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por Larissa Juliana com fotos de Géssica Amorim, do Coletivo Acauã
Logo cedo, a casa de Luciano Ferreira e Eunice Araújo, casados há 15 anos, começa a ganhar vida com a rotina familiar. Enquanto ela arruma o filho de três anos para a escola, ele prepara o café da manhã. Os dois se revezam nas tarefas, ao mesmo tempo em que trocam conversas leves. Quando a filha de 11 anos senta à mesa, já está pronta e ansiosa para ir à escola.
São manhãs parecidas a de milhares de casais com filhos. O cotidiano só se torna diferente a partir do momento em que Luciano e Eunice saem para a rua. Eles são cegos.
Em Caruaru, no Agreste de Pernambuco, onde a rotina se desenrola entre ladeiras e movimentadas ruas, a experiência de mobilidade urbana é desafiadora para quem tem deficiência visual.
De acordo com a Associação Caruaruense de Cegos, há aproximadamente 230 pessoas que não enxergam nada ou têm baixa visão no município e nas cidades vizinhas. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, Pernambuco tem quase 360 mil pessoas que possuem ausência total ou parcial da visão.
Todas elas lidam diariamente com calçadas esburacadas, pisos irregulares, falta de sinais de trânsito sonoros e dificuldades adicionais para pegar o transporte público, independente da cidade onde moram.
Para Luciano, de 35 anos, e Eunice, de 39, esses obstáculos se tornam um risco à segurança não apenas do casal, mas também dos seus filhos. Embora as crianças enxerguem e a filha mais velha ajude a guiar os pais, andar com o menino de três anos pelas ruas é um desafio adicional. “Eu tenho que segurá-lo de um lado e a bengala do outro. Se ele quiser ir no colo, fica mais complicado”, conta Eunice.
Luciano utiliza a audição e o tato como aliados para se locomover pelas ruas irregulares e sem sinalização adequada. As dificuldades o ensinaram a perceber as nuances do ambiente por meio da sua bengala e das referências sonoras.
Ele consegue identificar se está subindo ou descendo, se a rua é mais estreita ou se há um quebra-molas à frente. Também nota que o som dos carros muda dependendo de onde está, mas todo esse conhecimento não o protege na deficiência de acessibilidade nas ruas de Caruaru. “Quando o chão é muito irregular, preciso ter mais cuidado. Uma pedra solta pode me fazer perder o equilíbrio”, conta.
Ruas principais do bairro Nossa Senhora das Dores, como a Quinze de Novembro e a Sete de Setembro, foram reformadas entre 2019 e 2020, o que reduziu as falhas na acessibilidade, mas ainda assim há problemas. Segundo Luciano, o piso funciona mais como um alerta do que como um guia tátil, porque ele fica nas margens da calçada, ou seja, mais próximo dos carros. “Eu evito andar por esse piso para não cair na rua”, disse.
Outra coisa que precisa melhorar, afirma Luciano, é o transporte público. Quando pessoas cegas esperam ônibus, elas não sabem quais linhas estão chegando, principalmente no centro, onde o fluxo de veículos é mais intenso. Falta sinalização sonora eletrônica que informe a chegada dos ônibus.
Em alguns dos pontos mais movimentados, podem ser encontrados fiscais da linha de ônibus da empresa Coletivo Transportes, mas eles anunciam apenas a chegada dos veículos desta empresa. Além disso, nem sempre estão presentes, mesmo nos locais de maior fluxo, e não ficam em todos os pontos da cidade. Já a Capital do Agreste Transportes Urbanos e a Viação Tabosa, não têm fiscal algum.
As calçadas de Caruaru são desniveladas, têm buracos, obstáculos e espaços estreitos. Por causa disso, Luciano e Eunice preferem caminhar pelo meio-fio. Apenas quando estão andando pelas principais vias do centro, como a rua 15 de Novembro, eles conseguem usar as calçadas, que são mais amplas e possuem piso tátil para deficientes visuais.
Imagine ter que atravessar uma rua sem enxergar se tem carro vindo. É essa a realidade que Luciano, Eunice e centenas de pessoas cegas enfrentam devido à falta de semáforos sonoros em Caruaru, um dispositivo essencial para a travessia segura.
Essa ausência, aliada à falta de respeito dos motoristas pelas faixas de pedestres, põe o casal em situações arriscadas. Atravessar ruas movimentadas se torna um exercício de confiança e, muitas vezes, é preciso contar com a ajuda de quem percebe a deficiência visual deles. A bengala acaba cumprindo também essa função de alerta, para que as pessoas se prontifiquem a ajudar o casal.
O apoio, no entanto, nem sempre está disponível. Em vários momentos, Luciano e Eunice precisam confiar apenas em si mesmos para cruzar as ruas. Nesses casos, a estratégia é esperar o movimento dos carros diminuir antes de seguir em frente. “Eu não confio que o carro vai parar. Eu espero parar o movimento. Muitas vezes levanto a mão ou a bengala. Eles param buzinando, e eu passo”, descreve Luciano.
Ele conta que, há uns oito anos, a cidade tinha alguns desses semáforos sonoros como o da rua Belmiro Pereira, no bairro Maurício de Nassau, próximo ao Tiro de Guerra. Havia também na rua Vigário Freire e na Duque de Caxias, ambas no Centro.
De acordo com ele, os equipamentos foram desativados na gestão da atual governadora do estado, Raquel Lyra, quando ela foi prefeita de Caruaru. A justificativa teria sido as reclamações dos comerciantes devido ao barulho dos semáforos.
“Foram enviados vários ofícios pela Associação Caruaruense dos Cegos, para que os semáforos voltassem, mas nunca foram acatados. Alegaram várias questões, como a falta de recurso tecnológico e que o semáforo sonoro causava poluição sonora”, revela Luciano.
Para ele, é contraditório que os comerciantes reclamem do barulho dos semáforos, mas tolerem outros tipos de poluição sonora mais agressiva. “Não reclamam por conta de um paredão de som quando passa”, disse.
Apesar das dificuldades, Luciano e Eunice continuam suas rotinas, incluindo idas frequentes à Associação Caruaruense dos Cegos, (Acace). Lá, participam de atividades físicas e oficinas. O trajeto até a associação, porém, também é complicado. O percurso é feito pelo meio-fio e com veículos passando muito próximos a eles.
Além disso, é necessário atravessar a rua em um cruzamento que possui faixa de pedestres, mas os veículos, muitas vezes, não param, mesmo diante de uma pessoa cega tentando atravessar.
As empresas de transporte público foram procuradas. No entanto, apenas a Coletivo Transportes e a Capital do Agreste forneceram retorno. A empresa Tabosa não emitiu resposta.
A Coletivo informou, por meio de nota, que “presta um serviço de transporte à população de forma transparente e humanizado”. Disse, ainda, que capacita e recicla todos os colaboradores, regularmente, e qualifica os fiscais de embarque para auxiliar as pessoas com deficiência visual.
Já a Capital do Agreste alegou que o aplicativo Leva Caruaru informa a previsão de chegada dos ônibus, além de possibilitar recarga de créditos. “Para garantir a acessibilidade das pessoas com deficiência visual, o aplicativo conta com uma versão adaptada, que oferece recursos de áudio. Dessa forma, os usuários podem ser avisados sobre a chegada dos ônibus, promovendo mais autonomia e acessibilidade no transporte público”, disse em nota.
A teoria parece boa, mas, na prática, a tecnologia não funciona para os cegos, porque o aplicativo não avisa qual ônibus chegou ao ponto. O problema no momento do embarque, portanto, continua.
Procuramos a Autarquia de Mobilidade, Trânsito e Transportes de Caruaru para saber quantos semáforos sonoros existem em Caruaru, onde eles estão instalados e quantos ônibus possuem acessibilidade. Também perguntamos quais medidas foram tomadas pela prefeitura, nos últimos anos, para garantir acessibilidade de pessoas cegas. Nada foi respondido.
Até que o poder público e as empresas que prestam o serviço de transporte cumpram sua função de garantir acessibilidade para a população cega de Caruaru, Luciano e Eunice vão continuar dependendo da filha de 11 anos ou de uma rede de apoio condicionada à boa vontade de outras pessoas. “Quando alguém percebe que a gente está tentando atravessar a rua, alguns oferecem ajuda. Nem todo mundo tem paciência, mas tem gente que entende e segura a nossa mão”.
Durante a disputa eleitoral pela prefeitura, candidatos comprometeram-se a elaborar planos que incluam a ampliação da acessibilidade em relação à mobilidade urbana para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.
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