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Alcântara, no Maranhão, é o município com a maior proporção de quilombolas do Brasil, segundo o Censo 2022
Por Dyego Rodrigues e Samartony Martins*
Alcântara (MA) – Nas comunidades quilombolas de Rio dos Paus e São Raimundo, no município de Alcântara, no Maranhão, as crianças brincam como seus ancestrais também brincavam. Tocam tambor, tomam banho de rio e brincam na terra. Nessas comunidades que ficam a mais de 40 quilômetros do centro da cidade, as crianças também vivenciam desde cedo a religiosidade no culto de matriz africana Tambor de Mina.
Alcântara tem pouco mais de 18 mil habitantes e é conhecida Brasil afora pelo espaçoporto da Agência Espacial Brasileira (AEB), que serve para o lançamento de foguetes. A base é considerada uma das melhores do mundo pela sua localização privilegiada: bem perto da Linha do Equador e ao lado do oceano. A presença do Centro Espacial de Alcântara (CEA), porém, expõe as desigualdades do município desde a sua implementação, em 1983.
E não trouxe benefícios para as crianças do município, onde há mais de 120 localidades quilombolas e apenas sete escolas fora do centro do cidade.
Não há, por exemplo, creches nas duas comunidades visitadas pela reportagem. No povoado de São Raimundo, a escola local só tem vagas a partir do primeiro ano e até o quinto ano do ensino fundamental, o que compreende crianças dos seis aos dez anos de idade. As menores, com menos de seis anos, passam os dias com familiares. Para as mais velhas, o jeito é ir para outras comunidades onde há escolas além do quinto ano.
Mãe de duas meninas, Maria Luiza Borges, de 38 anos, morou a vida toda em Rio dos Paus. Para ela, não houve grandes avanços na comunidade no que se refere às políticas públicas para a primeira infância, período que abrange os primeiros seis anos de vida da criança. São anos bem importantes, já que é nessa fase da vida que, segundo o Ministério da Saúde, ocorrem o amadurecimento do cérebro, a aquisição dos movimentos e o desenvolvimento da capacidade de aprendizado, além da iniciação social e afetiva.
Maria Luiza, porém, destaca o sentido de pertencimento do povoado e os ensinamentos deixados pela sua avó sobre fé e religiosidade. “Não tem um hospital, não tem uma creche, nem outros direitos que a gente observa em outros locais. Mas a gente ajuda um ao outro. A família é grande e eu conto com o auxílio da minha mãe. O que a gente preza muito é a fé que a minha avó deixou para minha mãe que passou para mim e meus irmãos e eu tento repassar para minhas filhas”, relatou.
É nos barracões dos povoados que as pessoas se reúnem e a brincadeira das crianças se soma aos afazeres dos rituais religiosos. A presença marcante da religião de matriz africana Tambor de Mina nas comunidades de Rio dos Paus e São Raimundo molda a vida dessas crianças de forma profunda.
Desde muito pequenas, elas participam dos rituais e aprendem sobre a espiritualidade de seus ancestrais. Esse mergulho e conexão com suas raízes culturais e espirituais é um dos pilares que sustentam a identidade e o senso de pertencimento dessas comunidades.
Tímida com a presença da equipe de reportagem, ao ser perguntada sobre quais são as brincadeiras que ela mais gostava e o que ela queria para o seu povoado, uma das filhas de Maria Luiza, a pequena Maria Clara, de cinco anos, respondeu apenas que gostava de brincar no quintal da casa e ficar perto da sua mãe.
A palavra tambor é devido a importância do instrumento nos rituais do culto. A palavra Mina refere-se à denominação dada aos escravizados oriundos da costa leste do Castelo de São Jorge da Mina, na atual República do Gana, trazidos da região das atuais repúblicas do Togo, Benim e Nigéria, conhecidos principalmente como negros mina-jejes e mina-nagôs.
Para o pequeno Gael Araújo, de sete anos, brincadeira e religião se entrelaçam quando ele toca a cabaça, um instrumento percussivo, durante os ritos do Tambor de Mina. “Eu sonho em ter uma casa boa, uma escola boa e uma praça que a gente possa brincar”, comenta.
Jogando com as cartas que tem em mãos, o garotinho de nove anos Marcos Alves Pereira, morador de São Raimundo, disse que gosta das brincadeiras lúdicas e tradicionais da comunidade. Entre a lista de brincadeiras preferidas, estão pega-pega, pique esconde, banho no rio Fundo – o rio que passa pela comunidade – e tocar instrumentos como o tambor de couro, fabricado lá mesmo, de forma artesanal. “Eu gosto de ouvir a batida do tambor, mas antes, a gente mesmo esquenta o couro e afina na fogueira. Eu não sinto falta de outras brincadeiras. As que eu tenho aqui são muito legais e reúnem meus amigos”, diz.
O livro Na escola se brinca! brincadeiras das crianças quilombolas na educação infantil, organizado por Míghian Danae Ferreira Nunes e Helen Santos Pinto, explica que as brincadeiras infantis nas comunidades quilombolas servem também para transmitir conhecimentos aos mais novos ao longo dos tempos. “Os jogos para os africanos sempre estiveram ligados à vida social, são instrumentos de ensino e aprendizagem, utilizados como uma linguagem para a transmissão de conhecimentos dentro da sociedade africana. Ou seja, a transmissão desses jogos é feita oralmente de geração em geração”, aponta trecho do livro.
Nas comunidades quilombolas de Alcântara as brincadeiras se unem à iniciação religiosa, que também começa nos primeiros meses de vida. Durante a produção da reportagem, quando acompanhamos uma das festas no Terreiro de Mina, no povoado São Raimundo, eu, Dyego Rodrigues, fui surpreendido pelo convite para apadrinhar o pequeno Endrick Caleu, um bebê de nove meses, durante seu ritual de iniciação, por meio do batismo na religião de matriz africana.
O chamado para essa importante missão veio através de uma entidade espiritual, incorporada em um dos líderes religiosos presentes no ritual. Me senti profundamente surpreso e honrado pelo convite e atendi de prontidão ao chamado, ressaltando a conexão intensa e a importância da tradição espiritual naquele momento solene, não só para aquela comunidade, e principalmente para aquele garoto, mas para nós que exercíamos o nosso papel como jornalista naquele celeiro de cultura e religiosidade.
O pai de santo Jovenilson que, ao lado das líderes religiosas Orlanda dos Santos Gomes e Maria dos Reis Rodrigues, comanda a Casa do Orixá Ogum, em São Raimundo, explica que o papel da religião é também de orientação para as crianças.
“Servimos como uma espécie de farol para guiá-los, sem que eles percam o seu referencial. Hoje, vocês tiveram a oportunidade de participar de um ritual de iniciação, desse grande ser que se transformará em um homem e dará continuidade a nossa cultura. Estamos repassando a eles o legado que recebemos. Por mais preconceito que exista, aqui vivemos e referenciamos a nossa ancestralidade, a nossa origem. A gente luta para ajudar não só o nosso povo, mas a nossa cidade, o nosso estado. Estamos aqui para todos que precisam de um norte, de uma cura, de uma palavra que elevará sua vibração”, conta Jovenilson.
A noção de que a brincadeira é importante e faz parte das construções das relações sociais desde a primeira infância não é um conceito recente, ainda que até hoje não seja amplamente garantido. Já no começo do século 20 o psicólogo russo Lev Vygotsky disseminava a teoria de que é por meio do brincar que a criança ressignifica os seus papeis na sociedade e também da sua própria existência.
Em entrevista para esta reportagem, o professor Matheus Gato, do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (IFCH-UNICAMP), lembra que é sempre necessário pensar no contexto específico que a criança está inserida. “Precisamos atravessar mais de uma camada de invisibilidade, complexificar um pouco mais quando trazemos a questão da criança quilombola”, apontou o especialista, que também é pesquisador do Núcleo Afro do Centro de Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) e coordenador do Bitita: Núcleo de Estudos Carolina de Jesus (IFCH/UNICAMP).
“Por exemplo, temos dados sobre creches e primeira infância, onde uma das coisas que aparece como carência são as creches com parques infantis. Mas eu não sei se esse é o mesmo tipo de demanda que atende uma comunidade quilombola. Se o parque infantil é, digamos assim, a realização da escola plenamente equipada. A primeira contribuição é, na verdade, um descentramento do que é a criança, do que é a criança negra e suas múltiplas realidades”, destaca.
Matheus Gato enfatiza dois aspectos importantes para se debater sobre as crianças de 0 a seis anos, sendo o primeiro a proposição de uma aproximação do poder público, garantindo que as crianças tenham acesso aos seus direitos básicos, como alimentação. O segundo aspecto que o sociólogo traz é uma perspectiva sobre o que significa ser criança, convidando para uma reflexão sobre não apenas proteger as crianças, mas também a valorizar as experiências delas próprias, contribuindo para uma concepção mais rica e plural da infância.
“Temos um distanciamento do poder público e uma dificuldade dessas crianças exercerem seus direitos como crianças. Além de assegurar os direitos das crianças, tem uma outra pergunta que precisamos fazer quando olhamos a realidade delas: elas também têm uma infância alternativa a produzir e a ensinar e a acrescentar à nossa própria ideia de infância. A multiplicar a nossa ideia de infância. Temos que olhar para aquela realidade como uma realidade que tem algo a nos ensinar também sobre o que é ser criança”, diz.
A proposição de um canal de escuta ativa, garantindo um diálogo genuíno e ativo na construção das políticas e práticas voltadas para as crianças seria uma alavanca para atender as singularidades de cada grupo e indivíduo.
“O central é estabelecer este canal ativo de escuta e de diálogo ao invés de chegar com um pacote pronto do que é ser criança, do que é uma infância perfeita e apresentar para pessoas que já constroem isso por outras alternativas. Eu me lembro de que, ainda estudante de ciências sociais, fiz um trabalho junto com o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e visitei as comunidades quilombolas lá de Codó (município que fica a 297 km da capital São Luís). Perguntei a um menino de cinco anos o que ele gostaria que sua comunidade tivesse. E o menino de cinco anos falou assim: ‘eu queria que na minha comunidade tivesse uma radiola’. Ou seja, o menino queria reggae na comunidade dele. Para ele, a ideia de infância, a ideia de liberdade do corpo dele, a ideia de experimentação, de ludicidade, passava por isso”, conta Gato.
Destacando que as comunidades quilombolas não devem ser vistas apenas como receptoras passivas das políticas públicas, mas como atores fundamentais na construção e implementação dessas políticas, especialmente no que se refere à infância, à infância negra, e à própria identidade e experiência de negritude, Matheus fala que para diminuir a desigualdade o poder público deve estar atento aos direitos básicos. “É um absurdo as comunidades ainda estarem demandando creche, ainda estarem demandando coisas que são, na verdade, básicas do ponto de vista dos direitos”, afirma.
Para dar continuidade aos estudos após a conclusão do quinto ano, os estudantes de São Raimundo precisam se deslocar para uma comunidade vizinha, onde são disponibilizadas escolas até o ensino médio. O transporte é realizado por meio de um ônibus escolar, de responsabilidade da prefeitura de Alcântara.
No entanto, a ausência de escolas com séries avançadas – nas escolas dos povoados não há computadores e nem mesmo internet para os alunos – acaba gerando uma barreira para que essas crianças acessem informações e oportunidades que já fazem parte do cotidiano dos estudantes de áreas urbanas.
Além de ter o único espaço para lançamentos de foguetes do Brasil, Alcântara passou também a ser reconhecida como uma cidade fortemente quilombola. Pela primeira vez, o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE) mapeou o povo quilombola do Brasil. E Alcântara foi não só o município com o maior número de localidades (122), mas também o que tem a maior proporção de quilombolas: 85% dos moradores se declararam quilombolas.
A proporção de crianças pequenas nessas comunidades também é um pouco maior do que no restante da população residente do Brasil, se aproximando dos 4% na faixa de até quatro anos, enquanto na população em geral fica perto de 3%. Mesmo com uma população mais expressiva, essas crianças não recebem políticas públicas de educação.
Entre as ações de mobilização social pela primeira infância em comunidades quilombolas de Alcântara está a Semana do Bebê Quilombola (SBQ), realizada numa parceria entre o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Prefeitura Municipal de Alcântara, o Instituto Formação, a Fundação Josué Montello e o Instituto Alok.
“O município de Alcântara foi contemplado com o Selo Unicef dada a relevância das atividades desenvolvidas em políticas públicas para crianças e adolescentes. Nesta edição de 2021/2024, conseguimos envolver as escolas, igrejas, lideranças comunitárias em todas as atividades diversas fora os serviços básicos ofertados pela prefeitura. Trabalhamos a autovalorização e o reconhecimento dessas comunidades e suas potencialidades”, explicou Vanessa Silva Oliveira, técnica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Mulher e da Igualdade Racial de Alcântara.
Outro avanço, segundo a secretaria, é a garantia de direitos civis, como a emissão de registro civil, além de ações antirracistas com foco na primeira infância pelo NUCA (Núcleo de Adolescentes), e do serviço de fortalecimento de convivência de vínculos que contempla crianças de 0 até maiores de 60 anos.
“O município também tem o programa Criança Feliz onde são atendidos 300 usuários entre gestantes e crianças de 0 a seis anos. Há também a brinquedoteca Semente do Saber voltada para crianças de até seis anos que funciona na sede do município em um bairro vulnerável”, pontuou Vanessa Oliveira, informando que são ministradas oficinas de brinquedos com produtos reciclados e naturais confeccionados com casca de côco babaçu, resgatando brincadeiras ancestrais nestes territórios.
Em entrevista, a secretária adjunta de Igualdade Racial do Governo do Maranhão Socorro Guterres afirmou que há a preocupação em promover uma educação antirracista, respeitando as diversidades.
“Com relação às políticas públicas para a primeira infância é preciso que a gente promova para essas crianças uma educação que respeite as suas diversidades, utilizando metodologias pedagógicas que tragam a realidade da vida dessas crianças. As crianças precisam, desde cedo, construir as suas identidades. E essa construção de identidade precisa ser em uma educação de autoestima, uma educação de referenciais positivos”, disse a secretária.
Para alcançar essa meta, o governo do Maranhão afirma que, por meio da Secretaria de Igualdade Racial (SEIR) e em parceria com a Secretaria de Educação (SEDUC), tem desenvolvido programas de formação de professores, criação de materiais didáticos e elaboração de diretrizes curriculares específicas para a educação escolar quilombola.
Outra política pública que o Governo do Maranhão afirma que desenvolve em parceria com o município de Alcântara é a de saúde integral da população negra, dos povos e comunidades tradicionais quilombolas e de matriz africana, por meio da Força Estadual de Saúde (FESMA). A Fesma tem como missão levar atendimento em saúde para a população de baixa renda, ribeirinhos, quilombolas e indígenas.
Porém, a reportagem identificou que nas comunidades de São Raimundo e do Rio dos Paus há ausência de posto de saúde básico para atender essas comunidades. Os moradores afirmam que a falta de transporte adequado também é um obstáculo para o acesso à saúde. A dificuldade de deslocamento em estradas não pavimentadas e a ausência de transporte público municipal tornam a viagem até os centros urbanos uma tarefa exaustiva, afirmaram à reportagem. As crianças dos dois povoados visitados apenas são vacinadas e recebem cuidados médicos essenciais em localidades vizinhas.
*Esta reportagem foi produzida com a devida autorização dos responsáveis pelas crianças e respeitando os direitos assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Uma versão foi publicada originalmente no jornal O Imparcial e integra o edital para a bolsa de reportagem sobre racismo na primeira infância, ação do Nós, mulheres da periferia, em parceria com a Alma Preta Jornalismo e Marco Zero Conteúdo, e com apoio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal.
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