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crédito: arte de Ivson Santo
Pilar da cultura do sertão nordestino, a oralidade permanece viva no semiárido nordestino em pleno século XXI. É comum associar a vitalidade da tradição oral, trazida pelos portugueses e herdada dos árabes que ocuparam a península Ibérica por oito séculos, à poesia de improviso e aos violeiros. No entanto, há outro grupo sem tanta visibilidade que também merece esse crédito: os contadores e contadoras de “causos” e de histórias. Além de subir aos palcos para animar eventos e festas populares, também começam a ocupar as redes sociais.
Desde os anos 1990, o escritor, advogado e servidor federal aposentado, Zelito Nunes, acompanha a literatura oral nordestina. “Não tenho a menor dúvida do peso dos narradores de história para perpetuar a cultura sertaneja”, argumenta, ressaltando que o humor e o carisma dos narradores continua a despertar a atenção não apenas das plateias sertanejas. O melhor exemplo seria Jessier Quirino, o nome mais notórios entre os contadores de “causos” brasileiros, que tornou célebre um conto do próprio Zelito, O trem da great western.
Paraibano de Prata, no sertão do Cariri, a 296 quilômetros de João Pessoa, Zelito também já se aventurou a subir em um palco para narrar histórias. “Só teve um, mais doido do que eu, que me levou para um evento. Mas sou tímido e não deu muito certo”, recorda. A experiência como contador fracassou, mas ele se tornou uma referência entre os artistas sertanejos por ter editado e publicado dezenas de livros de poetas e narradores quando, por 11 anos, dirigiu a Editora Universitária da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Foi assim que ele passou a ser conhecido também como apologista, ou seja, alguém que promove, defende e enaltece a arte popular da região. Nesta condição, Zelito costumava viajar ao sertão para, com uma câmera VHS nas mãos, registrar em vídeo entrevistas e depoimentos de nomes lendários da poesia popular, como Lourival Batista, Jó Patriota e Pinto do Monteiro, cuja biografia é de sua autoria. Boa parte desse conteúdo está sendo digitalizado e veiculado no canal de YouTube de Marcos Passos, produtor cultural e um dos mais ativos narradores sertanejos.
Ele, no entanto, mergulhou ainda mais fundo nesse universo, indo além da poesia e dedicando-se a organizar livros, promover eventos e a narrar as histórias ambientadas na região. Pessoas de carne e osso, que viveram ou ainda vivem no Pajeú são protagonistas das historietas que narra em festas, eventos e no intervalo de shows. Assim, ele vai imortalizando nomes como dona Pureza, Biu Doido, Luís Marinho e o profeta Manoel Luís, bem como a rua da Baixa, lugar onde, segundo ele “circulam os doidos os boêmios e tudo acontece em São José do Egito”.
Marcos nasceu numa família de poetas em São José do Egito, a 361 quilômetros do Recife. Seu pai, sua mãe, os sete irmãos e, pelo menos, dois sobrinhos adolescentes, se dedicam a criar versos de improviso. “Desde sempre, respiro poesia; desde cedo, exalto e divulgo essa nossa arte tão querida. Desde criança, sou um apaixonado pela verve versátil dos cantadores repentistas, que ‘tiram de onde não tem e colocam onde não cabe’”, relata.
O humor em histórias curtas caracteriza as narrativas de Marcos Passos. ”Nas minhas contações de histórias, assim como tantos outros contadores de ‘causos’, sei da minha contribuição para a divulgação e perpetuação da riquíssima cena cultural enraizada em nosso sertão. Aonde vou, faço uso dessa ferramenta pra narrar a presença de espírito dos sertanejos que guardam as respostas ‘na ponta da língua’. Apesar dos avanços tecnológicos, haverá sempre espaço para a propagação da astúcia e da ludicidade da nossa gente”, explica.
A tradição oral manteve viva na memória dos moradores do sertão do Pajeú, a história de Antônio de Jovita, que, na década de 40, recebeu uma carta de convocação para se apresentar em Caruaru, com a possibilidade de, com o Exército brasileiro, participar da Segunda Guerra Mundial.
Os contadores de histórias da região divergem em relação ao local de nascimento do personagem. O poeta Chico Pedrosa, por exemplo, lhe dedicou o poema Guerreiro do Pajeú, em cujos versos ele aparece como natural de São José do Egito. A partir de agora, no entanto, vamos seguir a narrativa de um comerciante de Serra Talhada que o retrata como filho dessa cidade.
Infelizmente, até onde se sabe, não há mais registros fotográficos de Antônio de Jovita. Quem nos faz imaginar o seu rosto, o lugar onde morou em Caruaru durante a Segunda Guerra, os jornais que leu e as cartas que escreveu, é o comerciante e economista Adelmo Rodrigues, de 70 anos. Formado em economia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e dono de uma fábrica que produz bolsas, cintos e acessórios em couro, é da sua loja, a Falcão Couros, em Serra Talhada, onde funcionava o antigo cinema Cine Art, que Adelmo conta a história de Antônio de Jovita e outros causos, a quem for visitá-lo.
Com a palavra, Adelmo Rodrigues:
“Na época, a mãe de Antônio, dona Jovita, ao saber da carta – que para ela já trazia a notícia certa da convocação – tratou de preparar para o filho um matulão com bastante rapadura, carne seca e farinha, para dar força e sustança ao soldado que partiria do sertão para a guerra.
Acontece que Antônio viajou, mas foi dispensado ainda em Caruaru. Apesar disso, preferiu não voltar para casa. Alugou um quarto numa pensão e continuou na capital do Agreste, lendo nos jornais notícias sobre a Segunda Guerra e enviando cartas para a sua mãe, narrando combates imaginários e lamentando as dificuldades e horrores por que passava, longe de casa, em combate.
Dona Jovita era analfabeta, não sabia que os selos das correspondências que recebia diziam que as cartas haviam sido postadas em Caruaru. Ao receber os envelopes, pedia para que um amigo, o conhecido farmacêutico Luiz Lorena (que depois viria a ser prefeito de Serra Talhada), lesse e lhe dissesse o que estava escrito nas mensagens de Antônio. Vendo os selos de Caruaru, Lorena, com medo de entristecer e frustrardona Jovita, não lhe contava a verdade, deixando que ela acreditasse nas históriasque o filho contava.
Ao final da Guerra, já em Setembro de 1945, Antônio de Jovita voltou para casa. Chegando em Serra Talhada, passou a perambular pela cidade contando os seus feitos e ostentando a sua fantasiosa atuação como combatente. De Caruaru, Antônio trazia uma história de que, na Alemanha, tinha dado cabo do líder nazista, Adolf Hitler, pessoalmente.
Nas fantasias de Antônio, ao invadir o ‘castelo’ de Hitler, o filho de dona Jovita teria derrubado os portões a pontapés para encontrar o genocida, que, surpreso, pediu por Nossa Senhora da Penha para que Antônio de Jovita tivesse piedade e não o matasse”.
Adelmo Rodrigues é um dos responsáveis pela manutenção de uma tradição que não deixa histórias, memórias e figuras importantes para a nossa cultura se apagarem com o passar do tempo. O historiador Karl Marx Souza, de 31 anos, considera a tradição oral sertaneja importante para a formação cultural dos indivíduos dos sertões.
“A tradição oral é muito importante por revelar e manter viva a história de personagens que a história oficial tentou esconder ou visibilizar. Histórias de personagens que são importantes na construção da identidade do povo e que, muitas vezes por não terem um sobrenome importante, têm suas trajetórias escondidas e esquecidas. A literatura de cordel, os cantadores e os apologistas da tradição oral ajudam a perpetuar essas histórias na memória do povo”, explica Marx.
Para o historiador, bons contadores de causos como seu Adelmo fazem com que personagens como Antônio de Jovita, que nasceram distantes de famílias tradicionais, que sempre foram privilegiadas e tiveram visibilidade e espaço garantido na história oficial, não tenham suas histórias esquecidas.
Também no no Pajeú, desta vez no município de Ingazeira, quem tem boa fama de contadora de histórias é Odília Nunes. Com 38 anos, a atriz de teatro e cinema, palhaça, diretora teatral, dramaturga, cordelista e produtora cultural tem talento para dividir histórias como pouco se vê por aí.
A tradição oral está presente na vida e no trabalho de Odília. Segundo ela, de uma forma muito intensa nos seus projetos e no seu desejo de ser uma pessoa melhor. “Eu sou uma pessoa que aprende muito pela oralidade. Sou aquele tipo de gente que escuta uma história e se encanta com a forma como ela foi contada. A história, em si, é muito transformadora”. Odília Nunes carrega consigo o gosto de contar histórias. Para ela, as histórias curam e “são sopradas pelo vento e chegam na gente, pra gente disseminá-las”.
Odília saiu de casa e ganhou o mundo aos 17 anos. Depois de passar mais outros 17 andando pelo Brasil, estudando e vivendo teatro, ela voltou para o lugar onde nasceu, no Pajeú. Atualmente, morando no povoado do Minadouro, ela dirige e integra o projeto No Meu Terreiro Tem Arte, que viaja levando todo tipo de expressões artísticas para comunidades rurais da região.
Como muitos dos que vivem no sertão, Odília cresceu ouvindo histórias que, no imaginário do povo da região, têm uma função de alertar e educar as crianças através do medo. Aquelas histórias que prendem as crianças em casa, que amedrontam quem não quer dormir, as que querem sair sozinhas, se arriscar pelo mato, mexer no que não devem. A artista não se lembra bem de quando começou a ouvir as histórias desse tipo contadas por sua família, mas conta que, para largar a chupeta, o seu pai inventou e lhe contou que uma raposa grande veio do mato e levou a chupeta da menina para os seus filhotes. Odília acreditou e esqueceu do consolo, que seu pai havia jogado no mato.
Com as filhas, Odília faz diferente. Violeta, de 13 anos, e Helena, de 11, escutam histórias contadas pela mãe desde quando estavam em sua barriga. Entre as três, a oralidade serve também para resolver conflitos, dilemas. Ressignificar situações e acontecimentos embaraçosos. “Eu tento, sempre, contar para elas histórias curativas, que ressignificam coisas. Elas escutam histórias imaginadas por mim, e histórias da nossa família. Como eu sou muito teatral, eu escuto uma história, um “causo” contado pela minha mãe, por exemplo, e tento dar um brilho ao que escuto. Às vezes, são coisas muito duras, então a gente ressignifica, pra que a gente possa transformar o que escutou em algo que cure”.
Odília tem história até no nome: a sua bisavó materna, dona Jacinta, quando estava grávida da sua avó, recebeu em casa um grupo de ciganos que passava pela região onde morava e lhe pediu abrigo por uma noite. Uma das ciganas do grupo teria se aproximado da barriga de dona Jacinta e pedido para levar a menina que carregava no ventre, alegando que ela não teria tempo para criar a menina que esperava. “Na ocasião Jacinta ficou surpresa e arretada com o pedido. Surpresa, porque ainda não sabia se esperava por um menino ou uma menina, e arretada por ouvir que não teria tempo para cuidar de sua própria criança”, conta.
Os ciganos foram embora, o bebê nasceu, e, de fato, era uma menina. Jacinta também não teve tempo de cuidar de sua filha. Faleceu dois meses após o parto. O bisavô de Odília, seu Bernardo, diante das previsões que ouviu e assistiu se cumprir, decidiu dar à criança recém-nascida o nome da cigana que adivinhou o seu destino. A cigana que passou por ali e pediu para levar o bebê de dona Jacinta se chamava, justamente, Odília.
Assim foi batizada a primeira Odília da família.