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Câmara do Recife teve apenas 21 mulheres vereadoras na história

Raíssa Ebrahim / 30/09/2024
A imagem mostra um edifício histórico e grandioso com uma fachada ornamentada, apresentando paredes brancas e molduras decorativas. A arquitetura inclui janelas arqueadas com grades intrincadas e uma entrada central ladeada por duas colunas. Acima da entrada, há uma placa que diz “CÂMARA MUNICIPAL” seguida por “MCMXIX,” que indica o ano de 1919 em algarismos romanos. O edifício é adornado com bandeiras em mastros na frente dele, e há plantas verdes exuberantes parcialmente visíveis nas laterais. O céu está claro e azul, sugerindo um dia ensolarado.

Crédito: Divulgação/Câmara Municipal do Recife

Na história da Câmara do Recife, apenas 21 mulheres ocuparam um assento como vereadoras. Somente duas se autodeclararam negras (Dani Portela e Elaine Cristina, ambas do PSOL) – Edna Costa, eleita pelo PMDB, era negra, mas não havia o registro de autodeclaração na época. Nenhuma delas era indígena ou trans. Muitas são filhas, netas ou esposas de políticas. Juntas, todas as parlamentares, de 1947 até 2024, não formariam nem uma legislatura completa, composta hoje por 39 vereadores — a partir de 2025, serão 37.

Juntas, elas não conseguiriam sequer aprovar leis orçamentárias anuais e matérias urbanísticas, por exemplo, que exige três quintos da Casa José Mariano (24 votos). Até 2000, quando o prédio passou por uma reforma, não havia um banheiro exclusivo para as parlamentares e uma mulher nunca presidiu a Câmara do Recife.

Nestas eleições no Recife, de um total de 425 candidaturas, entre prefeito e vereador, só 118 são de mulheres, isto é, cerca de 28%. É menos do que a média nacional no pleito atual, de 34%. O levantamento foi feito pela reportagem com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Segundo o relatório Raio X da Diversidade: VereadorAs do Brasil, elaborado pela Rede A Ponte e lançado em agosto, também com informações do TSE, em 2020 apenas 5% das mulheres que se candidataram como vereadoras no país conseguiram se eleger. A taxa de sucesso dos homens, por outro lado, foi três vezes maior, de 15%.

A disparidade não é por falta de mulheres filiadas aos partidos políticos, pois 45% das pessoas filiadas são mulheres. Porém, historicamente quem ocupa os cargos de liderança são os homens.

O infográfico é uma homenagem às mulheres que ocuparam cadeiras na Câmara do Recife ao longo da história. Ele destaca que, desde 1947, apenas 21 mulheres ocuparam essas posições, e apenas duas se autodeclaram negras. O título do infográfico é “Todas as Mulheres vereadoras da história do Recife. Cada nome é acompanhado por um ícone de uma cadeira rosa e informações adicionais, como período de mandato ou afiliação partidária. O design inclui silhuetas de mulheres em várias poses, enfatizando o tema de empoderamento e reconhecimento feminino.
Crédito: Marco Zero Conteúdo

Para entendermos a questão da subrepresentatividade de mulheres e, sobretudo, de mulheres negras e indígenas na política, é necessário olhar para os dois principais grupos de atores envolvidos numa eleição: os partidos e o eleitorado. “É preciso, de um lado, entender e fortalecer as lideranças femininas dentro dos partidos e, de outro lado, comunicar cada vez mais para o eleitorado que política é um espaço que as mulheres são mais do que capazes de ocupar, fortalecendo a nossa democracia em termos do tipo de política que é feita, como essa política é feita e que impactos isso tem para o futuro do Brasil”, avalia a co-fundadora e diretora executiva da Rede A Ponte, Amanda de Albuquerque.

Criada em 2021, A Ponte é uma rede de mulheres especialistas nos mais diversos temas de política pública com o propósito de promover a carreira de mulheres na política e fortalecer a representatividade da democracia brasileira. Um dos projetos da organização é a Escola de Reeleição, para fortalecer mulheres em seu último ano de mandato e ajudá-las na campanha.

945 municípios sem mulheres eleitas

O relatório mostra que, em 2020, 945 municípios brasileiros não elegeram nenhuma mulher como vereadora. Embora esse número tenha diminuído (com uma queda de 40% dos municípios sem vereadoras entre 2000 e 2020), ainda é muito elevado. Considerando o total da população desses municípios, significa que cerca de 10,9 milhões de mulheres brasileiras não têm representantes nas casas legislativas municipais.

O cenário é ainda mais desigual para pessoas trans. Apenas 30 pessoas trans foram eleitas em 2020 nas eleições municipais, sendo dois homens trans e 28 travestis e mulheres trans.

“Os partidos políticos são reprodutores das hierarquias de poder já existentes na sociedade. A maioria das lideranças partidárias são homens, apenas seis partidos são comandados por mulheres, dentre os mais de 30 atuando no Brasil”, detalha Amanda. “E as candidaturas precisam de apoio. Não só de financiamento, mas também em relação a dobradinhas e suporte jurídico, por exemplo. Mas muitas vezes elas não têm acesso às lideranças partidárias. Como então vão conseguir fortalecer suas candidaturas?”, questiona.

“Os partidos também dão preferência para candidatos que consideram mais viáveis, que já têm algum cargo, ou seja, candidatos procurando uma reeleição. Se os homens são a maioria das cadeiras atualmente, a tendência é ficar numa inércia de repetição dessa estrutura”, analisa a especialista.

Do outro lado, está a disposição do eleitorado a votar em mulheres para começar a mudar as regras desse jogo. Apesar dos desafios e da necessidade de um esforço conjunto, Amanda acredita que “a expectativa é que cada vez mais, principalmente com as emergências climáticas e todo o desafio de desigualdades sociais, as pessoas entendam a importância de ter representatividade real no espaço de poder”. “Quando pensamos em lideranças indígenas, por exemplo, a importância que isso tem na questão climática é cada vez mais urgente”, finaliza.

De acordo com o TSE, somente 45 cidades, entre as 5.568 que realizaram eleições municipais em 2020, tinham maioria de mulheres na composição das câmaras de vereadores. O número não chega a 1% do total dos municípios que participaram daquele pleito. Sete em cada dez municípios onde ocorre essa maioria feminina têm população menor do que 15 mil pessoas, segundo o Censo Demográfico 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Somente um município desse universo tem mais de 100 mil habitantes. É Araras (SP), onde seis das 11 cadeiras da Câmara de Vereadores são ocupadas por mulheres. É um ponto fora da curva. A Rede A Ponte mostra que, em 2020, 19% das vereadoras estavam solitárias nas casas legislativas municipais, ou seja, foram as únicas eleitas.

“Apesar da presença de mais mulheres necessariamente não garantir a defesa real dos direitos das mulheres, uma vez que vivemos em um cenário de eleição de diversas mulheres não alinhadas com pautas progressistas, ter mais de uma mulher na câmara pode ser um elemento inibidor de atos de violência política de gênero e raça no interior da casa legislativa”, ressalta o relatório.

“Laranjal” de mulheres candidatas

Outra questão importante é o provável uso de candidaturas “laranjas” por parte dos partidos, que usam as cotas sem oferecer o apoio necessário. A Rede A Ponte mostra também que, desde 2012, quando as cotas para candidaturas femininas foram implementadas, a taxa de sucesso eleitoral das mulheres diminuiu: enquanto 10% das mulheres que se candidataram em 2000 foram eleitas, apenas 5% das que se candidataram em 2020 conseguiram uma cadeira.

Piedade Marques, da Rede Mulheres Negras de Pernambuco e uma das coordenadoras do movimento Eu Voto em Negra, diz perceber que, ao longo desses quatro anos em que vem trabalhando com candidaturas de mulheres negras e lideranças, “o quanto a forma, a estrutura e o sistema eleitoral foram construídos por homens, para os homens e eles definindo a vida de toda a sociedade”. Nestas eleições, o Eu Voto em Negra recomenda cinco candidatas no Recife: as candidatas legislativas Ailce, Jô Cavalcanti, Elaine Cristina, Suzy Rodrigues e Yasmin Alves, além de Dani Portela, postulante à prefeitura.

“Temos uma construção de uma democracia que deveria ser de representatividade, deveria ser da construção de políticas para o conjunto da sociedade, e, no final das contas, temos pouco avanço na mudança do sistema”, avalia Piedade como uma das principais causas da subrepresentatividade de mulheres negras e indígenas. “Isso pensando o sistema como um todo, pensando na construção dos partidos, mesmo, por exemplo, nas secretarias de mulheres ou de igualdade racial, nós, enquanto mulheres negras, ainda não somos as que definem por dentro”, observa.

Como consequência, ela enxerga que “temos uma democracia muito frágil, uma quantidade enorme de eleitores que prefere não votar, políticas públicas que não olham para esses corpos, essas vidas, além do enriquecimento ilícito de várias candidaturas que se colocam no campo da política e um descrédito da população”.

“Por isso acreditamos o quanto é importante ter mulheres negras nesses espaços, porque as mulheres negras que são sustentadas, são crias dos movimentos sociais, do movimento negro, do movimento mulheres negras, têm um olhar coletivo, um olhar para a sociedade, um olhar para o conjunto. E o papel que exercem, de fato, é tentar garantir que todos os homens, as mulheres, as crianças e os idosos estejam garantidos na sua vida”, crava.

A foto mostra um grupo de quatro pessoas em pé atrás de uma mesa, segurando um grande certificado juntos. O certificado tem bordas ornamentadas e texto, mas não é totalmente visível. São dois homens, que estão nos extremos esquerdo e direito do grupo e duas mulheres negras ao centro. Eles estão vestidos de forma formal; com o homem brando da direita, usando terno, grabata laranja e óculos; as mulheres usando vestidos - uma delas com uma flor azul claro nos cabelos e o homem à direita usando uma camisa de de mangas curtas cinza chumbo. Há também um pequeno objeto metálico vermelho, parecido com um sino, sobre a mesa à frente deles. O ambiente parece ser um evento cerimonial interno, possivelmente uma cerimônia de premiação ou entrega de diplomas, indicado pelas roupas formais e pela presença do certificado.

Dani Portela e Elaine Cristina foram as duas únicas vereadoras negras da história do Recife.

Crédito: Crédito: site de Dani Portela.

“Precisamos formar mulheres e acompanhá-las”

O afastamento dos processos e das decisões partidárias termina gerando outra consequência: a inexperiência das mulheres na política institucional. Por ser primeiro — e muitas vezes único — mandato, é necessário tempo para compreender a dinâmica da vida do legislativo.

A maioria que assume como vereadora não tem experiência prévia no cargo: em 2020, 62% das mulheres eleitas para as câmaras municipais estavam em seu primeiro mandato, comparado a 47% dos homens. A vereança, por sua vez, é uma porta de entrada fundamental para a vida política, uma vez que 89% das mulheres iniciam sua carreira política como vereadoras na primeira eleição.

Para a jornalista Germana Accioly, autora da pesquisa Mandatos ativistas no Brasil: um diagnóstico, publicada em julho pela Nossas (organização que trabalha para fortalecer a democracia em defesa da justiça climática, racial e de gênero), os partidos precisam fazer mais formação política para as mulheres. “Muitas mulheres na política estão em lugares de não protagonismo. A gente brinca que as mulheres arrumam a mesa da palestra para os homens sentarem”, comenta.

O levantamento entrevistou 30 mandatos ativistas, entre municipais, estaduais e federais, comandados por homens e por mulheres. Germana tem larga experiência parlamentar, já foi chefe de gabinete de Fernando Ferro, Isabella de Roldão, Ivan Moraes, das Juntas e de Dani Portela, além de ter dado consultoria a Rosa Amorim. Também já foi diretora de comunicação da Câmara do Recife.

“Uma das principais conclusões é que precisamos formar essas mulheres e acompanhá-las. Porque ser ativista é diferente de ser parlamentar”, frisa, lembrando que as casas legislativas mantêm, na forma como se estruturam e são geridas, uma forte herança das capitanias hereditárias. “Não é só a Câmara do Recife que tem problemas. Há, por exemplo, histórias de mulheres que se elegeram vereadoras e tiveram de pegar o dinheiro do mandato para construir um espaço para as crianças ficarem e elas poderem amamentar”, cita.

“Quando falo em formar essas mulheres é para que elas também consigam se reeleger. A maioria não se reelege porque fica exausta, não dá conta, não suporta a violência, recebe ameaças. A política pode ser mais do que violenta para nós, ela pode ser inóspita”, afirma. Mais mulheres na política significa diminuir o isolamento delas nas casas legislativas e consequentemente criar uma barreira para a violência de gênero, que atinge todas.

Com foco nesses desafios, o Grupo de Pesquisa Estado, Gênero e Diversidade (Egedi) da Fundação João Pinheiro lançou, em 2023, o Guia de Orientação para Mulheres (feministas e antirracistas) Eleitas para as Casas Legislativas. Os quatro principais temas abordados no documento – Gestão, Formação, Ação Política e Violência Política – foram identificados a partir de uma avaliação de mandato realizada pelo grupo em 2022 para a deputada estadual por Minas Gerais Andreia de Jesus.

AUTOR
Foto Raíssa Ebrahim
Raíssa Ebrahim

Vencedora do Prêmio Cristina Tavares com a cobertura do vazamento do petróleo, é jornalista profissional há 12 anos, com foco nos temas de economia, direitos humanos e questões socioambientais. Formada pela UFPE, foi trainee no Estadão, repórter no Jornal do Commercio e editora do PorAqui (startup de jornalismo hiperlocal do Porto Digital). Também foi fellowship da Thomson Reuters Foundation e bolsista do Instituto ClimaInfo. Já colaborou com Agência Pública, Le Monde Diplomatique Brasil, Gênero e Número e Trovão Mídia (podcast). Vamos conversar? raissa.ebrahim@gmail.com