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Candidatas enfrentam assédios e intimidações

Débora Britto / 09/11/2020

Colagem: Débora Britto

Se ser candidata é um desafio no Brasil, chegar ao fim de uma campanha eleitoral sem ter sofrido algum tipo de violência ou discriminação pelo fato de ser mulher é ainda mais complicado. Concorrentes aos cargos de vereadoras, vice-prefeitas e prefeitas têm enfrentado sistematicamente intimidações por outros candidatos, ameaças de agressões sexuais, mensagens não solicitadas de fotos de órgãos sexuais masculinos, fake news, xingamentos e até discriminação dentro dos próprios partidos.

Todos os casos relatados acima estão incluídos no conceito de violência política de gênero, que, basicamente, reúne diferentes tipos de práticas violentas que podem ser direcionadas a mulheres que estão na política e em espaços de destaque e poder.Ela pode ser patrimonial, simbólica, psicológica, sexual e física. O conceito acaba dando nome a práticas antigas, mas que poderiam passar naturalizadas, consideradas percalços com os quais mulheres teriam que lidar obrigatoriamente.

Falar em violência política de gênero ajuda a colocar em destaque o fato de que, quanto maior a participação de mulheres na política, maior será a reação violenta. O aumento da quantidade de mulheres candidatas em 2020 em comparação com 2016 contribui para um cenário em que essas violências tendem a aumentar. Denunciar e dar visibilidade aos casos também é muito importante. Iniciativas como o Monitora, por exemplo, estão acompanhando e coletando dados sobre ataques sofridos por candidatas nas redes sociais durante a campanha.

Estreante na disputa eleitoral, a candidata a vereadora no Recife Ana Freire (Psol) tem lidado com importunações sexuais graves nas redes sociais, mas não só isso. Depois de várias mensagens, ligações, fotos de órgãos sexuais – todas enviadas por perfis de homens – Ana decidiu publicar um vídeo denúncia em sua página no Instagram. Depois de algumas horas de publicado e mais de mil visualizações, o vídeo foi retirado do ar pela plataforma. A revolta com a postura machista da plataforma existe, mas ela confessa que não dá para perder energia com isso.

“Essa denúncia que fiz nas minhas redes sociais foi uma forma de expor o que acontece. A gente fica numa situação que não tem nem tempo de estar se defendendo. É uma trilha tão árdua, um terreno tão hostil que ou mantém o foco naquilo que a gente quer mais ou se perde nesse caminho e acaba, aí sim, prejudicando a candidatura”, conta.

De cara com o machismo e racismo estrutural

Ana Freire também relata como passou a perceber o machismo dentro das estruturas do partido que compõe. A violência política de gênero, em suas diversas facetas, acontece tanto em organizações de direita quanto de esquerda. Ela conta que, quando decidiu ser candidata, todos os homens com quem conversou colocam algum tipo obstáculo. “Não foi uma coincidência, foi algo sistemático, assertivo. Talvez nem eles percebam isso, mas foi o que aconteceu”, analisa.

Em outro episódio, ela foi consultada para compor uma candidatura coletiva, mas optou por seguir com a individual. Depois da decisão, ouviu de uma liderança do partido que ela “daria problema”. “A candidatura coletiva é mais uma das tecnologias que a gente desenvolve para conseguir superar todos esses obstáculos [da política], contudo a gente já verifica que existem pessoas que estão deturpando o sentido da candidatura coletiva. Eu acho que candidaturas coletivas devem partir de trajetórias comuns, é preciso a gente olhar com muito cuidado esse desencorajamento de mulheres negras de irem sozinhas”, reflete.

Na avaliação de Ana, ouvir uma declaração assim remete diretamente à objetificação da mulher negra. “Eu achei de uma violência tão grande isso, de eu não poder dispor do meu corpo e minha candidatura de acordo com os valores que eu acredito, com o que me move”, conta. O conhecido “negrinha metida” ainda é patrimônio da sociedade brasileira, machista e racista.

Já Elaine Cristina, candidata a vereadora do Recife na chapa coletiva Pretas Juntas (Psol), viu uma imagem de campanha em que defendia a descriminalização e uso para fins medicinais da maconha ser alvo de um comentário afirmando que, tanto ela quanto a erva, deveriam ser “comidas”. “A forma que chega um comentário desse é para dizer que a gente está ameaçada. Quando eu vi, fiquei chocada, não vou mentir, porque a gente não espera. É uma pessoa que a gente não sabe quem é”, diz.

Foto: Reprodução do Instagram das Pretas Juntas

Não bastasse a objetificação de seu corpo e o tom de ameaça, para ela a agressão tinha objetivo de minar a sua luta pelo direito de tratar o filho, diagnosticado com uma doença rara, com medicamento à base de maconha. Ela é a segunda mulher em Pernambuco a conquistar na Justiça o direito de plantar maconha e produzir o remédio a partir da planta.

A candidatura das Pretas Juntas, no entanto, decidiu expor a violência e abrir um debate sobre o assunto. Para elas, esse exemplo representa parte do que enfrentam diariamente e não pode ser silenciado.

Fake news e difamação

Mas essa não foi a única experiência violenta. Ainda durante a pré-campanha, a deputada estadual Clarrisa Tércio (PSC) publicou um vídeo com imagens de Elaine e do filho durante uma das Marchas da Maconha. Tradicionalmente, coletivos de mães e pessoas que fazem uso de cannabis medicinal abrem o ato. Mas a montagem do vídeo sugeria que ela defendia a legalização da maconha para uso próprio, colocando as imagens das crianças com fotos de pessoas mortas, supostamente, por envolvimento com o tráfico. Isso foi a gota d’água para Elaine.

“Eu chorei ao ver a imagem do meu filho sendo associada com algo que não tem nada a ver. Ela pegou esse vídeo e usou sem autorização, usou imagens de outras duas mães do coletivo que eu componho. Usando nossas crianças. Não é a primeira vez que ela agride a gente”. O vídeo foi denunciado como fake news ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pois, segundo as candidatas, o objetivo era minar a candidatura delas.

Em 2020, está valendo a lei 13.834/2019, que prevê pena de até oito anos de prisão e multa para quem fizer denúncia falsa com finalidade eleitoral. Nessa lei se enquadram as chamadas fake news (notícias falsas) com fins eleitorais.

Candidata a vereadora em Camaragibe pela primeira vez, Biatriz Santos (PT) é jovem, negra, periférica e ativista de movimentos negros, de mulheres e juventude. Desde a pré-campanha, vem ganhando destaque no município e, por isso, sofreu tanto com uma fake news como foi intimidada por um outro candidato a vereador.

Postagem com fake news sobre candidata Biatriz Santos. Foto: Reprodução da página "Camagaribe Urgente" no Facebook.

A página “Camaragibe Urgente” no Facebook fez uma postagem em que diz que ela estaria usando a máquina pública da cidade para campanha. O post tem a imagem de um print do perfil de Biatriz e afirma que ela teria planos para “futuras ações para invadir imóveis particulares”.

Apesar da revolta com a tentativa de difamar o ativismo e o trabalho que faz, Biatriz buscou ajuda nos movimentos e coletivos para denunciar e não conseguiu. Nem mesmo no partido ela não conseguiu apoio jurídico, pois estavam em pré-campanha. “A fake news ainda está lá [online]. O que a gente fez foi mobilizar apoiadores para comentar dizendo que é mentira, fake news. Ficou por isso mesmo”, conta. Para ela, há pouco suporte das estruturas partidárias para lidar com casos assim. A situação foi remediada, mas não resolvida.

Outro caso que ela vivenciou foi a postura agressiva e intimidadora de outro candidato que faz campanha em um mesmo bairro. Segundo Biatriz, o homem já foi vereador e contava com a área como “curral eleitoral”. “Uma das pessoas que ele pensou que não ia me apoiar, agora me apoia. Ele chegou a quase agredir esse jovem dizendo: ‘você tá defendendo essa negrinha’. O cara é negro retinto”, conta. Quando ela encontrou com ele em outro momento, ele tentou intimidá-la diretamente. “Eu não abaixei a cabeça”.

Enfrentar tudo isso e outras violências provoca um esgotamento emocional e psicológico grande, confessa Biatriz. Ela tem tido apoio psicológico custeado por uma organização não governamental, mas acredita que os partidos precisariam criar redes de apoio às candidatas não só durante a campanha, mas permanente. “A gente tem construído um novo sentido de fazer política. Hoje eu entendo que se eu não chegar, eu iniciei um processo muito bonito na minha cidade e estou incentivando outros jovens. Eu tenho muita esperança de chegar. E ninguém vai atirar pedra em árvore que não dá fruto”.

AUTOR
Foto Débora Britto
Débora Britto

Mulher negra e jornalista antirracista. Formada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também tem formação em Direitos Humanos pelo Instituto de Direitos Humanos da Catalunha. Trabalhou no Centro de Cultura Luiz Freire - ONG de defesa dos direitos humanos - e é integrante do Terral Coletivo de Comunicação Popular, grupo que atua na formação de comunicadoras/es populares e na defesa do Direito à Comunicação.