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Cidade das mulheres: relatório propõe enfoque de gênero para a mobilidade

Mariama Correia / 05/02/2018

Homens e mulheres têm padrões de deslocamento diferentes pelas cidades. Enquanto eles adotam trajetos mais diretos entre a casa e o trabalho, é comum que elas façam mais paradas no mesmo percurso para deixar e buscar o filho na escola, por exemplo, ou ir ao mercado. Essa rotina heterogênea está associada ao papel social feminino, sob o qual ainda pesa a maior responsabilidade com atividades familiares, e é comum a grande parte das brasileiras. Apesar disso, as particularidades de gênero não têm sido consideradas nos planos de mobilidade e desenvolvimento urbanos.

Nas cidades dos homens, o espaço das mulheres é limitado pela insegurança, problemas de infraestrutura e de acessibilidade aos serviços públicos, entre outros. Esse cenário se reproduz na Região Metropolitana do Recife (RMR) onde, embora mais da metade da população seja feminina (segundo Censo de 2010 do IBGE), barreiras invisíveis dificultam a interação delas com o território, principalmente considerando grupos de maior vulnerabilidade social como as mulheres negras e de baixa renda. Recife, inclusive, foi a primeira cidade brasileira a ser alvo de um estudo sobre mobilidade com enfoque de gênero desenvolvido pelo Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP).

Mobilidade das mulheres

Em parceria com organizações como a ActionAid, Casa da Mulher do Nordeste, Coletivo Casa Lilás e SOS Corpo, a análise qualitativa considera os depoimentos de cinco grupos de moradoras da RMR. O estudo estabelece um recorte de renda de até dois salários mínimos para nivelar as análises realizadas a partir do relato das entrevistadas, dando destaque aos grupos de maior vulnerabilidade. Assim, o documento analisa a interação dessas mulheres e das crianças com o espaço público, e ainda elabora indicadores e recomendações sobre mobilidade; ocupação do solo; segurança; transporte público; habitação, entre outros aspectos. A ideia é que esses indicadores possam contribuir com o desenvolvimento de políticas públicas que tornem as cidades mais equitativas.

Transporte público é mal avaliado

Um dos pontos focais do trabalho é a mobilidade. O transporte público recebe atenção especial por ser fundamental para o deslocamento das mulheres e crianças pela cidade, que dependem desses serviços para trabalhar, transportar os filhos e estudar. Embora 65% das mulheres utilizem o transporte público ou o deslocamento a pé para o trabalho, de acordo com Pesquisa Origem-Destino Recife de 2016, a inadequação dos serviços em relação às demandas do público feminino fica evidente na análise. “A malha de ônibus da RMR prioriza movimentos pendulares (entre a casa e o trabalho), o que não está de acordo com o tipo de itinerário que as mulheres adotam”, considera a coordenara do política pública do ITDP, Letícia Bortolon.

Além disso, insegurança; assédios; alto custo das passagens; má infraestrutura são alguns dos problemas identificados de forma recorrente pelas entrevistadas, que reverberam negativamente na rotina e até na saúde dessas mulheres, para as quais, muitas vezes, deslocamentos metropolitanos via transporte público chegam a consumir de três a quatro horas por dia.

Assédios

No caso dos assédios sexuais, a violência atinge mulheres de todas as idades e “chega a ser percebida como parte inevitável do uso do transporte público”, aponta o relatório. Essas situações já foram experienciados por 44% das brasileiras entrevistadas na pesquisa de Linha de Base para Cidades Seguras para Mulheres da ActionAid. No Recife, apenas 4% denunciaram os casos de assédio, muito em parte porque 80% das vítimas desse tipo de violência identificam agentes de segurança pública entre os agressores.

assédioUm fator que favorece a ação dos assediadores nos transportes públicos, na percepção das usuárias, é superlotação dos veículos. Tanto que, em dias de jogos de futebol, quando costumeiramente ônibus e metrôs são ocupados pelos torcedores, muitas evitam acessar os serviços. No caso do metrô, o chamado vagão rosa, espaço exclusivo para as mulheres passou a funcionar no sistema com o objetivo de coibir assédios na RMR. Embora esse tipo de segregação seja passível de críticas por não resolver o cerne da questão da insegurança, a maioria das usuárias entrevistadas também desconhece essa opção. Uma das explicações é o fato de que, embora ela ainda exista, não tem sido respeitada por falta de fiscalização.

Custos

O transporte público é caro e ineficiente na avaliação das usuárias. Utilizando como exemplo uma pessoa empregada com um salário mínimo (com base nos valores de 2015), o ITDP analisou os impactos da mobilidade sobre a renda. Para realizar duas viagens de ônibus por dia, 25 por mês, essa pessoa gastaria 16% de sua renda com transporte por mês. No recorte de classe, o fardo é ainda maior. Uma trabalhadora doméstica, por exemplo, dispenderia 25% da sua renda por mês para pagar o ônibus, considerando a mesma quantidade diária de deslocamentos e uma renda mensal de R$ 498,50, que era o rendimento médio desses profissionais no Nordeste no ano avaliado.

“Esse peso do gasto com transporte chama a atenção, já que a soma das despesas com transporte e moradia não deve ultrapassar 45% do orçamento familiar, considerando um gasto de 30% para moradia e 15% para transporte”, considera o relatório do ITDP.

 

Andar sozinha é um perigo

A rua é território hostil para as mulheres, na avaliação do relatório do ITDP. A caminhada nos bairros da RMR é desestimulada pela má conservação das vias públicas, pela falta de iluminação e, mais uma vez, pela violência. O trajeto a pé para casa após o desembarque do transporte público e a espera pelo ônibus na parada são as situações que mais causam medo às usuárias.  Ruas com baixa circulação de pessoas, escuras, com vazios urbanos, também são as que despertam maior sensação de insegurança. Como um “toque de recolher espontâneo”, a rotina nesses locais funciona em função do medo, levando comerciantes a fecharem suas lojas mais cedo e os moradores a evitarem os espaços públicos à noite.

Por fim, o medo restringe a circulação da mulher pela cidade. Diante da falta de ações do poder público para resolver essas questões, resta para elas mudarem seus hábitos. Assim, evitam andar sozinhas, alteram percursos para driblar ruas vazias, usam transporte complementar para determinados trajetos e recorrem ao apoio de maridos e parentes para acompanhá-las, destaca o relatório.

Cidade das mulheres

Por fim, como seria uma cidade para mulheres? Em primeiro lugar, a coordenadora de política pública do ITDP, Letícia Bortolon, explica que as demandas delas não são excludentes. “Atender as necessidades das moradoras também significa tornar as cidades melhores para todos os cidadãos”, frisa.

O trabalho do ITPD propõe uma reflexão de indicadores e recomendações que podem tornar as cidades mais equitativas.  O documento considera que o poder público precisa desenvolver um plano de mobilidade, não apenas alinhado com a política de transportes, mas com o desenvolvimento urbano. No aspecto do transporte público,  frisa que é “preciso ampliar os sistemas de transporte público de média e alta capacidade, garantindo prioridade ao transporte público em vias congestionadas, maior cobertura do território em áreas ainda desprovidas destes corredores, concentrando-se no desenvolvimento urbano e na qualificação das condições de mobilidade a pé e por bicicleta no seu entorno e investindo-se na gestão da frequência, confiabilidade e qualidade (conforto e segurança) dos serviços”.

Neste ponto, uma das recomendações do Instituto para o poder público é a adoção de uma política de desenvolvimento orientada ao transporte sustentável, integrando as políticas habitacional, de mobilidade e de uso e ocupação do solo urbano e promovendo o uso misto do solo, aproveitando especialmente o potencial de dinamização urbana das áreas de entorno de pontos de embarque e desembarque, estações e terminais de transporte de média e alta capacidade. “Não dá para planejar transporte sem olhar para ocupação do solo, por exemplo. Esse tipo de planejamento precisa estar aliado a uma política de desenvolvimento urbano que permita uma melhor distribuição de trabalho, de oportunidades, de lazer nas cidades”, ressalta Letícia.

O documento completo pode ser acessado aqui.

 

AUTOR
Foto Mariama Correia
Mariama Correia

Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi repórter de Economia do jornal Folha de Pernambuco e assinou matérias no The Intercept Brasil, na Agência Pública, em publicações da Editora Abril e em outros veículos. Contribuiu com o projeto de Fact-Checking "Truco nos Estados" durante as eleições de 2018. É pesquisadora Nordeste do Atlas da Notícia, uma iniciativa de mapeamento do jornalismo no Brasil. Tem curso de Jornalismo de Dados pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e de Mídias Digitais, na Kings (UK).