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Com narrativas da diáspora negra, Baobácine possibilita o contato com o cinema africano

Giovanna Carneiro / 09/12/2021

Crédito: Arlison Vilas Bôas

Você já assistiu algum filme do cinema africano? Eu, mulher negra, de 22 anos, tive meu primeiro contato com um filme africano na segunda edição do Baoácine, uma mostra de filmes africanos que aconteceu no Recife entre os dias 6 e 8 de dezembro de 2021.

Neste ano, a mostra contemplou filmes clássicos e contemporâneos e trouxe obras produzidas em países da diáspora negra, como Cuba e Haiti. Na sessão de encerramento, que aconteceu na noite do dia 8 de dezembro, no Teatro do Parque, foram exibidos os curtas Uma escavação de nós, da haitiana Shirley Bruno, Pattaki, da sergipana radicada em Cuba Everlane Moraes e o longa-metragem Mãe estou sufocando. Este é meu último filme sobre você, de Lemohang Jeremiah Mosese. 

O meu primeiro contato com o cinema africano e diaspórico foi um verdadeiro gatilho e também um encantamento, por conseguir me enxergar verdadeiramente nas histórias que estavam sendo contadas ali, algo que vai muito além da famosa representatividade exaltada quando a Marvel decide colocar atores e atrizes negros em papéis de herói.

O que é a diáspora negra?

De acordo com o site da Fundação Palmares, é o nome dado a um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos, durante o tráfico transatlântico de escravizados. Junto com seres humanos, nestes fluxos forçados, embarcavam nos tumbeiros (navios negreiros) modos de vida, culturas, práticas religiosas, línguas e formas de organização política que acabaram por influenciar na construção das sociedades às quais os africanos escravizados tiveram como destino. Estima-se que durante todo período do tráfico negreiro, aproximadamente 11 milhões de africanos foram transportados para as Américas, dos quais, em torno de 5 milhões tiveram como destino o Brasil.

Primeiro contato: encantamento e tormenta

Os curtas, Uma escavação de nós e Pattaki, produzidos em Cuba e no Haiti, apresentaram histórias atravessadas pela escravidão onde a água era um elemento de trauma e encanto que carregava uma memória ancestral. A narração e as imagens foram elementos fortes nas produções e ajudaram a levar os espectadores a um lugar incomum da consciência onde o orgulho e o terror estão em permanente conflito.

Já o longa “Mãe estou sufocando. Este é meu último filme sobre você” do diretor Lemohang Jeremiah Mosese, do Lesoto, é surpreendente e impactante de uma forma singular. Com aproximadamente 1 hora e 15 minutos de duração, o cineasta apresenta a história de uma diáspora violenta. As imagens em preto e branco de uma comunidade povoada por pessoas negras e a narração perturbada, conduzida por uma voz que parece ser de um adolescente, demonstram o doloroso processo sofrido por alguém que testemunhou a colonização religiosa em seu território e decidiu fugir, mas que carrega as lembranças de sua terra-mãe com um sentimento confuso de saudade e revolta, amor e ódio. 

Ao final da sessão, notei que meu corpo estava completamente tenso. Maxilares travados, dentes rangendo e os punhos cerrados. Como negra, fruto de um país colonizado e escravista, me reconheci nas palavras que estavam sendo narradas ali, tanto que adivinhei quais seriam as últimas palavras ditas pelo narrador e as repeti junto com ele “eu vejo você”. Essas palavras se referiam ao que ele via ao se olhar no espelho: sua mãe, sua terra, a África.

Lembrei das palavras da cineasta negra Yane Mendes, ao afirmar que: “umas das maiores preocupações nas minhas produções é pensar o que pode ser gatilho para alguém, por isso, mesmo que eu produza algo para denunciar a minha dor e a dor dos meus, esse filme não pode ferir mais, ele tem que ser para gritar, para dizer que não vamos aceitar, mas não para inflamar a dor que a gente já tem”. A sensação que tive quando o filme acabou foi justamente essa, as feridas estavam ali, expostas, mas não inflamadas.

Mãe estou sufocando. Este é meu último filme sobre você parece ser uma autobiografia de Mosese, que nasceu na vila Hlotse, fronteira com a África do Sul, e atualmente mora na Alemanha. O seu território foi colonizado por missionários britânicos e se tornou um centro comercial da colonização. Uma história que em muito se assemelha ao Brasil Colônia e talvez, por isso, eu me sinta tão representada pela sua angústia.

Assista ao trailler:

Mulheres negras protagonistas

A mostra Baobá de cinema africano nasceu do incômodo de mulheres negras que, há anos, trabalhavam com o cinema e audiovisual e perceberam que existia uma lacuna nos festivais pernambucanos e nacionais em não exibir produções do continente africano.

“Desde o início a mostra foi pensada para ser uma janela para o cinema africano na cidade do Recife e também uma forma de ocupar os cinemas de rua e atrair o público negro para ocupar esses espaços”, afirmou Natália Lopes, idealizadora e produtora do Baobácine.

“As pessoas falam de uma necessidade de ampliar o repertório das imagens, falam da diversidade, mas isso não corresponde a uma prática, sobretudo no que diz respeito aos circuitos de cinema mais hegemônicos”, completou a cineasta Janaína Oliveira, curadora do Baobácine.

Na imagem, Natália Lopes e Janaína Oliveira, idealizadoras da mostra Baobácine. Crédito: Arlison Vilas Bôas

A primeira edição da mostra foi realizada em 2018, no Cinema São Luiz. Já neste ano, o Baobácine aconteceu no Teatro do Parque, recém inaugurado após anos em reforma. Nesta segunda edição a mostra foi ampliada e será realizada também em Caruaru, nos dias 18, 20 e 21 de dezembro e contará com um minicurso ministrado pela cineasta Everlane Moraes.

Com o tema “Entre territórios e travessias cinematográficas”, a segunda edição do festival contou com o protagonismo de produções cinematográficas feitas por mulheres negras e também ampliou o território onde os filmes foram produzidos, incluindo os países da diáspora. 

De acordo com Janaína Oliveira, esta ampliação possibilita o crescimento de referências cinematográficas negras para os cineastas do Brasil. “Eu vejo uma geração de cineastas de diferentes regiões que, ao ter contato com as cinematografias africanas, buscam cada vez mais referências do continente, e isso se deve a descoberta de referências que realmente dialogam com suas produções, ao invés de sempre buscar referência em um imagético totalmente eurocêntrico e branco”,  declarou a curadora. 

A mostra é realizada pelo Fazendo Milagres Cineclube em parceria com o Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine) e conta com o incentivo financeiro do Programa de Fomento à Produção Audiovisual de Pernambuco (Funcultura).

Esta reportagem foi produzida com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.