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Como garantir a qualidade socioambiental nos conjuntos habitacionais do Recife?

Marco Zero Conteúdo / 13/06/2024
Foto do conjunto habitacional Ruy Frazão. A imagem retrata uma cena ao ar livre em um dia ensolarado, com céu azul claro. Há duas pessoas em pé em um caminho pavimentado, cercadas por grama verde e árvores com folhagem densa. À direita do caminho, há um banco de madeira e o que parece ser montes de grama cortada.

Crédito: Fábio Mosaner/UFPE

por Fábio Ferreira Lins Mosaner*

O acesso à moradia digna no Brasil é alcançado, muitas vezes, após anos de luta e espera por parte da população. Para muitos cidadãos, essa conquista só é possível por meio de programas habitacionais promovidos pelas esferas municipais, estaduais ou federal. Quando finalmente recebem suas casas, os moradores dos conjuntos habitacionais recém-construídos se deparam com novos desafios, muitos dos quais envolvem a manutenção de um habitat socialmente sustentável.

Neste aspecto, o que se observa é que parte das famílias contempladas não têm renda suficiente para sustentar as contas individuais e coletivas, como as contas de energia, água e esgoto e a taxa condominial para gestão e manutenção dos espaços comuns. Por conta disso, muitas famílias deixam as unidades conquistadas por meio de repasse ou venda, muitas vezes ilegal, para retornar a condições precárias de habitat, onde estas despesas são mais condizentes com a sua realidade financeira.

Outro desafio é a falta de qualidade ambiental dos espaços internos e externos dos conjuntos habitacionais. Com relação ao projeto arquitetônico, no caso do Recife, nota-se a falta de previsão de dispositivos construtivos de proteção das unidades habitacionais da luz direta do sol, tais como marquises, quebra-sóis e floreiras incorporadas às fachadas ou que permitam a ventilação cruzada mesmo em dias de chuva, como os elementos vazados (cobogós). Já no âmbito urbanístico e paisagístico, o que se observa é a ausência de espaços agradáveis de convívio comum que sejam articulados com arborização adequada e mobiliário urbano, como bancos, lixeiras, iluminação, parquinhos para crianças, assim como mecanismos de escoamento das águas da chuva nas áreas externas.

Frente às questões levantadas, nos questionamos: o que pode ser feito para aumentar a qualidade e evitar a possível evasão das pessoas dessas habitações? Em outras palavras, como aumentar a resiliência ambiental e social nos conjuntos habitacionais de interesse social, em particular no Recife?

Embora pareça simples, a resolução desta questão é complexa, pois depende da articulação entre os diversos atores envolvidos, tais como moradores, movimentos sociais, órgãos estatais, universidades e organizações não-governamentais.

Algumas destas iniciativas já estão acontecendo no Recife e região metropolitana. Por exemplo, podemos citar a formação da Articulação de Agroecologia e Agricultura Urbana e Periurbana da Região Metropolitana do Recife (AUP RMR) que reúne diversas hortas comunitárias existentes e em gestação, localizadas em várias comunidades e conjuntos habitacionais, por meio de coletivos, movimentos sociais e ONGs. Essas ações comunitárias são amparadas pela Prefeitura do Recife, que criou a secretaria-executiva de Agricultura Urbana (SEAU), que tem como objetivo principal fomentar as práticas sustentáveis de agricultura no território do município.

No contexto das ações em conjuntos habitacionais, vamos apresentar como exemplo as atividades e parcerias que vêm sendo desenvolvidas no conjunto habitacional Ruy Frazão, localizado no bairro de Afogados. O conjunto abriga 336 famílias – cerca de duas mil pessoas – e teve sua origem numa ocupação no terreno da UFPE em 2012, por integrantes do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Após a ocupação, foi realizada uma articulação entre o MLB, UFPE, Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e Governo do Estado para que as famílias fossem abrigadas em uma área de 2,4 hectares no bairro de Afogados, no Recife. A Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizado (CIAPA), grupo de pesquisa do Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU-UFPE), articulou e prestou a assistência técnica para o anteprojeto habitacional da área, coordenada pelo professor Luís de La Mora, fundador da CIAPA. A despeito de disputas e conflitos, o conjunto foi contemplado pelo programa Minha Casa Minha Vida Entidades ,em 2016, e a obra foi concluída no final de 2021. As unidades começaram a ser habitadas em 2022.

A imagem retrata um grupo de pessoas em formato de semicírculo ao redor de várias folhas de papel dispostas no chão. As folhas parecem conter texto, mas o conteúdo específico não está claro. No centro do semicírculo, há uma folha maior com o que parece ser uma grade ou gráfico. O ambiente parece ser interno, com boa iluminação natural, possivelmente um salão comunitário ou espaço similar. A reunião parece estar focada em discussão ou colaboração, conforme sugerido pela disposição das folhas e pela postura atenta dos participantes.

Oficina de levantamento de demandas e capacitação comunitária no habitacional Ruy Frazão

Crédito: Fábio Mosaner/UFPE

Apesar da importante conquista, o Conjunto Habitacional Ruy Frazão também carece de espaços coletivos qualificados e de ações que promovam a sustentabilidade e resiliência das pessoas no conjunto. Nesse sentido, a partir da demanda das moradoras e moradores, em articulação com o MLB, CIAPA-UFPE, coletivo Massapé e outras ONGs e coletivos, atualmente estão sendo desenvolvidas ações de caráter multidisciplinar (arquitetura, urbanismo, engenharia ambiental, serviço social, etc.) por meio da qual os moradores são os protagonistas e exercem o poder decisório, desde o levantamento de necessidades e demandas, à elaboração de projetos, captação de recursos e implementação das intervenções.

Desde julho de 2023, estão sendo realizadas oficinas de levantamento de demandas e capacitação comunitária, primeiramente para implementar uma área de compostagem e horta coletiva. Atualmente as atividades estão centradas em aprimorar e engajar mais pessoas na gestão da horta e compostagem, que já estão em funcionamento. Também está em curso o planejamento de espaços de lazer para as crianças, jovens e idosos, providos de bancos e área coberta para abrigar biblioteca comunitária e atividades lúdicas. Como estimativa de novas melhorias para o conjunto, as novas frentes de trabalho envolvem projeto e implantação de sistema de reúso das águas pluviais para atender a horta comunitária e limpeza das coletivas, assim como o plantio de árvores para aumentar a área sombreada e mitigar o desconforto ambiental, tanto das unidades habitacionais quando das áreas externas.

No entanto, é preciso salientar que muitas das ações empreendidas nesse conjunto são de mitigação de problemas cujas soluções poderiam estar contempladas na fase de projeto das habitações. Nesse sentido, sugere-se que nos projetos de conjuntos habitacionais de interesse social promovidos pelos órgãos públicos responsáveis, sejam também incluídos, além dos parâmetros urbanísticos, diretrizes projetuais que favoreçam a resiliência socioambiental desses conjuntos. Dentre essas diretrizes, recomenda-se:

1. implantação das casas e edifícios observando aspectos topográficos e climáticos, de modo que mitiguem as situações de enchentes, no caso de áreas baixas, e deslizamentos, no caso de morros;

2. criação de espaços para o convívio das pessoas adequados ao clima do Recife, com sombreamento de árvores, drenagem e mobiliário urbano;

3. espaços adequados para hortas comunitárias, espaços de convívio, e áreas de comércio que possam gerar renda para a manutenção das despesas coletivas e que contribuam para a segurança alimentar de seus habitantes.

4. implantação de captação de energia solar por meio de painéis fotovoltaicos e o reuso de águas pluviais, visando menor impacto no meio ambiente e redução das despesas coletivas;

5. dispositivos que protejam as fachadas do sol e garantam a ventilação cruzada nos edifícios, garantindo conforto ambiental nos apartamentos e casas.

Para além destes, inúmeros outros parâmetros podem ser detalhados, mas, em linhas gerais, recomendo que os projetos de habitação de interesse social devem se alinhar com questões atuais, como emergência climática, segurança alimentar, educação e geração de renda, tanto para construção de novas unidades como para adequação e regularização de áreas consolidadas. O objetivo é aumentar a qualidade ambiental e mitigar custos de operação e manutenção, questões que vão além das soluções para o déficit habitacional.

No que diz respeito à legislação urbanística municipal, os conjuntos habitacionais de interesse social são enquadrados como Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) do tipo II: atualmente são 21 áreas nessa condição. Diferente das áreas de ocupação surgidas espontaneamente por famílias de baixa renda e carentes de infraestrutura (Zeis tipo I) que possuem um instrumento de gestão com a participação popular (Prezeis- Lei Municipal 16.113/95), os conjuntos habitacionais enquadrados na ZEIS tipo II não possuem nenhum instrumento semelhante. Por esse motivo, recomenda-se fortemente a criação de um fórum de gestão das Zeis tipo II, na qual se privilegie a participação popular, desde a concepção dos conjuntos habitacionais até sua gestão e manutenção. Por fim, também é preciso que o poder público municipal implante o Programa Municipal de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS), conforme previsto na Política Municipal de Habitação de Interesse Social (lei Municipal nº 18.863/2021), que atenda tanto as ZEIS tipo I como as ZEIS tipo II.

*arquiteto e urbanista, professor adjunto do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizagem (CIAPA /UFPE) e pesquisador do Observatório da Metrópoles (Núcleo Recife).

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