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porElismarcia Tosta, Josyclaudia GomeseWander Vieira*
Micheli de Paula Oliveira nasceu com aplasia do nervo óptico, uma condição congênita que compromete o desenvolvimento da visão. Ainda bebê, foi adotada por uma família amorosa que, desde o início, ofereceu a ela um lar seguro e acolhedor. Apesar das adversidades e dos desafios médicos, Micheli cresceu cercada de afeto e incentivo. Com o tempo, sua curiosidade e inteligência natural começaram a despontar.
Desde pequena, demonstrava interesse por sons e vozes. Era comum vê-la com um gravador de fita cassete, registrando falas e brincadeiras. Essa relação precoce com a comunicação seria a semente do que viria a florescer. A deficiência nunca foi um impedimento, mas um estímulo para olhar o mundo com outros sentidos.
Durante a infância, Micheli passou por diversas fases de adaptação e descobertas. Mesmo com as limitações visuais, foi incentivada a brincar, explorar o ambiente e desenvolver autonomia. Aprendeu a se movimentar com segurança, a usar a audição de forma aguçada e a perceber o espaço ao seu redor de maneira intuitiva. Ainda que algumas tarefas exigissem mais esforço, nunca lhe faltou criatividade para encontrar soluções. Os registros em áudio viraram uma prática cotidiana. Ela gravava não apenas para guardar memórias, mas para compreender melhor os sons, as vozes e os ambientes.
Esse olhar – ou escuta – diferenciado seria fundamental em sua trajetória profissional. O ambiente familiar, cheio de estímulo, foi essencial nesse processo.
Na adolescência, Micheli aprofundou o interesse por tecnologias de gravação. Ganhou um celular com câmera simples e passou a registrar imagens da filha. A maternidade precoce trouxe responsabilidades, mas também fortaleceu seu vínculo com a produção audiovisual. Ao perceber que conseguia editar vídeos, mesmo sem enxergar, nasceu a ideia de que poderia ir além. Criou um videobook com momentos especiais da filha, atualizando-o com carinho. Essa prática, antes pessoal, se transformaria em paixão profissional. Ela passou a experimentar formas de filmar que combinavam audição, percepção espacial e memória. Mesmo sem imagem, via com o corpo. Sua sensibilidade e precisão surpreendiam a todos ao seu redor.
Entre 1993 e 1997, Micheli estudou no Instituto de Cegos Padre Chico, onde ampliou seus horizontes. Lá, teve contato com recursos adaptados e com outros estudantes com deficiência, o que fortaleceu sua identidade. A convivência naquele espaço a ajudou a consolidar a percepção de que ser cega não limitava suas possibilidades. Participou de atividades diversas, inclusive de uma reportagem para a revista Cláudia, onde teve contato com uma câmera profissional. Esse momento foi determinante: ali, percebeu que desejava trabalhar com comunicação. O encantamento pelas ferramentas audiovisuais e o desejo de contar histórias ganharam forma e objetivo. Foi a confirmação de uma vocação.
Ao concluir o ensino médio em 2007, Micheli iniciou um novo ciclo. Casada e com uma filha pequena, dividia seu tempo entre as tarefas domésticas e a paixão pela comunicação. Mesmo com poucos recursos, buscava formas de estudar, aprender e se aperfeiçoar. Fez cursos de informática, locução e edição de vídeo, sempre de forma autodidata ou com auxílio de amigos. Gravava áudios dentro de um guarda-roupa para melhorar a acústica. As gravações impressionavam pela clareza e qualidade. O improviso era sua marca, e a determinação, sua força motriz. Ela sabia que ainda tinha muito a conquistar, mas não esperava por ninguém. Ia em frente, movida pelo sonho.
O projeto Olhar Diferente nasceu como uma forma de dar visibilidade ao trabalho de Micheli. Mesmo sem contar com estrutura formal ou patrocínio, ela passou a produzir vídeos para eventos sociais, palestras e campanhas. Com uma câmera semi-profissional, registrava momentos com sensibilidade ímpar. Em 2014, adquiriu sua primeira câmera profissional e passou a postar no YouTube. A internet se tornou sua vitrine.
Apesar das dificuldades, Micheli nunca deixou de acreditar em seu potencial. Cada novo vídeo era um passo na construção de sua identidade profissional. Os elogios vinham de todos os lados, mas o que mais a motivava era saber que inspirava outras pessoas com deficiência.
O encontro com o fotógrafo Teco Barbero foi um divisor de águas. Ao pesquisar sobre profissionais com deficiência visual na comunicação, encontrou Teco, um fotógrafo com baixa visão. A conexão entre os dois foi imediata. Teco a convidou para uma palestra em Itu, onde Micheli seria uma das convidadas. Nervosa, mas determinada, aceitou o desafio. A palestra foi um sucesso, e a parceria entre eles cresceu. Juntos, participaram de diversos eventos e projetos, levando suas histórias e trabalhos para públicos diversos. Teco se tornou mentor e amigo. Suas orientações ajudaram Micheli a aprimorar sua técnica e a expandir sua rede de contatos.
Em 2016, Micheli realizou outro sonho: ser modelo fotográfica. Foi convidada para um catálogo de joias e participou de sessões fotográficas com direção de Teco. As imagens capturaram sua beleza, força e leveza. Mais do que estética, as fotos transmitiam a essência de quem ela é. O trabalho rendeu elogios e convites para outros ensaios. Mesmo que as oportunidades não tenham se multiplicado como esperava, Micheli se reconheceu como modelo. A experiência a marcou profundamente. Sentiu-se valorizada não apenas pela imagem, mas por tudo que representava: uma mulher com deficiência rompendo estereótipos. Era mais um passo na luta por inclusão.
Sua atuação como cinegrafista sempre foi marcada pela precisão e pela criatividade. Mesmo sem visão, Micheli sabe onde posicionar a câmera, como acompanhar movimentos e quais momentos merecem ser registrados. Usa o corpo como extensão do olhar. A audição e a percepção espacial são suas principais ferramentas. Domina os comandos, ajusta foco, enquadra pessoas e movimentos. Cada filmagem é uma construção sensível. Ela costuma dizer que não quer apenas ouvir – quer sentir e transformar isso em imagem. Sua técnica é única. E sua sensibilidade, admirada até por profissionais com formação tradicional. Micheli desafia as regras e mostra novas possibilidades.
*Estudantes de Jornalismo, estagiárias do convênio entre a Marco Zero Conteúdo e a Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat). O texto faz parte do Trabalho de Conclusão de Curso dos estagiários, aprovado com nota 10.
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