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Crédito: site Bocado/Adobe Stock
Por Juliana Afonso e Nina Rocha, do site Bocado
No extremo Sul de Belo Horizonte, os moradores dos nove becos que formam a Vila Acaba Mundo se articulam todo dia para visitar a sede da Associação de Moradores da Vila. Situado no Beco da Igreja, é ali onde os Amigos da Vila criaram uma iniciativa, a partir de doações e trocas, que tenta garantir que não faltem itens essenciais na mesa das 3.500 pessoas que residem na comunidade.
O “mercadinho” nasceu durante a pandemia da Covid-19 e funciona de forma colaborativa: ao receber doações, a Associação direciona uma parcela para a população e outra parte está disponível para acesso livre às famílias. “Temos uma repartição igual às de supermercado, mesmo. Tem família com 3 ou 4 pessoas e um pacote de arroz dá pra dois meses, mas tem família que gasta mais feijão. O que mais tem sido procurado são os itens mais caros, como o óleo e o leite, mas as pessoas pegam só o que necessitam. Quem pega a mais, também costuma deixar a mais”, explica Ronilson Luiz Mares, de 40 anos, uma das lideranças da comunidade.
Conhecido como Nego, ele estima que aproximadamente dois mil dos moradores se beneficiem da iniciativa. “Criamos uma organização para que cada dia da semana os moradores de cada rua venham até o Centro Comunitário. A gente colocou assim para não ter aglomeração, mas, caso tenha necessidade, a pessoa aciona os Amigos da Vila e pega o que precisa.”
A média de cestas básicas doadas à Vila Acaba Mundo fica em torno das 140 unidades por mês. Ronilson destaca a importância das ofertas que chegam por meio de empresas e pessoas físicas e ajudam muitos trabalhadores que dependem diretamente delas por terem perdido o emprego ou diminuído a renda enquanto autônomos. Além de contribuir na alimentação, um dos ganhos da iniciativa é a proximidade entre os moradores da comunidade.
“As pessoas passaram a ter mais espontaneidade para dialogar sobre essas questões.
Quando o grupo começou a chegar nessas pessoas, elas passaram a entender que aquilo não é doado nem mendigado. É um direito da gente. Quando vem de uma empresa, por exemplo, sabemos que é de um fundo que a empresa tem que investir. Não é só uma coisa de assistencialismo”, pontua Nego. Não é comum que sobrem itens no estoque da central de trocas, mas, quando ocorre, a Associação promove lanches e almoços que atendem toda a Vila.
Todo alimento é bem aproveitado diante de um cenário onde a fome regressa ao cotidiano não só na Vila Acaba Mundo, mas também na vida de 19,3 milhões de brasileiros e brasileiras, de acordo com os dados de 2020 da Penssan. E mais: entre agosto e outubro de 2020, 13,6% das pessoas acima de 18 anos passaram ao menos um dia sem fazer uma refeição, revela o levantamento da Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality.
Pensar a fome enquanto problema social não é uma questão recente. O debate ganhou uma dimensão global após as Grandes Guerras Mundiais. Além dos impactos inevitáveis dos conflitos bélicos, a posterior polarização entre Estados Unidos e União Soviética transformou a fome em elemento estratégico: combater a miséria era uma forma de impedir que as populações mais pobres se revoltassem e promovessem levantes revolucionários. Algo que o governo norte-americano apelidou de “Comida para a Paz”.
Diversas organizações surgiram com o propósito de pensar as causas da fome e como superá-las. Entre elas a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), com sede em Roma, na Itália. Nas décadas de 1960 e 1970, havia praticamente um consenso de que a fome era resultado da falta de produção de alimentos. Essa ideia estruturou uma série de políticas, principalmente nos países periféricos, para aumentar a produção agrícola com base no uso indiscriminado de defensivos químicos, em um processo conhecido como Revolução Verde. A estratégia não foi o suficiente para mudar a conjuntura.
“A gente via as safras baterem recordes ano após ano e o problema da fome não ser resolvido. É quando começa a discussão sobre acesso”, afirma o pesquisador do Ipea, Sandro Pereira Silva. Nesse momento, já no final da década de 1980, o termo “segurança alimentar” começa a aparecer com mais frequência.
No Brasil, o termo também surge nessa época e ganha relevância no período da redemocratização. O conceito de Segurança Alimentar e Nutricional usado ainda hoje foi definido na Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição, em 1986: “Realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.” Os governos que seguiram após a ditadura militar no Brasil tangenciaram o tema, atuando de forma pontual.
Foi a partir de 2003 que as políticas de promoção da segurança alimentar passaram a ser um eixo estruturante da agenda governamental. “O Programa Fome Zero cria um novo referencial de intervenção estatal. A temática ganha estrutura própria, com um ministério, orçamento e estruturas de participação social específicas”, rememora Sandro. Os resultados foram positivos.
Dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram uma diminuição gradual da insegurança alimentar nos domicílios brasileiros nos anos que se seguiram à instituição dessas políticas: 35% das famílias passavam por algum grau de insegurança alimentar em 2004, o percentual foi para 30% em 2009 e 22% em 2013.
Entretanto, a crise econômica vivida em meados dos anos 2010 criou uma crise política e as propostas de combate à fome sofreram uma interrupção brusca em 2016. “O Executivo brasileiro deixou de ter uma agenda programática para ter uma agenda fiscalista”, opina Sandro.
Segundo ele, as reformas realizadas pelo governo Michel Temer enfraqueceram a capacidade estatal de intervenção no próprio território. A principal delas foi a Emenda Constitucional 95, que estabelece um teto de gastos sociais. “É uma camisa de força muito grande justamente em um momento em que vemos os indicadores de segurança alimentar retrocederem”, emenda.
Em 2018 os dados do IBGE mostraram que 36,7% dos domicílios brasileiros passavam por algum grau de insegurança alimentar – patamar inferior ao registrado no início dos programas. Somamos a esse número uma pandemia internacional e um ciclo inflacionário. O resultado é o avanço do problema: segundo levantamento da Food for Justice – Power, Politics and Food Inequality, 59% dos domicílios entrevistados passaram por situação de insegurança alimentar no final de 2020.
As pessoas são levadas a essa situação por uma sobreposição de precariedades. “O acesso à alimentação é precário porque o acesso ao mercado de trabalho é precário, e isso acontece porque o acesso à educação é precário, e assim por diante… É um encadeamento de precariedades que, no final, leva à insegurança alimentar”, afirma Sandro.
Redistribuir os alimentos recebidos, como acontece na Vila Acaba Mundo, é uma das alternativas encontradas por algumas comunidades para garantir um mínimo de segurança alimentar da população.
Outra possibilidade é transformar o próprio território em espaço de autoprodução de alimentos. Na Ocupação Vitória, no extremo Norte de Belo Horizonte, praticamente todas as casas reservam uma parcela do terreno para a preservação da área verde e plantio de frutas, verduras e legumes. A partir de 2014, assessorados por apoiadores externos, alguns moradores e moradoras começaram a usar técnicas agroecológicas para a produção de alimentos e se tornaram referência na comunidade. Um deles é o agricultor José Adão Chaves da Silva, 55 anos, que parou de usar defensivos químicos e cuida de hortas com uma enorme variedade de plantas, que vão desde couve até o inusitado jiló branco.
De outra forma, seria difícil manter o próprio sustento: aposentado por invalidez, Adão foi morar na ocupação em 2013 pela impossibilidade de pagar aluguel. “Com o valor da aposentadoria dá pra passar o mês, até porque a gente não paga nem água nem luz. Pra quem paga fica mais difícil”, lamenta.
Além do trabalho no próprio quintal de casa, Adão passa seus conhecimentos a crianças e adolescentes em uma horta comunitária. “A gente tava fazendo um mutirão de combate a dengue, aí eu vi um terreno, gostei e perguntei pra coordenação se podia usar o espaço pra uma horta comunitária. Eles falaram ‘pode’. Eu arrumei uma turma e hoje a gente tá com uma horta grande”, conta.
No início, a comunidade recebeu apoio do Projeto de Segurança Alimentar Comunitária, realizado em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e as Brigadas Populares. A proposta era subsidiar a ampliação dos cultivos dos agricultores que já produziam de forma agroecológica, para viabilizar a distribuição gratuita de cestas verdes para as famílias da ocupação. Ao longo da iniciativa foram distribuídas mais de três mil cestas agroecológicas nas ocupações Vitória e Tomás Balduíno (Ribeirão das Neves), gerando renda para oito famílias agricultoras.
O projeto terminou em dezembro de 2020 e, em agosto de 2021, os moradores e as organizações parceiras começaram uma campanha de financiamento coletivo para ampliar o trabalho através de doações da sociedade civil. Além de garantir uma alimentação livre de agrotóxicos para parte da comunidade, os produtores comercializam os produtos semanalmente na feira de produtos agroecológicos, no centro da capital mineira.
“Hoje mesmo eu fiz uma doação pras pessoas aqui, com as alfaces. Tirei alguns pé de alface e doei. Às vezes a pessoa não tem condições de comprar um pé de alface, aí a gente dá”, conta Adão. O acesso à alimentação, fundamental para a sobrevivência de milhões de famílias, tem sido garantido pelo fortalecimento das noções de comunidade e cooperação.
A solidariedade ajuda, principalmente em momentos de crise, mas não resolve o problema, como pontua Flávia Sarti, professora de Economia e Políticas Públicas de Saúde, Alimentação e Nutrição da Universidade de São Paulo. “A solidariedade se esgota. As pessoas não têm condição de sustentar isso como política recorrente”, comenta a pesquisadora.
O professor Francisco da Mata complementa, destacando o risco de sustentarmos a questão alimentar sem políticas públicas eficientes e multidisciplinares: “Segurança alimentar implica uma política de controle de processos produtivos: o que será produzido, por quem, qual a relação com a cultura local. Do ponto de vista alimentar, nós estamos perdendo a batalha”, lamenta.
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