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Debate necessário e urgente pelo acesso das mulheres às cidades

Carol Monteiro / 11/04/2017

A cada dia, 13 mulheres são assassinadas em média no Brasil. Nas 24 horas em que mais de uma dezenas delas perdem a vida, outras centenas ou milhares são constrangidas, humilhadas, importunadas ou agredidas por companheiros, pessoas próximas ou estranhos que se sentem no direito de abordá-las nas ruas, no transporte público, em locais públicos ou privados. A sensação de insegurança, infelizmente, é geral entre mulheres de todas as idades que precisam se locomover entre as grandes cidades brasileiras. Atenta a estas questões, a Gênero e Número é uma start up de mídia carioca que vem ao Recife nesta quarta-feira, dia 12, debater o tema da mobilidade com recorte de gênero e acesso da mulher à cidade e lançar o aplicativo Braços Dados, um serviço de envio de mensagem de urgência a uma rede de cinco pessoas previamente cadastradas. Ao acionar um botão, uma mensagem SMS é enviada aos contatos pré-selecionados, sinalizando a localização e deixando em alerta uma rede de confiança.

O evento é aberto ao público, mas requer inscrição através do email contato@generonumero.media e será a partir das 19h, no Impact Hub Recife, na Rua do Bom Jesus, 180. Na ocasião, serão realizadas duas mesas, “Onde estão os dados que precisamos para debater e melhorar a mobilidade nas cidades” e “Acesso da Mulher à Cidade”, com a participação de representantes do poder público, da iniciativa privada e da academia. Saiba mais sobre a programação no Facebook da Gênero e Número, onde também haverá transmissão em tempo real.

Giulliana Bianconi/Divulgação

Giulliana Bianconi/Divulgação

A Marco Zero apoia o trabalho e o evento da Gênero e Número e conversou com a diretora de Conteúdo e Planejamento da startup, Giulliana Bianconi sobre o trabalho que a empresa vem desenvolvendo e sobre a urgência das questões de gênero nas políticas públicas e nas formas de pensar e planejar o acesso à cidade.

 Marco Zero: O Recife foi cenário na última semana de uma ampla discussão de gênero e violência associada ao assassinato da fisioterapeuta Tássia Mirella de Sena, degolada pelo vizinho Edvan Luiz, na principal hipótese levantada até agora pela polícia, por ter se negado a ter um envolvimento sexual com ele. O caso, infelizmente, é mais um entre as assombrosas estatísticas de feminicídio, não apenas na capital pernambucana mas nas grandes cidades de uma forma geral. Como iniciativas como o app De Braços Dados e um trabalho de levantamento e análise de dados como vem sendo realizado pela Gênero e Número podem contribuir para esta discussão, no sentido de garantir às mulheres mais segurança tanto nos ambientes públicos quanto privados?
Guilliana Bianconi: A Gênero e Número nasceu com a proposta exatamente de ampliar esse debate, sobre temas urgentes, como o feminicídio, e dados relacionados a eles. Infelizmente não há uma agenda relacionada a gênero na imprensa. Casos como o da fisioterapeuta Mirella despertam coberturas pontuais, causam uma grande repercussão, comovem muito também pela identificação que tantas mulheres têm com a vítima, que poderia ser “qualquer uma de nós”, como se diz. Mas raramente esses casos são tratados como consequência de um contexto de violências cotidianas contra as mulheres. Em 2015, no Recife, um outro crime também chocou, o Maria Alice Seabra, que ganhou manchetes e repercutiu. Mas nesses dois anos quantas mulheres não foram mortas por seus parceiros, por vizinhos, por desconhecidos ou parentes em crimes de ódio que tinham motivação de gênero e não se tornaram notícia? No Brasil, de acordo com o Mapa da Violência Contra a Mulher, publicado com dados coletados entre 2003 e 2013, 13 mulheres são assassinadas por dia no Brasil. Como a tipificação de feminicídio passou a existir apenas em 2015, não há ainda estatísticas que detalhem esse tipo de crime. Então a gente entende, na Gênero e Número, que é preciso contextualizar, sempre. E é assim que pretendemos ampliar o debate, essa é nossa principal contribuição, para qualquer tema que a gente trabalhe, seja quando tratamos de representatividade da mulher na política, seja quando falamos em mortes de mulheres. Mas temos um desafio constante no nosso trabalho: levantar dados. A Gênero e Número não é uma organização de pesquisa, mas sim de mídia. A gente busca dados que já existem, mesmo aqueles que não estão públicos, e em alguns casos, quando entendemos ser possível, vamos atrás desses dados, com parcerias, também atuando nessa ponta de coleta. O app Braços Dados é um serviço gratuito que desenvolvemos depois de acessarmos muitos dados e entendermos que a percepção de insegurança é real e transversal a classes, a faixas etárias etc. Como ao usar o app, a usuária envia uma mensagem para uma rede de segurança com uma mensagem que indica que ela está se sentindo em risco e também com sua localização, a médio/longo prazo a gente vai poder, talvez, entender onde estão as áreas com grande percepção de insegurança pelas mulheres.

MZ: Como você vê as políticas públicas para a mobilidade e ao acesso das mulheres nas cidades brasileiras? Recentemente, iniciativas como a do Vagão Rosa no metrô do Recife provocaram polêmica por segregar as mulheres em espaços confinados em vez de resolver o problema do assédio. A medida, no entanto, é aprovada pela maioria das usuárias. Que outras medidas podem ser usadas para garantir às mulheres os direitos de ir e vir sem serem importunadas?
GB: O vagão rosa é muito criticado por um amplo grupo de mulheres exatamente porque ele não propõem nenhuma mudança. É uma medida que se esgota nela mesma. Parte considerável das usuárias aprovam, e isso é um fato a ser levado em consideração para se descontinuar ou não a medida, mas onde estão as pesquisas periódicas sobre aumento ou diminuição do assédio nos metrôs desde a implementação do vagão rosa? Onde estão as campanhas educativas nos outros vagões, que não são rosas? As políticas públicas de mobilidade no Brasil ainda não levam em conta sistematicamente as demandas que estão postas pelas mulheres. O assunto assédio, especificamente, esse que faz as mulheres mudarem suas rotas, deixarem de ir e vir muitas vezes, pois temem o assédio e possíveis desdobramentos mais violentos, agora que começa a ser considerado. Na verdade, o que precisa é cruzar dados de pesquisas que tratam assédio e de violência contra a mulher no espaço público com dados que mostram padrões de comportamento da mobilidade das mulheres e entender: diante das demandas e das urgências que estão postas, o que é possível fazer já? E necessário a médio e longo prazo?

MZ: Como as redes sociais e os ambientes colaborativos das mídias digitais podem ser usadas para dar visibilidade a questões de gênero?
GB: De muitas formas, na verdade. Mas o que priorizamos, na Gênero e Número, é uma abordagem, nos ambientes digitais e sociais, que não fale apenas para um público sensibilizado. Entendemos que questões de gênero muitas vezes são associadas a um feminismo radical por aqueles que não se identificam com pautas de movimentos sociais, e naturalmente esse público repele tudo o que é associado a gênero. Mas nesse debate há espaço para todos e todas que valorizam a igualdade de direitos e que prezam pelos direitos das mulheres, incluindo as mulheres transexuais. E o grande desafio, nas redes, é saber falar com diferentes públicos que, mesmo com pontos de vista diferentes, convergem em algum momento. Os algoritmos nos permitem isso.

MZ: A Gênero e Número é uma iniciativa de jornalismo independente de dados. Tanto o formato do jornalismo independente quanto a linguagem dos dados no jornalismo aparecem como alternativas às fontes hegemônicas de poder midiático. Gostaria que você comentasse este novo cenário da Comunicação e as possibilidades para a sustentabilidade e longevidade desta e de outras iniciativas semelhantes.
GB: Não é à toa mesmo que temos o jornalismo de dados como base da nossa iniciativa. Entendemos que os dados e as evidências podem trazer uma precisão para as narrativas que têm um grande valor, principalmente em tempos onde com tantas fontes de notícias o/a leitora/a não sabe muitas vezes de onde veio a informação, quem “plantou” ela ali. Aparece na timeline de uma rede social, chama a atenção, muita gente compartilha. É mentira? É verdade? Você lê, tem uma declaração que parece verdadeira, mas ainda não convence. Isso não significa que com uma base de dados a gente vá resolver todo o nosso problema numa reportagem, nem garantir a verdade sem questionamentos. Bases também podem ser questionadas, pois aquele produção de dados está atrelada a uma metodologia, que muitas vezes têm recortes passíveis de crítica. Mas sem dúvida o jornalismo de dados é um caminho pra gente sair do jornalismo apenas declaratório, contestar “autoridades” que num primeiro momento têm toda a legitimidade para falar e dar entrevista sobre assuntos da sua área de atuação e também ampliar contextos. A mídia hegemônica tem, desde sempre, um lugar confortável no Brasil. E muitas vezes não preza pela qualidade da apuração, mas apenas reproduz posicionamentos já bem conhecidos de fontes que sequer trazem diversidade. Vale destacar que a mídia hegemônica também faz jornalismo de dados, e muito bem em alguns lugares. Mas é importante que outras veículos, independentes, tragam outros valores, sim. A gente preza muito pelo acesso e abertura de dados, pois entendemos que a transparência é um valor da democracia que também deveria ser indissociável do jornalismo. Nesse novo cenário da comunicação, vemos muita gente empreendendo, buscando caminhos pra criar essas narrativas que trazem outros valores que não somente “o furo”, a “informação exclusiva”. Sem dúvida que ainda é uma grande e importantíssima pergunta: como vão sobreviver, a longo prazo, essas iniciativas? Mas essa também uma pergunta para o jornalismo tradicional. Nos encontros de mídia e de startups de mídia, esse assunto se tornou central. Há iniciativas que encontraram modelos de negócio que parecem viáveis, mas estão sendo testados há pouco tempo, relativamente. Na Gênero e Número, temos um financiamento internacional da Fundação Ford, que possui um amplo histórico no investimento em iniciativas que reforçam valores democráticos. O investimento é dissociado de qualquer partidarismo político, somos independentes editorialmente, e neste ano vamos começar a experimentar um mix de receitas, para entender como podemos gerar receitas a partir das diversas expertises que reunimos e, futuramente, sermos, quem sabe, sustentáveis.

AUTOR
Foto Carol Monteiro
Carol Monteiro

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), com especialização em Design da Informação pela mesma instituição (2010), master em Jornalismo Digital pelo Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS) e Universidade de Navarra (2010). Tem Mestrado (2012) e Doutorado (2018) em Design, também na UFPE. Atualmente, é professora dos cursos de Jornalismo e Fotografia da Universidade Católica de Pernambuco. Atuou durante 17 anos na redação do Diario de Pernambuco, onde foi repórter, editora-assistente e Editora de Internet até o início de 2015. Hoje é presidente do Conselho Diretor do site de jornalismo independente e investigativo Marco Zero Conteúdo.