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Cristãos progressistas lançam pré-candidaturas para disputar voto religioso e enfrentar conservadorismo

Giovanna Carneiro / 02/07/2022
Em uma manifestação de rua, homem jovem de cabelos curtos, óculos e máscara preta levanta sobre a cabeça cartaz com a foto de Bolsonaro de boca aberta e a farse Jesus é amor, ele não em letra pretas sobre fundo branco.

Crédito: Brasil de Fato

Com o slogan “conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, – trecho do evangelho de João -, Jair Messias Bolsonaro fez sua campanha em 2018 dirigida para o público evangélico e garantiu um grande percentual de votos que o colocou na presidência do Brasil. Desde então, líderes de igrejas evangélicas e católicos conservadores seguiram em permanente campanha em apoio ao presidente. Porém, a presença do ex-presidente Lula no embate eleitoral deste ano abalou a popularidade de Bolsonaro entre os cristãos.

De acordo com a última pesquisa Datafolha, divulgada no dia 23 de junho, 42% dos católicos pretendem votar em Lula e 20% em Bolsonaro. Entre os evangélicos, o atual presidente mantém vantagem, com 36% de intenções de votos contra 28% do petista. A pesquisa foi feita com 2.556 eleitores de 181 cidades do Brasil. Se compararmos o cenário atual com o das eleições passadas, é possível notar crescimento da intenção de votos no pré-candidato do PT.

Crédito: Pesquisa Datafolha / Site da Folha de São Paulo
Crédito: Pesquisa Datafolha / Site da Folha de São Paulo

Em 2018, de acordo com a pesquisa Datafolha sobre o perfil religioso dos eleitores, o candidato Fernando Haddad (PT) só ganhou para Bolsonaro entre as religiões afro-brasileiras e entre as pessoas que se autodeclaram sem religião e entre os ateus e agnósticos (e com uma diferença não muito significativa). Bolsonaro teve maioria dos votos entre evangélicos, católicos e espíritas. A diferença maior foi entre os evangélicos, onde Bolsonaro somou mais de 11 milhões de votos a mais que Haddad.

Crédito: Instituto Unisinos

Para este ano, as pesquisas mostram que, além de diminuir a diferença de votos entre os evangélicos, o pré-candidato petista deve ter uma boa vantagem entre os católicos, o que pode ser decisivo nas eleições para garantir sua vitória.

No entanto, esse resultado depende do engajamento das igrejas e instituições religiosas nos debates políticos, como afirma o teólogo e biblista Marcelo Barros: “Desde muitas décadas, as igrejas cristãs procuram na sua metodologia de trabalho fornecer subsídios para os fiéis terem critérios de como votar. Não é justo, não é correto o padre ou pastor dizer em quem você deve votar, o voto é livre. Mas as igrejas tem, sim, a missão de ajudar o povo a formar critérios e insistir em pautas como ecologia, defesa da natureza, da água, da terra, a justiça para os povos originários e também exigir que os candidatos se comprometam com essas pautas”.

Membro do Fórum Diálogos pela Diversidade Religiosa e contra a Discriminação do Ministério Público de Pernambuco e da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo, Marcelo Barros defende a comunhão entre política e religião e lamenta o resultado das últimas eleições presidenciais: “a eleição de 2018 era entre democracia e barbárie e houve muitos cristãos, evangélicos e católicos que votaram pela barbárie e que votam contra a democracia até hoje. Isso é certamente um escândalo para o mundo, é um contrassenso para quem busca a fé a partir dos evangelhos, da bíblia e da tradição mais profunda das igrejas cristãs. Se Deus existe ele só pode ser amor e se Deus é amor, não pode ser de direita”.

Negras cristãs decidem

Mulher e negra. Esse é o perfil dominante das pessoas religiosas no Brasil, segundo a pesquisa Datafolha divulgada em 2020. Entre os evangélicos as mulheres são 58% dos membros. Já entre os católicos a diferença cai e as mulheres são 51%. A maioria dos brasileiros segue a religião católica, sendo 50% do total. Já os evangélicos correspondem a 31% da população.

Crédito: Pesquisa Datafolha / Site da Folha de São Paulo

Ainda de acordo com a pesquisa, o perfil evangélico é mais negro do que o católico e chega a representar 59% dos fiéis. A maioria dos evangélicos reside na Região Norte do país, onde Bolsonaro teve maioria dos votos válidos nas últimas eleições.

Apesar da pesquisa ter a pretensão de determinar um perfil dominante entre os religiosos, a pluralidade dos membros das diferentes crenças e religiões é fundamental para tentar entender o contexto social, cultural e econômico que é determinante nas eleições.

Mesmo que a maioria católica e evangélica tenha escolhido votar em Bolsonaro em 2018, isso não significa que o mesmo deve acontecer esse ano. A prova disso seria o crescimento de grupos como o Cristãos Contra o Fascismo, Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, Coalizão Evangélica contra Bolsonaro, Evangélicas pela Igualdade de Gênero e Evangélicxs pela Diversidade, além do aumento do número de pré-candidaturas de pessoas cristãs com ideais políticos progressistas.

“A vinculação da religião cristã ao autoritarismo é, a um só tempo, compreensível e questionável: se é verdade que diversos autoritarismos buscaram justificativas na religião cristã, é igualmente verdade que a religião cristã é morada de potências de liberdade e de subversão”, disse o pastor batista membro da Igreja Batista do Pinheiro, que pertence à Aliança de Batistas do Brasil (ABB), Kinno Cerqueira.

Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil,com validação pela Faculdade Diocesana de Mossoró, Kinno é um dos evangélicos que romperam com as tradicionais igrejas justamente por não aceitar certos posicionamentos políticos e resolveu alinhar sua vivência pastoral à ABB que, segundo ele, é “uma comunhão de igrejas dissidentes dos batistas hegemônicos, um testemunho de comunidades batistas que fizeram uma aliança de viver e lutar pela liberdade de todas as pessoas e do planeta”.

Essa nova ordem cristã, que chega para criar uma nova leitura e interpretação da Bíblia Sagrada e lançar um olhar crítico às atitudes de seu povo, também quer dialogar com a política por acreditar que “a política não é uma opção, é uma imposição existencial contra a qual não se pode lutar. A isenção política, tão bem quista por muitos religiosos, não é uma decisão política? Assim como o ativismo, a indiferença é uma decisão política, e das mais imorais”, como afirmou Kinno.

Evangélica e antiproibicionista

É possível ser cristã e ser a favor da legalização das drogas? Maria Tereza dos Santos, conhecida como Dona Tereza, tem convicção que sim. Integrante da Comunidade Cristã Ativa e da Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade, Dona Tereza decidiu ser pré-candidata a deputada estadual em Minas Gerais pelo PT nessas eleições para tornar ainda mais público e coletivo aquilo que ela acredita ser o maior propósito de Deus em sua vida: o amor ao próximo.

Mulher negra e com 63 anos de idade, a coragem de Dona Tereza é surpreendente, pois, onde chega faz questão de levantar a bandeira do antiproibicionismo.

“A questão de eu ser antiproibicionista leva algumas pessoas a questionar se eu sou cristã ou não, mas está lá na bíblia, quando Deus proibiu Eva de comer do fruto proibido, ela foi lá comeu e ainda deu a Adão, e isso mostra que o atrativo está justamente naquilo que é proibido, então, nós não devemos proibir e sim orientar e dialogar com as pessoas”, disse Dona Tereza.

“Não existe lógica essa proibição do uso de drogas porque ela desencadeou uma guerra que eles dão o nome de guerra às drogas, mas que nós, enquanto pessoas negras e periféricas, desprovidas de recursos financeiros, sabemos que é uma guerra contra a pobreza, é uma guerra que justifica o genocídio e o encarceramento da juventude periférica e negra desse país”, completou.

Dona Tereza acredita que é melhor orientar os jovens do que proibir as drogas. Crédito: Acervo pessoal

Para a pré-candidata, a escolha dos cristãos e evangélicos por Bolsonaro é extremamente contraditório pois suas atitudes não condizem com o que está escrito na bíblia: como que o povo cristão consegue olhar na cara de um sujeito desse e achar que ele tem alguma coisa de Deus na vida dele? Ele prega o ódio, a desavença, o racismo, a homofobia. Eu acho que já tá na hora da gente deixar de dizer que é cristão e ser racista, não é? […] Bolsonaro é um cara desprovido daquilo que Deus mais pregou: o amor”.

Para normalizar relação religião e política

Em Pernambuco, Ailce Moreira também se coloca como uma alternativa cristã progressista. Integrante da Igreja Batista de Coqueiral, a pré-candidata a deputada estadual pelo PSOL lamenta a generalização causada pelo resultado da última eleição e afirma que nem todos os cristão são conservadores.

“A gente precisa pensar que vivemos em uma sociedade onde as pessoas que frequentam a igreja são as mesmas pessoas que estão no mercado de trabalho, é o povo preto e periférico e também o dono da empresa, então, essas pessoas estão dentro da religião, crescem na igreja, mas também participam da política. A questão que deve ser priorizada agora é como fazer da relação entre política e religião algo que traga benefícios para toda a sociedade e não apenas para uma parcela dela, esse é esse nosso dever enquanto cristãos”, disse Ailce.

Para a pré-candidata o grande desafio das igrejas e dos cristãos progressistas agora é estabelecer um diálogo mais crítico e naturalizar o debate político nas instituições religiosas: “nesse contexto de polarização a gente já tem um juízo de valor e é muito mais fácil assumir que os cristãos são conservadores e por isso não merecem atenção do que se dispor a conversar e ouvir as pessoas”.

“O povo sofre na pele, sofre quando tem a casa invadida pela água, sofre quando ver a vida dos adolescentes serem ceifadas muito precoce, sofre por conta da política de drogas do nosso estado, então, a gente precisa trazer a memória essa vivência e assim construir um conhecimento político para que as pessoas estejam cientes e possam desenvolver suas próprias leituras”, concluiu a pré-candidata.

Ailce adverte que nem todo evangélico é conservador. Crédito: Acervo pessoal

Ailce reforçou que a política não se faz apenas no período eleitoral, mas sim em todas as ações que proporcione a comunidade o poder de tomar e por em prática decisões determinantes para o seu convívio social, porque “o povo é capaz de criar seus próprios mecanismos de mobilização para mudar a dura realidade”. Ela cita o exemplo da Igreja Batista Coqueiral, da qual é membro, que, liderada pelo pastor José Marcos, promove ações de solidariedade e educação na Comunidade de Coqueiral, uma área periférica do Recife.

“A gente tem hoje uma série de cristãos que estão unidos para trazer à tona uma contra narrativa, uma narrativa de vida, de justiça e de combate às desigualdades, é para isso que estamos lançando as nossas pré-candidaturas”, finalizou Ailce Moreira.

Em diversos estados do Brasil é possível encontrar outros pré-candidatos e pré-candidatas cristãs progressistas, como afirma Ailce. Eis alguns cujas pré-candidaturas foram apresentadas:

  • Marcolino Poeta (UP-BA)
  • Anna Azevedo (PSOL-MG)
  • Fillipe Gibran (UP-MG)
  • Kenia Vertelo (UP-MG)
  • Kawan Lopes (PSOL-RJ)
  • Missionária Sabrina (PDT-RJ)
  • Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ)
  • Pastora Mônica Francisco (PSOL-RJ)
  • Wesley Teixeira (PSB-RJ)
  • Bianca Ramires (PSOL-RS)
  • César Souza (PSOL-RS)
  • Teólogo Tiago Santos (PSOL-RS)
  • Danielle Rabelo (PDT-SP)
  • Diana Brasilis (PDT-SP)
  • Héber Farias (PSOL-SP)
  • Letícia Gabriella (PDT-SP)
  • Júlio Yamamoto (PT-SP)
  • Reverenda Alexya Salvador (PSOL-SP)
  • Zé Nildo (PSOL-SP)

Esta reportagem foi produzida com apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.

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AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.