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Depois da Virgem Maria negra, Baile do Menino Deus tem indígena fulni-ô no papel de José

Marco Zero Conteúdo / 21/12/2023
Foto colorida de casal sentado em mureta à beira do mar, com arrecifes ao fundo. Os dois estão em primeiro plano, no centro da imagem, tendo a mulher à esquerda. Ela é negra, de fartos cabelos crespos em tom castanho avermelhado e veste blusa de alças pretas e estampa colorida, com calça preta. Ele é moreno, de cabelos e barbas negras, vestindo uma camisa preta de mangas curtas e bermuda jeans.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

por Rosália Vasconcelos

Desde o início de novembro, a rotina do ator pernambucano Pedro Caíque Gomes Ferraz, de 34 anos, se divide entre Recife e Águas Belas, município localizado no agreste de Pernambuco. Nas quartas e nas quintas, o rapaz vinha para a capital do estado, ensaiar para o Baile do Menino Deus, em que representa o personagem José, pai de Jesus. Nos outros dias da semana, o ator voltava para a cidade onde reside com sua esposa e seus filhos. É que, durante os meses de primavera do ano – setembro, outubro e novembro – é realizado o ouricuri, ritual sagrado do povo indígena Fulni-ô, aldeado em Águas Belas e do qual o ator faz parte.

Caíque Ferraz é o primeiro ator indígena a representar o papel de José no Baile do Menino Deus e também o primeiro índigena a participar deste tradicional espetáculo pernambucano, que este ano completa 40 anos de encenação, sendo 20 deles de apresentações no Marco Zero. Durante os dois últimos meses, o ator vem vivenciando uma verdadeira experiência de sincretismo religioso.

“Hoje mesmo havia um compromisso com a equipe da indumentária, a prova de roupas, e eu não pude ir porque estou aqui em Águas Belas, concluindo os rituais sagrados. A primeira semana de setembro e a última semana de novembro são as mais emblemáticas para nós Fulni-ô, porque é o nosso encontro e a nossa despedida. Então, eu não poderia deixar de estar aqui com o meu povo”, contou o ator por telefone, no dia em que deu entrevista à repórter. Caíque vivenciava na época a última semana do seu ouricuri. No dia seguinte, contudo, ele estaria no Recife, participando dos ensaios.

Apesar de ter passado dois meses “dividido” entre os rituais de sua prática religiosa Fulni-ô e o mergulho na tradicional história do nascimento de Jesus, que fundamenta a origem do cristianismo, o ator, que se dedicou bastante aos estudos do personagem José, afirma que em nenhum momento sentiu que houve conflitos de valores religiosos. Pelo contrário.

“A concepção de valores cristãos é muito semelhante à concepção dos valores indígenas. As formas ritualísticas é que se diferenciam. As duas religiões comungam da mesma matriz do divino, do sagrado, e de toda a maravilha que é a concepção de um ser iluminado que veio proteger os seres humanos de suas próprias fragilidades. No meu entendimento, o que muda é que diferentes culturas dão nomes diversos”, defende Caíque.

Ele também diz que, como muitos brasileiros não cristãos, viveu em contato direto com a cultura religiosa cristã durante toda a sua vida. “O povo Fulni-ô é um povo milenar, que vive e resiste em uma reserva indígena a quatro quilômetros do bairro de Aldeia, em Águas Belas. Por conta das missões jesuítas para catequizar o nosso povo na época que os europeus invadiram o Brasil, foi construída uma igreja católica no meio da aldeia indígena. Então, de alguma forma, nós tivemos relação com o catolicismo”, lembra.

Segundo o ator, ensaiar o personagem José no Baile do Menino Deus também trouxe para ele um recorte diferente da vida de Jesus. “O roteiro do Baile traz que a escolha pelo homem José para ser o pai de Jesus teve um motivo, não foi em vão. Ele era um homem forte que acolheu Maria virgem, uma mulher que havia engravidado sem a presença da figura masculina. Imagina que para uma sociedade machista, muito mais naquela época do que hoje, José teve que enfrentar sua religiosidade, sua cultura e seu povo. A vida de Jesus é iluminada antes e depois do seu nascimento”, afirma.

Direito de ser fulni-ô

Caique Ferraz é ator, do coletivo de teatro Resta1 e fez participação na série Cangaço Novo, do canal por assinatura Prime Vídeo. Ele nasceu no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), localizado no bairro dos Coelhos, área central do Recife, mas sua mãe e sua família materna nasceram todos na região de Águas Belas, onde está situado o povo Fulni-ô.

Apesar de ter crescido no bairro da Boa Vista, no Recife, desde criança a mãe o levava para participar do ouricuri nos três meses de primavera do ano, o que o deu direito a ser um fulni-ô. Durante sua adolescência e início da vida adulta, viveu entre Recife, Águas Belas e Flores, cidade natal do seu pai. Já adulto, após um período do que Caíque chamou de “crise existencial”, decidiu fixar sua residência de vez junto ao seu povo, em Águas Belas.

Sua esposa e seus filhos são naturais de Águas Belas e também são da etnia Fulni-ô. “Meus filhos vivem na Aldeia, vivenciando a cultura do nosso povo. É algo que faço questão”, orgulha-se Caíque, que além da língua portuguesa, é fluente no idioma dos fulni-ô, chamada Yaathê, que tem dicionário próprio, tamanha sua complexidade. De acordo com os pesquisadores linguistas Adair Pimentel Palácio e Aryon Rodrigues – dois nomes referências quando o tema é língua indígena brasileira – o povo Fulni-ô é o único do Nordeste a manter intacto seu idioma e um dos únicos no Brasil a manter viva diariamente sua língua nas atividades do dia-a-dia.

“A partir de janeiro de 2024, quero investir mais tempo em produção audiovisual, pretendo trabalhar no Coletivo Fulni-ô de Cinema, que veio a existir depois da minha formação como ator. Aqui em Águas Belas, temos maravilhosas paisagens e material humano incrível. Temos muitas habilidades a desenvolver e ninguém melhor do que nós para retratar a nossa história e nossa cultura”, planeja Caíque.

40 anos de sincretismo no Baile

O Baile do Menino Deus completa 40 anos em 2023 e se notabilizou ao longo desse tempo por contar a história do nascimento de Jesus, que embasa as festividades natalinas, mas pautada nos elementos da cultura brasileira, contrariando estrangeirismos típicos da época, como neve, papai noel, renas e pinheiros.

Mas não só isso. É um espetáculo que narra um nascimento mítico a partir das culturas formadoras do Brasil. Os três reis magos, por exemplo, representam em suas indumentárias um africano, um indígena e um ibérico, “a sínteses do povo brasileiro”, segundo as palavras de um dos autores da peça, Ronaldo Correia de Brito.

“O divino existe em todas as culturas do mundo. E os povos têm mitos semelhantes a respeito do nascimento do divino. Nós partimos do mito do nascimento de Jesus e ampliamos para um mito mais universal, que celebra nascimentos divinos”, justifica o escritor.

Ele entende que, embora tenha havia um processo de invasão e dominação entre os povos, nenhuma cultura é totalmente dominada por outra. “A forma de resistência cultural dos povos dominados era elaborar uma cultura própria a partir da cultura que estava sendo imposta a eles. E o baile recupera essa intersecção”, afirma Ronaldo.

Correia de Brito explica que escolha de Caíque foi técnica e não pela etnia. Crédito: Andréa Rego Barros/PCR

Durante essas quatro décadas, o Baile do Menino Deus buscou representar essa sinergia cultural do povo brasileiro não apenas no religioso, mas também em outras formas de expressão, como nas roupas, nas músicas e nas danças. Em seus primeiros anos de encenação, a partir de 1983, no Teatro Waldemar de Oliveira, o figurino, por exemplo, teve inspiração na cultura bizantina e depois passou a ter elementos do Natal do leste europeu. Na época, 13 atores formavam o elenco e a música era em playback.

Com o passar dos anos, a ampliação de outros elementos culturais aos religiosos foi um processo natural. No Marco Zero, a partir de 2003, o espetáculo traz um elenco de cerca de 60 pessoas, com orquestra ao vivo, coro adulto, coro infantil, corpo de baile e atores.

“No processo de concepção, fomos atrás de músicas dos séculos 15 e 16, algumas delas do processo de catequese de indígenas e africanos. E o Baile recupera também o contato desses povos com a cultura ibérica (portuguesa e espanhola) através desses cantares”, conta Ronaldo Correia de Brito. Já o texto da dramaturgia se manteve.

Mais recentemente, a direção do espetáculo tem inserido elementos culturais urbanos, como o hip hop e o breakdance. Nas apresentações deste ano, que acontecem nos dias 23, 24 e 25 de dezembro, o espetáculo conta com a participação do Rapper Okado do Canal. “A inserção dessas manifestações reflete bem a forma como o Baile se atualiza e absorve a cultura que está viva e que tem essa multiculturalidade”, frisa o escritor.

Sobre a participação do primeiro ator indígena nos 40 anos de cena, Ronaldo Correia de Brito afirma que Caíque Ferraz não foi selecionado por sua etnia, mas por sua qualidade técnica. “A seleção foi natural. Caíque passou por uma audição e nessa audição ele foi selecionado por mim, que sou uma pessoa extremamente exigente. O espetáculo é um guarda-sol aberto, debaixo do qual incluímos todo mundo. Basta ter talento. Ano passado, Maria foi uma atriz negra. Este ano, a Maria é ruiva. Nós selecionamos pela qualidade técnica”, diz.

Laís, a Maria mestiça

A atriz que interpreta Maria em 2023 é Lais Senna, que prefere se identificar como mulher mestiça ou “negra de pele clara”. Sua formação cultural e religiosa representa exatamente o cerne do Baile do Menino Deus.

“Apesar de negra de pele clara, sou batizada e crismada na Igreja Católica. Mesmo assim, minha família frequentava centros espíritas e budistas. Não tenho vivência de terreiro, mas dancei dois anos no Balé de Cultura Negra do Recife, o que me fez ter contato com elementos das religiões africanas, porque trazíamos isso para o palco. Atualmente, pratico o Sukio Mahikari, que não é exatamente uma religião, mas uma prática religiosa de origem japonesa e que abraça outras religiões”, conta Laís.

Para ela, o Baile dialoga uma narrativa que já está no inconsciente coletivo com a fé das comunidades, a partir do entendimento do que é justo, do que é belo e do que é verdadeiro.

“Enxergo no Baile a grande celebração da cultura em torno do sagrado. A partir de um símbolo católico, o espetáculo traz outras possibilidades do que é sagrado e do que merece ser celebrado. O próprio mito cristão da castidade tem uma releitura a partir do momento em que Maria é humanizada no sentido de sentir dor, de enfrentar dificuldades e de ter o próprio romantismo na sua história com José. É neste sentido que o Baile do Menino Deus se sustenta e se renova, com uma diversidade legitimada e com a celebração da vida. Parece ser óbvio, mas não é”, declara Laís Senna.

Este ano, o Baile do Menino Deus: Uma Brincadeira de Natal acontece de 23 a 25 de dezembro, na Praça do Marco Zero, sempre a partir das 20h. O acesso é gratuito e, seguindo sua proposta de diversidade, o espetáculo possui acessibilidade para cadeirante, audiodescrição e intérprete em libras.

Peça foi encenada pela primeira vez há 40 anos e está há 20 no Marco Zero. Crédito: Marcos Pastich/PCR

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