social que estão tendo. Se há avanços dos direitos democráticos, onde cotas raciais, direitos feministas e a pauta social vão caminhando juntos, em um processo democrático, há reações contrárias muito diversas. Porque há grupos que não querem a igualdade social, não querem a desconcentração de renda, o avanço da igualdade social, a pauta feminista.
Não podemos imaginar uma radicalização única. O que temos são diferentes grupos que se radicalizam em torno de uma mesma pauta. Quando a gente está andando no Galo da Madrugada, por exemplo, há grupos que estão ali por razões diferentes. Temos uma ascensão da ultra direita no mundo que passa por Trump, pela Hungria, Polônia, Iraque, Afeganistão, os países árabes, América Latina… Cada um tem sua agenda: existe o grupo da agenda econômica, a agenda das questões morais, do autoritarismo político. E na avenida, todos se juntam no Galo da Madrugada: contra a democracia, contra os avanços democráticos.
Agora, eles vão gritando e se radicalizando. E vão se mostrando de acordo com a conjuntura. O grupo pró-vida teve seus cinco minutos de glória em frente ao Cisam (centro médico no Recife que realizou o aborto legal numa criança de 10 anos de idade estuprada pelo tio) . Os grupos ecoam, agendas vão se ajudando. Eles sempre estiveram por aí. O que nós estamos observando é que os grupos se empoderam dependendo também da força política que eles vão tendo. E também do clima político. E o que se vivencia no mundo é uma extrema radicalização político-ideológica em torno da direita. Quanto mais lenha você coloca, menos você sabe quem iniciou a fogueira. Os grupos se encontram felizes e contentes quando a pauta é pró-vida, mas se separam quando a discussão é quem vai ganhar um canal de televisão.
O autoritarismo nasce de dois pilares: a ignorância e a falta de contato. Então são grupos muito fechados, que acreditam que a verdade está só com eles. Que Deus fala diretamente para eles, sem intermediação. São grupos radicais. A própria Igreja Católica fica muito preocupada em como trabalhar com esses grupos. Porque são grupos que se colocam contra a própria igreja. Têm um pensamento branco ou preto: está comigo ou está contra mim, não tem discussão. É isso que faz o fundamentalismo religioso.
Veja que eles só falam de Bento XVI ou João Paulo II e não querem saber do Papa Francisco. São dois papas da doutrina e esses grupos levam isso ao extremo. Existe um movimento de ultra direita na Igreja Católica que fala que o papa Francisco é o Anticristo. Há cinco cardeais no mundo que são contra o papa e pedem a renúncia dele. São norte-americanos e europeus, mas com filhotes no Brasil, que ainda estão tímidos e não se colocam em público.
Esses grupos não nascem e crescem sozinhos. Eles nascem em um caldo e têm muitas conexões entre eles, e se fortalecem entre eles. O que estamos vendo é um longo processo de 30, 40 anos de crescimento. E agora as condições políticas e culturais do mundo os favorecem. Por exemplo, não acreditam no coronavírus. A negação da ciência sempre acompanha os grupos radicais, porque são grupos que pensam em uma única direção. Só há uma verdade.
A força de um grupo social depende da força do grupo social contrário. Quanto mais crescer uma sociedade civil pró-democracia mais os grupos do autoritarismo diminuem. Se nas instâncias governamentais e políticas cresce muito o autoritarismo, esses grupos fundamentalistas tendem também a crescer, porque se apoiam e vão arrebanhando. E como são grupos políticos que trabalham muito fortemente com discurso religioso, eles se misturam.
Como mudar isso? É importante ter nos próprios grupos religiosos e nas próprias paróquias pessoas que digam “eu não acho que o que o tio fez é correto” (em relação ao estupro da menina de dez anos no Espírito Santo). O discurso religioso que só olha o aborto fica enfraquecido também. Você não precisa sair do discurso religioso para confrontá-los.
Minha maior preocupação é que cresçam com armas na mão. Nós sabemos o que fazem os grupos radicais de extrema direita com armas: a história de 1933 até 1945 na Europa não precisa ser recontada. A preocupação é que esses grupos tenham força militar. E, quando esses grupos se juntam, normalmente têm intolerância a quem pensa diferente. Enquanto você quer me convencer que Deus quer punir uma criança, vamos conversar. Mas se você coloca uma arma na minha cabeça, e diz que eu não mereço viver porque penso diferente, aí a coisa complica.
Um componente da extrema direita é retirar o monopólio da violência do Estado. O Estado moderno nasce dando ao Estado o poder da violência. E é por isso que se cria a polícia, se cria o Exército. A ultra direita radical retira essa intermediação e coloca as armas na mão do povo. O armamentismo retira toda a defesa institucional. Esse discurso é muito perigoso. Dá um frio no estômago.
Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org