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Entre a Bomba do Hemetério e Água Fria — dois bairros conhecidos pela efervescência do carnaval—, na zona norte do Recife, há uma pequena comunidade onde o movimento é intenso às vésperas do carnaval. Pelo menos 200 pessoas de todas as idades estão diretamente envolvidas nos preparativos para colocar nas ruas não apenas uma, mas duas agremiações, que representam o Córrego do Bombeirense e se apresentarão no Grupo Especial da capital pernambucana. A escadaria da comunidade abriga duas casas de fachadas coloridas, sedes do Maracatu Raízes de África e do Boi Mimoso.
As duas agremiações compartilham mais do que o endereço e a paixão dos moradores do Córrego. Tanto o boi quanto o maracatu nasceram em diferentes projetos sociais destinados às crianças do bairro na década de 1990. Os meninos e as meninas cresceram, casaram, tiveram filhos, assumiram responsabilidades e mantiveram vivo o compromisso com a cultura popular.
Toda a preparação do Boi Mimoso acontece ali, bem no meio da escadaria, em frente à casa de dona Nalva, mãe do presidente e cofundador do Boi, Ricardo Estevam. Desde a criação do boi, ela é a guardiã da agremiação, abrindo as portas da sua moradia e a transformando em uma sede improvisada.“Aqui são 27 anos de boi, porque começou lá em 1997, então a comunidade abraçou a brincadeira do boi. Não só a brincadeira do boi, mas o maracatu e os outros que existem aqui dentro da comunidade”, explica Estevam.
A poucos degraus dali, a casa do mestre Walter França, de 74 anos, é o coração do Maracatu Raízes de África. Além de guardar fantasias, estandartes e troféus, a casa também é uma oficina para confecção, conserto e depósito de instrumentos de percussão. “Carnaval tem seus direitos, quem não pode com ele, não se meta”, justifica França, um dos mais importantes mestres do maracatu em Pernambuco.
Segundo ele, para colocar a agremiação na rua, os principais elementos são intangíveis. “A preparação é ter peito, ter coragem, paciência, calma, dedicação e, acima de tudo, amor. Aí vêm duas coisas importantes, vem o amor e o respeito. Se você não tiver esses dois itens, não vai fazer um bom carnaval”, reforça o mestre.
Mestre Walter ajudou a criar o Raízes de África em 1995
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroPara conduzir o maracatu na avenida, mestre Walter conta com um auxiliar vindo do boi e com idade para ser seu neto. Joalison Batista, de 22 anos, é um jovem batuqueiro que entrou no mundo da cultura popular com um ano de idade, vendo os pais e toda a família envolvida com o boi. O primeiro presente que ganhou do pai foi um bombo pequeno para seguir os passos dos mais velhos.
Hoje, ele ocupa uma posição de destaque dentro do maracatu, auxiliando o mestre Walter a conduzir as toadas. “Fui me tornando uma referência dentro do boi, depois dentro do maracatu, por causa dessa movimentação que eu fazia e faço até hoje dentro das agremiações”, ressalta
“A gente brinca o boi e o maracatu, mas, na verdade, isso é uma brincadeira muito séria. Porque a cultura também tem esse movimento. É um movimento que também pode salvar a vida. Eu fico muito feliz, muito alegre em saber que eu tô podendo ajudar pessoas com a música, com a cultura popular. E, principalmente, o pessoal da minha comunidade que são meus amigos, meus tios, meu pai, meu avô”, afirma o jovem.
Aos 22 anos, Joalison faz parte das agremiações desde o 1º ano de vida
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroDe outra geração, o diretor de patrimônio do Raízes de África, Gilberto Estevão, de 53 anos, é mais uma das peças fundamentais para que a festa aconteça. Ele guarda em casa todos os materiais que não cabem na casa de mestre Walter, ajuda na pintura dos instrumentos do boi e do maracatu, organiza a rua quando tem festa. É um coringa.
Diferente de Joalison, se encantou pela cultura do local já adulto, quando parentes foram morar no Córrego. Mas é igualmente apaixonado. “Eu gosto tanto que fazem seis meses que não vou em casa”, diz ele que mora no Alto do Pascoal, mas nessa época se muda para o Bombeirense, onde divide um pequeno espaço com os instrumentos do maracatu.
A história do maracatu se confunde com a trajetória do mestre Walter, homem que tem 70 anos produzindo cultura popular. Ao lado de duas educadoras da Escola Municipal Antônio Tibúrcio, ele era mestre do maracatu Estrela Brilhante do Recife quando viu na percussão uma maneira de evitar a evasão escolar e assim ajudou a criar o maracatu, que, na época, se chamava apenas Raízes.
O projeto precisou ser pausado por alguns anos, mas em 2018, após o mestre deixar o posto no Estrela Brilhante do Recife, voltou com o novo nome, Nação Raízes de África. Nas cores verde, amarelo e vermelho, o maracatu carrega consigo as famílias daqueles que participaram ainda crianças da primeira formação.
“Cada criança tem uma mãe, tem uma irmã, que vieram fazer parte do maracatu Nação Raízes de África. Hoje eu conto com um bocado deles, que eram pequenininhos, que já são pais, entendeu? A minha filha mesmo já é mãe de três e todos participam do Raízes. Ela também foi uma das que vieram pequenininhos do maracatu Raízes, hoje está no maracatu Nação Raízes de África”, conta o mestre.
Assim como o maracatu, o Boi Mimoso se tornou realidade com o incentivo de um projeto social que chegou na comunidade em 1997, quando foi fundado. O que era um sonho dos filhos dos brincantes do Boi Teimoso, que não podiam participar da brincadeira por serem crianças, se tornou realidade. Por falta de estrutura e dinheiro, os adolescentes acabaram por deixar de lado o Boi por alguns anos, que só foi retomado anos depois.
“De 2002, em diante, eu já estava mais velho. Então, junto com outras pessoas que deram uma força muito grande. A gente volta a resgatar o Boi Mimoso. Porque é uma brincadeira que a gente sempre fez. Então resgatamos com força para que a gente se tornasse uma agremiação”, afirma Ricardo Estevam, presidente do Boi Mimoso.
A comunidade ainda conta com o bloco Sou Criança e Adolescente, antes do carnaval, com o Arraial Arriégua, no período junino, a festa das crianças, em outubro, e ainda organizam um “dia do lazer” com um passeio fora da cidade para os integrantes do Boi.
Apesar do pouco tempo de existência, comparadas às agremiações centenárias da folia pernambucana, tanto o boi quanto o maracatu estão no Grupo Especial nas catergorias boi e maracatu nação. E isso exige muita preparação. Os ensaios que começam por volta de agosto, se intensificam no começo do ano e se dividem com as apresentações pré-carnavalescas. E as produções requerem antecedência e a colaboração de todos os envolvidos. Na comunidade, há quem seja artesão e carnavalesco, há quem costure e há quem conserte os instrumentos.
Entretanto, para colocar a agremiação na rua é preciso mais do que a disposição da equipe, é preciso de recursos financeiros. “É ter dinheiro e não ter ‘pirangagem’, é querer botar a sua grandeza na rua. Porque se você for pensar que tá caro, só tem um maracatu bem bufento, feio, sem ninguém”, reforça o Mestre Walter.
As agremiações carnavalescas recebem uma subvenção, nome do apoio financeiro para o fortalecimento da cultura popular pago pela Prefeitura do Recife. No entanto, o valor é repassado em duas parcelas, uma antes do carnaval e a outra somente após a prestação de contas, o que pode demorar até quatro meses após a festa.
Por isso, editais e apresentações pagas fortalecem a manutenção dos grupos. “A subvenção da prefeitura dá uma grande força. Não é tudo, porque a gente gasta muito mais. A gente gasta três vezes mais do que a gente recebe da subvenção”, admite Eduardo Melo, produtor e vice-presidente do Boi Mimoso. “Todo o cachê é usado no boi. A gente já tem que se programar, porque a gente sabe que 2026 vem aí. A gente trabalha esse ano, mas já pensando no outro. Porque esse é o motivo da gente fazer, a gente sabe que a gente tem que existir. Se a gente ficar só pensando em 2025, a gente não trabalha outro ano, não”, completa.
Ensaios do maracatu começam com meses de antecedência
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroJornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.