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“Chega uma hora que a saída é ao modo do filme Bacurau, entende?”, adverte Ricardo Antunes

Helena Dias / 25/03/2020

Sociólogo e pesquisador do mundo do trabalho, Ricardo Antunes. Crédito: Acervo pessoal

A metáfora é de autoria do sociólogo e um dos maiores pesquisadores brasileiros do mundo do trabalho, Ricardo Antunes. Em entrevista à Marco Zero, ele analisou os impactos da pandemia de novo coronavírus na vida da classe trabalhadora do Brasil, a partir de conceitos abordados em seu último livro, O Privilégio da Servidão (Editora Boitempo). Na obra, Ricardo traça a atual situação de trabalhadoras e trabalhadores que vivem o contexto de legitimação e expansão do trabalho intermitente, assim como o crescimento do trabalho digital.

O professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) não se detém apenas a apontar todas as tragédias que já se anunciam na vida de boa parte da população brasileira. Para Ricardo, nesse momento de agravamento da crise econômica, levantes sociais podem mudar os rumos da onda neoliberal no mundo. Leia a entrevista completa:

No Brasil que aprovou a lei da terceirização, as reformas trabalhista e da previdência, como você analisa os impactos da pandemia de novo coronavírus na vida dos trabalhadores?

Se você tem uma classe trabalhadora estável e com direitos, quaisquer decisões tomadas pelos governos e empresas têm que estar respaldadas nesses direitos. O que acontece quando os trabalhadores e as trabalhadoras foram devastados, especialmente desde 2016 para cá, no que diz respeitos aos seus direitos do trabalho? É o que estamos vendo hoje. Uma massa imensa de trabalhadores intermitentes que não tem outra alternativa se não trabalhar oito, dez, 12 e até 14 horas por dia. Porque, se eles não trabalharem, não dispõem de nenhum direito. Um trabalhador da Uber, da Rappi, do ifood e o que for, como ele vai fazer agora? Que direito ele tem de ficar em casa esperando essa tragédia passar? A sociedade política, o Estado e o capitalismo brasileiro não lhe deram esse direito. É por isso que eu chamo de escravidão digital. Esses trabalhadores e essas trabalhadoras estão aprisionados entre a informalidade predominante nessas plataformas digitais. Nelas, existe uma enorme manipulação dizendo que eles são prestadores de serviços e, portanto, não são assalariados e nem assalariadas e, por isso, não têm direitos. Todos os trabalhadores uberizados que eu entrevistei eram metalúrgicos, engenheiros e já ouvi um veterinário também. Todos precisam de 12 horas de domingo a domingo para tirar em média R$ 3 mil líquidos. As despesas de gasolina, limpeza, segurança, educação, alimentação, o celular, o seu aplicativo e tudo mais, são responsabilidades do trabalhador. O que é que eles vão fazer agora? No passado, eu chamei de “sociedade da terceirização total” quando o Temer, o senhor dos pântanos, liberou a terceirização total, estava evidente que nós íamos jogar para a tragédia um conjunto enorme de trabalhadores e trabalhadoras. Esse quadro se acentuou com a reforma trabalhista do Temer, que eu chamo de contrarreforma trabalhista. O trabalho intermitente agora é “legal” e “formal”. Mas é um legal que legitima a ilegalidade. É um formal que legitima a informalidade. O Bolsonaro fez o que o Temer não conseguiu que é desmontar a previdência. Há uma massa imensa de homens e mulheres que não têm como encontrar a formalidade e recorrem ao cadastro de Micro Empreendedor Individual (MEI) e isso é uma tentativa de tapar o sol com a peneira. Quem trabalha 12 horas por dia não é microempresário, mas sim um proletário de si mesmo. E a pergunta é “E agora, José?”. São mais de cinco milhões, alguns falam de 5 milhões e meio de jovens trabalhadores de aplicativos. Como vão fazer? Vão entregar alimentação quando está todo mundo recolhido em casa? Nós estamos vivendo em uma sociedade selvagem que praticou uma corrosão ilimitada do trabalho e a resultante disso vai ser de indivíduos sem previdência e sem sistema de saúde.

Há os trabalhadores que atuam em aplicativos, mas há também o comércio informal que, muitas vezes, acolhe imigrantes e outras parcelas da população mais vulneráveis economicamente e socialmente falando. Como você analisa a situação dessas pessoas diante do cenário da pandemia?

Esses são a ponta mais precarizada do sistema. Só o desempregado está pior do que eles, porque está no desespero completo. Os que estão no trabalho informal das ruas são a espécie de trabalhador subutilizado, vão para o trabalho informal porque não encontram vagas no mercado formal. O Brasil tem bem mais de 40% da população ocupada na informalidade, várias capitais do Nordeste estão acima dos 50% e 60%. Não é por acaso que alguns desses trabalhadores são imigrantes, se você pega os exemplos da Europa ou até dos Estados Unidos também vê a mesma coisa. O trabalhador imigrante é a ponta mais precarizada do que eu chamo de precarização do trabalho em escala global. Um trabalhador só sai da África, Ásia, do Oriente Médio para ir para Europa ou Estados Unidos, considerados “mais desenvolvidos”, porque ele já vive um vilipêndio completo da ausência do trabalho. Se o mercado formal, o mundo da valorização do capital está parado em amplitude global, a bolsa de valores vem despencando a níveis espetaculares, o que está acontecendo com esse mercado de trabalho informal? É a ausência como tragédia. Primeiro, a ausência de comprador. Por consequência, a ausência de receber a quantidade mínima de recursos para a sobrevivência. O terceiro ponto é a ausência de um sistema previdenciário e, como se fosse pouco, também tem a inexistência de um serviço público de saúde capaz de atendê-los. O Brasil tem o Sistema Único de Saúde (SUS), que é uma experiência muito importante, mas ele vem sendo destroçado. A PEC que proíbe o aumento de recursos para a saúde, educação e previdência, aprovada durante o governo terceirizado do Michel Temer, faz com que os trabalhadores cheguem aos hospitais e não tenham atendimento mesmo se contaminando com o coronavírus e contaminando seus parentes. É importante fazer a distinção, essa tragédia não é causada pelo coronavírus, ela é amplificada exponencialmente pela pandemia. Porque a tragédia antecede a atual situação. Se comparamos com países escandinavos como Suécia e Dinamarca, onde os índices de trabalho informal são menores, as pessoas se guardam em casa e serão remuneradas, terão serviço público de saúde. Nos países da periferia como o Brasil, os trabalhadores informais e precários são jogados nas ruas e, mais duramente, os imigrantes e os negros. Se estivéssemos nos países da América Hispânica, como a Colômbia ou o Peru, por exemplo, os mais atingidos seriam os indígenas. Estamos a beira de um colapso social profundo, mas que não é novidade, porque esse país está em colapso. A cena que vimos do ex-capitão Jair Bolsonaro indo à manifestação pró-Governo Federal, enquanto paira muita dúvida se ele está contaminado pelo vírus ou não, porque ele não mostrou nenhum documento de nenhum órgão de saúde atestando e assinado… Como ele pôde ir a um encontro desse e saudar populares? Para não falar da dimensão golpista e leviana desses movimentos. São as hordas fascistas e alguns ingênuos no meio que, nos momentos de caos, tentam criar a agitação, esse é um traço muito importante do fascismo. Foi assim na Itália e foi assim na Alemanha. No que diz respeito ao Brasil, nós estamos em uma situação que é trágica. Nos Estados Unidos, as grandes empresas vão buscar recursos para poder minimizar a tragédia. No Brasil, o neoliberalismo é devastador e as empresas não vão pagar os trabalhadores que não trabalharem, os aplicativos todos não vão pagar porque os trabalhadores são prestadores de serviço. A previdência vai estar fechada para eles e a saúde pública vai depender dos atendimentos e dos leitos existentes na precária situação da saúde pública que foi destruída pelos governos neoliberais do Brasil.

Empresas como a Uber, 99, Rappi e Ifood anunciaram a criação de fundos para os trabalhadores que forem contaminados pela doença e não puderem trabalhar e também a distribuição de kits de higiene para aqueles que estão atuando. É perceptível que a preocupação é de manter os serviços funcionando e não com a saúde das pessoas. Você acredita que essas medidas correspondam, em algum nível, às necessidades desses trabalhadores?

As únicas bandeiras possíveis agora seriam acabar com a PEC do Fim do Mundo e acabar com o limite do orçamento para a saúde, educação e previdência. Medidas paliativas são inaceitáveis. Kit de higiene para o trabalhador desempregado que vai chegar na casa de uma família que pode estar contaminada? É acintoso, o mínimo que devemos ter é a garantia de um salário integral pago pelo Estado. O crucial não é salvar as empresas, porque tem se ouvido “Vamos salvar as empresas de aviação”, mas vai salvar a empresa sem demitir ninguém? Como assim dar subsídios para as empresas sem dizer que eles estão proibidos de demitir? O problema mais de fundo é que nós temos uma classe dominante que não tem higiene. Eu estou falando no sentido metafórico e quero dizer que ela não tem sentido humano e de sociedade. Na França, na Espanha ou mesmo em tribunais de Londres, o que se está fazendo é determinar que trabalhadoras e trabalhadores que atuam em uma jornada extenuante para essas empresas de aplicativos têm que ter direitos do trabalho. E, no momento em que não podem trabalhar, tem que ficar em casa recebendo do Estado e da previdência pública. Só que o nosso país está sendo totalmente destruído por um governo e está nos levando a mais destruições a cada dia. A ordem do dia tem sido manter um desgoverno que é um exemplo do descalabro inimaginável. O Paulo Guedes (ministro da Economia) foi chamado por um grande economista do capital financeiro, que lucra em cima do capital financeiro, de “liberalista primitivo”. Você está percebendo o tamanho do caos que estamos vivendo? O neoliberal financista e amante da riqueza chamou o Paulo Guedes de neoliberal primitivo. E quem paga a conta da burguesia primitiva são os trabalhadores e trabalhadores e, quão mais sem direitos, mais violento será esse processo. Isso não pode durar muito tempo, não há uma sociedade que suporte tanta devastação e o que eu estou dizendo não tem bola de cristal. É o caso do Chile, onde já acontecem quatro meses de explosões. E aí vale tudo, não há uma semana que não tenha manifestação e a polícia atua de modo brutal porque o exército lá é fascista, a polícia é pinochetista. Então vem o massacre e a população responde com mais confronto.

Temos visto a população reivindicar respostas eficazes para essa pandemia. Seja por meio de panelaços ou nas redes sociais, já que parte da sociedade hoje está recolhida em suas casas. Em Portugal, trabalhadoras que atuam em um comércio no shopping protestaram com cartazes solicitando a garantia do direito de ficar em casa e não se expor à contaminação do novo coronavírus. No Brasil, você acredita que levantes da classe trabalhadora podem se intensificar?

Seria uma análise mais profunda tentar entender o porquê estamos nesse quadro de relativa desmobilização e apatia dos movimentos populares. O que posso te dizer é que uma coisa são os levantes e as rebeliões organizadas, outra coisa são os levantes e as rebeliões de pessoas que estão desesperadas, porque não têm o que comer, não tem como pegar transporte e trabalhar. E, se são velhos, não tem aposentadoria. O Chile foi o modelo que inspirou a previdência do Bolsonaro e do Guedes, os velhos pobres não tem previdência pública. Não têm! Após décadas de trabalho, eles recebem um valor irrisório que às vezes é 1/3 do que eles ganhavam como trabalhadoras e trabalhadores que, na América Latina como um todo, são muito mal pagos. Mesmo sem ter canais de organização, porque esses estão muito fraturados, mas chega em uma hora que os levantes acontecem. Se a população estiver morrendo de doença, ela vai esperar morrer sem reagir? O filme Bacurau é uma bela metáfora do mundo. Não tinha organização na metáfora de Bacurau, é uma fotografia do destroçamento do país. Chega uma hora que a população se indigna e, claro, os exércitos virão para massacrar e trucidar. Mas, há cerca de 200 jovens no Chile que perderam a visão de pelo menos um olho, entende? A violência policial e militar é tão brutal que ela foca nos olhos. O que acontece é que você tem 12 milhões de desempregados e mais cinco ou seis milhões no desalento e mais sete ou oito milhões no subemprego. Tem também 50% na informalidade e, nos estados do Nordeste, como na cidade de Salvador que tem mais de 60%, são índices reais e não aqueles maquiados. No meio de uma pandemia que a população só vai se dar conta que ela pode ser brutal daqui a um tempo, os dados que vem da Itália mostram que não são só idosos os acometidos pela doença, há pessoas jovens nas UTIs dos hospitais do norte da Itália. Chega um momento em que a população, como Bacurau, diz que não dá mais. E então vão procurar ali o grupo que tem um foco de resistência que vai estruturar a organização para aniquilar o invasor estrangeiro. Um invasor ávido por saquear as riquezas da nossa população trabalhadora. É essa metáfora que nós temos que entender. O filme Parasita é outra metáfora, porque a família de coreanos pobres se curvou até onde pode a uma classe média rica para poder pegar o emprego. Fizeram o que tinham que fazer, mas na hora da vingança o pai de família que tinha bolado todo o plano de se curvar para sustentar a família, quem foi que ele matou? É simbólico. Ele matou o responsável por tudo aquilo, o seu patrão. E você não pode dizer que eles eram uma família de esquerda, eram simplesmente uma família trabalhadora que preparava caixas de pizza para delivery. O Brasil não é um país dócil, o Gilberto Freyre com a ideia da cordialidade ajudou a mascarar uma situação real. Nós temos uma burguesia predatória e a violência é parte do país. Quantas ações militares foram necessárias para arrebentar o quilombo dos Palmares? E, ao mesmo tempo, nós temos histórias de muitas rebeliões no Brasil. Eu não estou antecipando nada, mas você deve lembrar que há três meses a imprensa citava o Chile como exemplo mais maravilhoso na América Latina. Agora, se você for nesse país, está tudo arrebentado, porque a população cansou. E o que causou esse levante foi o aumento da passagem do metrô, não foi a morte de 100 pessoas, mas é o acúmulo de saques e de vilipêndios. De devastação social, de sujeição e desumanização e arrebentamento da dignidade humana. Chega uma hora que a saída é ao modo do Bacurau, entende? Não estou antecipando nada. Mas eu duvido que uma sociedade pode destroçar tanto assim, ilimitadamente e eternamente.

Estamos no meio de uma crise pandêmica que acontece justamente em um período de avanço do neoliberalismo, o que implica em perca de direitos e outras consequências sociais. Temos contextos sociais na história recente do Brasil que podemos comparar ao atual momento?

Se estivéssemos conversando entre 2011 e 2013, eu diria que nós estamos em uma era espetacular de rebeliões. A geração “nem estuda e nem trabalha” na Espanha, os precários inflexíveis em Portugal, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, explosões na França, Inglaterra e Grécia. Explosão em vários países do Oriente Médio. Nós tivemos uma era de rebeliões que não se converteu em uma era de revoluções porque são duas coisas bastante distintas. Uma coisa não é sinônimo da outra. E, ao contrário, uma era de rebeliões desdobrou-se em uma era de contrarrevoluções. E aí temos a eleição de Donald Trump, o Boris Johnson na Inglaterra, e temos governos de extrema-direita na Áustria e na Polônia. Vivemos uma era de contrarrevoluções. A onda é da extrema-direita, mas a onda passa. Entende? E sabe como ela pode começar a passar? O Trump tem grandes chances de ser derrotado pelo coronavírus, por uma crise econômica que ele não imaginou que pudesse chegar onde chegou. E, se o Trump cai, o Bolsonaro perde o seu “ídalo”. Porque não é ídolo, é o grotesco e o farsante. Os dois são grotescos e muito farsantes. Estou falando metaforicamente, mas se o Trump perde as eleições, o fascismo perde o seu grande braço mundial. Nós podemos ter o início de uma era de revoltas. É claro que o Brasil não é uma ilha, a mundialização do capital é também mundialização das rebeliões e das lutas sociais. Só que tem uma coisa, a história é imprevisível. Anote aí! O professor Ricardo Antunes é que está falando. Se estivéssemos em 1988, e dissesse para você que a União Soviética iria desaparecer, você diria que sou louco. E a segunda maior potência mundial desapareceu em algumas semanas. Porque a história é impiedosa. Onde estão o Hitler e o Mussolini hoje? Na lata de lixo da história.

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Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com