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Como chuvas intensas e escolas precárias agravam a desigualdade na educação

Marco Zero Conteúdo / 10/10/2025
Na foto, uma rua está completamente alagada após uma forte chuva. Em primeiro plano, três homens observam a enchente. Um deles está sentado em uma cadeira plástica branca, enquanto os outros dois estão agachados na beira da calçada, um deles segurando um guarda-chuva vermelho. Todos parecem preocupados e observam a água barrenta que cobre a via. Ao fundo, vê-se a continuidade da rua inundada, postes de energia, cercas e algumas pessoas caminhando pela água. O céu está nublado, reforçando o cenário de tempo chuvoso

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

por Giovanna Carneiro*

Imagine estar em uma mesma escola há, pelo menos, dez anos. Uma escola grande, com quadra, área verde, uma segunda casa onde você se sente acolhido durante um longo período de sua vida. Essa escola apresenta alguns problemas em sua estrutura, as salas estão sucateadas, não há ar-condicionado nas amplas salas espaçosas e arejadas. Mas você já está tão imerso naquele lugar que aprendeu a minimizar alguns problemas estruturais porque, afinal, aquela é a sua escola, seu espaço seguro.

Porém, ao longo dos anos, o que antes eram apenas falhas na estrutura começa a ruir. Nos períodos chuvosos há goteiras, algumas salas já não são mais possíveis de serem utilizadas e aulas precisam ser realizadas na biblioteca. Vários corredores são tomados por água da chuva e o alagamento que, antes ficava apenas nas ruas, é uma realidade também dentro da escola. E tudo começa a ficar cada vez mais frágil, sem nenhuma previsão de reparo, até que, no meio de uma aula, o teto começa a desmoronar na cabeça dos alunos e do professor e essa é a gota d’água.

Agora aquela escola não é mais sua, pelo menos não por enquanto, ela é apenas um prédio abandonado, esperando por um reparo para que haja vida em seus corredores e salas novamente.

A “sua escola” vira a “antiga escola”. E você agora convive com os mesmos professores, que você tanto admira e gosta, e com apenas alguns dos mesmos colegas – porque muitos outros não quiseram permanecer na “nova escola” – em um outro prédio, agora menor, com menos e menores salas, sem área verde, sem quadra. Se a falta de ar-condicionado já era uma questão difícil a ser superada, agora é quase impossível se concentrar nas aulas porque os ventiladores não dão conta da superlotação.

Foi isso que Mateus Felipe e de Axl Gabriel da Silva, ambos jovens de 17 anos, viveram junto com muitos outros alunos e alunas da Escola Estadual Senador Novaes Filho, no bairro da Várzea, na zona oeste do Recife.

Em maio de 2022, Pernambuco enfrentou um dos maiores desastres socioambientais de sua história, causado pelas fortes chuvas combinadas à ausência de planejamento urbano e às profundas vulnerabilidades sociais e econômicas. O resultado trágico foi a morte de 133 pessoas, mortes provocadas por enchentes, deslizamentos de barreiras e choques elétricos. Na ocasião, a Escola Senador Novaes Filho foi designada pela Prefeitura do Recife como um dos espaços para funcionar como abrigo temporário. No mesmo período, 25 escolas se tornaram abrigos temporários, cinco estaduais e 20 municipais.

“Quando a comunidade ocupou a escola durante as cheias de 2022 ficou muito perceptível como a escola estava com uma estrutura precária, muitas salas com o teto caindo, laboratórios sem funcionar, tudo realmente muito perigoso. Depois disso, houve a reforma de três salas e nós conseguimos retomar a rotina com os estudantes”, conta a professora Milena Wanderley. Porém, isso não foi suficiente para garantir a segurança dos alunos, professores e demais funcionários.

Em 2024, após um dos tetos da sala de aula cair durante uma aula, o corpo docente decidiu não ter mais aulas no prédio. “O setor de engenharia já estava indo na escola avaliando essa problemática, mas sem apresentar nenhuma solução. A gente teve que sair do prédio, porque ele oferecia risco de vida aos funcionários e aos estudantes. Então, a gente ficou remoto, híbrido, na verdade, durante o ano de 2024”, completa Milena.

“Doeu muito porque não podíamos ir para a escola, que para mim sempre foi um abrigo. Depois que o teto desabou, tivemos aulas híbridas, mas eu não conseguia acompanhar as online por não ter celular, e muitos colegas também tinham essa dificuldade. A escola foi compreensiva, mas ficou a insegurança, que ainda pesa no Enem e vestibulares, já que esse tempo comprometeu nosso ensino.”, relembra o aluno Axl Gabriel.

As aulas presenciais ocorriam uma ou duas vezes por semana em salas disponibilizadas nas escolas João Pernambuco e Cândido Duarte, também na Várzea. Para os alunos, o modelo híbrido dificultou bastante o processo de aprendizagem, já que muitos deles não tinham acesso a dispositivos eletrônicos ou à internet em suas casas. “Uma aula por semana não é o suficiente de jeito nenhum. Nos prejudicou bastante porque a gente estava muito atrasado em relação aos conteúdos do segundo ano, a gente não sabia de tudo que era para a gente aprender. As provas não foram como os professores planejaram para gente porque todo mundo precisava se adaptar”, conta o aluno Mateus Felipe.

Cansados da situação, em março deste ano, os alunos realizaram um protesto em frente ao antigo prédio da escola pedindo a retomada das aulas presenciais. Durante a manifestação, os adolescentes carregavam cartazes com as afirmações: “Salve o Novaes”, “Luto pelo Novaes”, “Mais de 365 dias com a escola interditada” e “Defenda a escola pública”. Só então a Secretaria de Educação de Pernambuco alugou um outro prédio, localizado no mesmo bairro, para que os alunos pudessem estudar presencialmente.

Um grupo grande de pessoas, formado por estudantes e educadores, participa de um protesto em frente a um prédio público identificado por uma placa azul com a palavra “Educação”. Os manifestantes ocupam a calçada e seguram faixas e cartazes coloridos. As faixas trazem mensagens como “Salve o Novaes”, “Defenda a escola pública” e “Sauna de aula, não dá! Cadê o ar-condicionado?”. Muitos participantes levantam os braços e demonstram entusiasmo. O céu está claro e há árvores verdes ao fundo, sugerindo um dia ensolarado.

Escola passou um ano interditada por causa das chuvas

Crédito: Divulgação/Sintepe

No entanto, a estrutura da nova escola ainda não é adequada e apresenta outros desafios para a comunidade escolar, como explica a professora Milena: “Temos apenas nove salas para doze turmas pela manhã, todas lotadas, o que gera um grande desgaste para alunos e professores”.

A falta de climatização nas salas de aula também é outro problema que dificulta a rotina escolar dos alunos. A gestão da escola, junto com os alunos, está mobilizada para tentar garantir que os ar condicionados sejam instalados o quanto antes, mas ainda não há previsão. Também não há previsão de quando o antigo prédio da escola será reformado. De acordo com Milena Wanderley, o processo licitatório para as obras está em andamento, com uma verba de R$ 13 milhões para melhorias e reparos no prédio já liberada.

Diante de tantas dificuldades para manter uma rotina escolar segura, uma das consequências imediatas é a evasão escolar, como deixa evidente em seu depoimento o aluno Axl Gabriel: “Já senti muita vontade de sair da escola devido a tudo que nós já passamos. Quando eu entrei na escola nós não tínhamos aula porque faltava professores em algumas disciplinas, às vezes os próprios professores tinham que levar ventiladores de suas casas para a escola. Mas também vivi momentos lindos com pessoas incríveis. A união de alunos e professores pelo bem da comunidade escolar me cativa.”.

Essa união citada por Axl diz respeito a um projeto desenvolvido por professores e gestores da Escola Estadual Senador Novaes Filho que realiza ações integradoras entre a comunidade e a escola para criar uma rede e ampliar o debate sobre os impactos socioambientais e a Justiça Climática.

Salas de aula alagadas

Localizado em uma área que margeia o rio Capibaribe, a Várzea é um dos bairros do Recife mais suscetíveis aos impactos das mudanças climáticas. Com um grande número de famílias vivendo em áreas ribeirinhas, alagamentos e enchentes se tornaram uma realidade comum para a população.

Por isso, outras da escola do bairro sofrem os impactos do clima. É o caso também da Escola Municipal Doutor Rodolfo Aureliano.

Um relatório divulgado em 2024 pelo Instituto para a Redução de Riscos e Desastres (IRRD), da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), revelou que 44% do território do Recife apresenta alto risco de inundações. De acordo com o levantamento, os casos de alagamentos e os pontos críticos na cidade se intensificaram nos anos de 2021, 2022 e 2023.

“No Recife vivenciamos chuvas torrenciais cada vez mais frequentes, o que torna urgente discutir adaptação climática. Essa adaptação deve considerar não apenas a infraestrutura, mas também a realidade das pessoas, já que nossos estudantes enfrentam dificuldades. As enchentes que invadem casas e as doenças causadas pela água contaminada nos levam a debater com os alunos não só a adaptação climática, mas também o racismo ambiental, sobretudo porque a rede pública do Recife é formada majoritariamente por estudantes negros diretamente afetados pelos impactos do clima”, destacou Gabriel Augusto, professor da Escola Doutor Rodolfo Aureliano.

Nesse cenário, até o caminho para a escola se torna um desafio para os estudantes. As rotas não são iguais para todos, como relata Ryan Miguel, de 13 anos, aluno da Escola Doutor Rodolfo Aureliano: “A maior dificuldade quando chove é passar pela comunidade onde moro, porque alaga muito e fica difícil chegar na escola”.

Davi Lucas, de 12 anos, também estudante da mesma unidade de ensino, complementa: “Quando chove, muita gente falta porque a cidade fica alagada, e um dos motivos é o lixo que entope as canaletas”.

Os relatos foram colhidos durante uma feira de conhecimentos sobre meio ambiente realizada na escola municipal, com o objetivo de fortalecer o diálogo entre a comunidade escolar e o território onde ela está inserida.

“É essencial que as escolas incentivem o aprendizado sobre o meio ambiente, porque as crianças se tornam multiplicadoras desse conhecimento e, por meio delas, a comunidade também se conscientiza”, destaca Sandra Vital, mãe de um aluno presente na atividade.

“Escola Viva e Sustentável”

Diante dos grandes desafios impostos pela crise climática, iniciativas da sociedade civil organizada buscam amenizar os impactos nas comunidades mais vulneráveis. Esses esforços têm como foco ampliar o acesso à informação, fortalecer a mobilização social e estimular tanto a cobrança por políticas públicas quanto a realização de ações autônomas que garantam um mínimo de segurança para as famílias.

Compreendendo a importância de um processo educativo que ultrapasse os muros da escola, professores da Escola Senador Novaes Filho criaram o projeto “Escola Viva e Sustentável”, que articula o conhecimento ambiental com a vivência cotidiana dos estudantes e suas comunidades.

“Pensamos na construção de um espaço escolar que ajudasse os alunos a compreenderem o território e os impactos ambientais, especialmente após as enchentes de 2022 e a negligência do Estado. Discutimos com alunos e comunidade questões ligadas ao racismo ambiental: por que as escolas periféricas não recebem a atenção que deveriam receber? Quem é o público dessa escola? O que o sistema impõe para o público dessa escola e de que forma a gente pode resistir?”, conta a professora Milena Wanderley.

O que é racismo ambiental?

O termo “Racismo Ambiental” foi criado em 1981 por Benjamin Franklin Chavis Jr., importante líder afro-americano dos direitos civis nos Estados Unidos. A expressão surgiu a partir de suas investigações sobre como violações e irregularidades ambientais afetavam desproporcionalmente comunidades negras no país. Segundo Chavis, o racismo ambiental consiste na “discriminação racial na formulação de políticas ambientais, na aplicação de leis e regulamentos, no direcionamento deliberado de comunidades negras para a instalação de resíduos tóxicos, na sanção oficial da presença de substâncias venenosas e poluentes com risco de vida nessas áreas e na exclusão de pessoas negras da liderança dos movimentos ecológicos”. FONTE: https://www.politize.com.br/racismo-e-injustica-ambiental/

Para o Centro Brasileiro de Justiça Climática, “o racismo é um sistema de opressão em sua dimensão política e social. Portanto, discutir justiça climática é enfrentar o racismo ambiental.” FONTE: https://cbjc.com.br/pt/

O projeto “Escola Viva e Sustentável” é desenvolvido em parceria com outras organizações e iniciativas da sociedade civil, especialmente aquelas com atuação na região da Várzea. Essa articulação tem possibilitado a realização de atividades conjuntas na Escola Senador Novaes Filho, como a primeira conferência do meio ambiente promovida pela instituição neste ano. “A ideia é que a gente consiga fazer esse pensamento socioambiental chegar de forma prática na vida dos estudantes, para que eles comecem a repensar e a entender os territórios que eles ocupam e quais são as soluções viáveis. Então, a gente tem lido muito Ailton Krenak, a gente tem lido também Antônio Bispo dos Santos, o livro A Terra dá, a Terra quer”, explicou a professora Milena Wanderley.

Os alunos reconhecem a importância do projeto, garante Mateus: “eu não sabia muito sobre o racismo ambiental. É bom saber que ele é uma realidade que reforça a desigualdade social. E saber também que é uma discriminação, porque o racismo ambiental tem muito a ver com a discriminação e a injustiça social enfrentadas pela população vulnerável”.

Axl Gabriel tem opinião semelhante: “é muito importante o ensino da Justiça Socioambiental e do Racismo Ambiental porque nós temos que entender que nós somos sempre desvalorizados, nós pessoas pretas, que viemos de favela, que moramos em áreas vulnerabilizadas. Entender isso é como um choque de realidade para nós”.

Falta de saneamento causa ainda mais transtornos

A precariedade do saneamento básico é mais um obstáculo enfrentado por estudantes da rede pública em dias de chuva, especialmente nos bairros periféricos. A ausência de infraestrutura adequada agrava os impactos das chuvas e torna o trajeto até a escola um verdadeiro desafio.

“Nossa escola está em uma comunidade sem saneamento básico, o que agrava os transtornos das chuvas, com esgotos a céu aberto e canaletas insuficientes. Muitos alunos têm dificuldade de se deslocar, e a própria escola sofre com os alagamentos”, relata Eliza Azevedo, professora da Escola Municipal Edson Cantarelli, no bairro do Jordão, Recife., zona sul do Recife.

A foto mostra um canal estreito de esgoto a céu aberto, passando entre muros de casas simples construídas com tijolos aparentes e paredes desgastadas. As margens do canal são revestidas com pedras e há vegetação crescendo nos muros úmidos e nas bordas. À esquerda, uma parede branca apresenta manchas de mofo e rachaduras; à direita, uma parede está parcialmente destruída, revelando tijolos e infiltrações. Ao fundo, o canal segue em direção a um túnel escuro sob uma estrutura de alvenaria. O céu está nublado, e há algumas árvores e plantas visíveis acima dos muros.

Recife está entre as 20 cidades com pior cobertura de saneamento básico do país

Crédito: Giovanna Carneiro

O cenário relatado pela professora reflete a realidade do saneamento na Região Metropolitana.

Recife e Jaboatão dos Guararapes aparecem entre as 20 cidades com pior cobertura no Ranking do Saneamento 2022, elaborado pelo Instituto Trata Brasil a partir de dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). O levantamento aponta que Pernambuco é o terceiro estado com maior número de municípios nas piores posições, atrás apenas do Rio de Janeiro e do Pará.

No Recife, menos da metade da população (44,01%) tem acesso à rede de esgoto, e o município está entre os que menos avançaram em novas ligações de esgoto (0,57%) e de água (4,28%). Em Jaboatão, apenas 21,78% da população é atendida por coleta de esgoto, e apenas 16,15% do esgoto coletado recebe tratamento. Além das duas maiores cidades da região, também aparecem no ranking Olinda, Paulista, Caruaru e Petrolina, revelando a extensão do problema em todo o estado.

*Esta reportagem foi produzida no âmbito do Programa de Fellowship para Jornalistas Negros e Negras do Centro Brasileiro de Justiça Climática (CBJC) — iniciativa que fortalece a cobertura jornalística antirracista sobre justiça climática e populações negras no Brasil.

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