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Do laboratório de Exu saiu Alzira Almeida, uma das maiores especialistas em peste do mundo

Maria Carolina Santos / 29/08/2023
Alzira Almeira: mulher branca, idosa, de cabelos brancos, usando uma blusa estampada azul com desenhos amarelos e laranjas.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Exu – Na troca de cartas para a sua primeira missão para investigar a peste em Pernambuco, o consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) Marcel Baltazard deixou bem claro: não queria treinar uma mulher. Como o trabalho dos estrangeiros em Exu eram feitos por consultorias, a ideia era que um brasileiro ficasse sempre no laboratório. “Ele é contra o treinamento de uma mulher, pois para a solução que buscamos será preciso um indivíduo polivalente”, escreveu o então diretor do Instituto Nacional de Endemias Rurais (INERu), José Rodrigues da Silva.

O desejo inicial do pesquisador francês nunca foi atendido. O perfil que ele queria, lá em 1964 – “bacteriologista, ecologista, organizador” -, não foi encontrado entre os homens, na época. Mas do Plano Piloto de Exu saiu uma das maiores especialistas sobre a peste no mundo. Uma mulher.

Contrariando a recomendação de Baltazard, Frederico Simões Barbosa, então diretor do Instituto Aggeu Magalhães, convidou Alzira para compor a equipe do laboratório. Pesquisadora emérita da Fiocruz-PE desde 2019, Alzira de Paiva Almeida foi trabalhar em Exu ao lado do então noivo, o biólogo Célio Almeida, em 1966. Na cidade sertaneja, também enfrentou o machismo: o marido era “doutor” Célio. Ela, “dona” Alzira.

Desde então, ela tem se dedicado ao estudo da peste. Não há material científico sobre peste produzido no Brasil nas últimas décadas que não cite Alzira Almeida, que é doutora em microbiologia pela Universidade Paris VII. Uma de suas várias conquistas é ter deixado o Brasil autossuficiente para o diagnóstico da peste, após ter aprendido novas técnicas para produção do antígeno no Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos. Também ajudou a Pernambuco ter uma das maiores coleções de cepas da Yersinia pestis do mundo, com cerca de mil exemplares.

De Exu, foi trabalhar no laboratório de peste de Garanhuns e depois veio para o Recife. Após 46 anos como servidora, Alzira Almeida se aposentou em 2012, mas, aos 80 anos, segue como pesquisadora na Fiocruz-PE. Em Exu, terra onde tudo começou, ela conversou com a Marco Zero.

***

O que a senhora aprendeu na Exu dos anos 1960? Como começou a coleção de cepas da Yersinia pestis?
Aprendi a identificar os roedores, fazer a identificação taxonômica, identificar os diferentes tipos de pulgas. E principalmente técnicas bacteriológicas, de necropsia de roedores, coletas de amostras para fazer cultura, para isolar a bactéria. Em Exu foi iniciada a coleção da bactéria Yersinia pestis. Essa coleção foi ampliada em Garanhuns, onde depois de Exu funcionou o laboratório nacional de peste. E depois também em Recife, com as amostras do último surto de peste que ocorreu no Brasil, de setembro de 1986 a novembro de 1987, na Paraíba.

A coleção de bactérias

A coleção de Y. pestis da Fiocruz foi iniciada em 1966 e, atualmente, conta com quase mil cepas. É um dos maiores acervos do mundo e o mais importante do país, possibilitando estudos sobre o bacilo dos diversos focos de peste do Brasil. A maioria das cepas foi isolada no período de 1966 a 1986 ,nas Chapadas do Araripe e da Borborema, Triunfo, Serras da Ibiapaba e Baturité, no Ceará, mas também há cepas da Bahia e de Minas Gerais. As coleções brasileiras mais antigas, contendo as cepas das primeiras décadas do século XX, se perderam por falta de conservação.

Recentemente, o genoma completo de 411 cepas da Y. pestis foi sequenciado. As análises do genoma de cepas, que eram de diversos focos e de diferentes períodos epidemiológicos, permitiram confirmar a hipótese de apenas uma única introdução da peste no Brasil.

Foi dessa época a última morte por peste no Brasil?
Neste surto na Paraíba ocorreram as últimas mortes. O último caso registrado no Brasil foi em 2005, no Ceará, em uma área que se sabia que historicamente havia peste e o estado mantinha uma vigilância ativa. O doente foi tratado rapidamente. Na Paraíba, na época desse último surto, o estado estava sem recursos e a vigilância havia sido desativada há uns oito ou dez anos, e ninguém esperava mais que a peste fosse aparecer lá.

Ninguém espera que a peste apareça de novo, parece uma doença muito antiga.
É o perigo da peste: quando ela reaparece após alguns anos, as pessoas não estão preparadas. Nem a população preparada para reconhecer os sinais, nem as autoridades de saúde com equipamentos ou equipes preparadas. Os primeiros casos passam despercebidos, só são percebidos quando alguém vai a óbito e se faz uma investigação. Mas aí já está epidemizado e vários casos se sucedem.

Sua vida de trabalho foi toda dedicada à peste?
Algumas pessoas veem isso até como uma crítica: como uma pessoa passa quase 60 anos fazendo a mesma coisa? Mas é que a peste é uma doença que tem muitas facetas. Para pessoa trabalhar com peste tem que saber história, geografia, ecologia…Fui acumulando conhecimentos sobre todos os elos da cadeia epidemiológica. Adquiri conhecimentos sobre roedores, sobre pulgas, sobre técnicas bacteriológicas, técnicas sorológicas, fiz minha tese de doutorado sobre técnicas moleculares e, agora, estamos fazendo um trabalho de sequenciamento de DNA. Faço colaborações com diversas áreas. Tem a pesquisadora Elainne Gomes, que trabalha muito com georreferenciamento e análise espacial, que junta geografia e clima com dados históricos. E meu trabalho é estudar os dados históricos sobre a peste, agora com novas tecnologias, temos tidos muitos resultados com o georreferenciamento, indo desde o início, em 1966.

Desde 1980 não se registra mais casos de peste em humanos em Pernambuco. Por que é importante manter vigilância, mesmo passados mais de 40 anos?
Tem uma frase que eu ouvi uma vez de Jarbas Barbosa, que hoje é diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) : “Vigilância é estar preparado para lutar contra um inimigo que talvez nunca venha”. No caso da peste, isso é mais ou menos verdade. Talvez ela nunca venha. Mas é possível que ela venha. Sabemos que nenhum país do mundo conseguiu se livrar totalmente da peste. Foram feitas várias tentativas nos Estados Unidos, Rússia, China…mas todas foram infrutíferas. Depois de todos os esforços, todo dinheiro despendido, a peste voltou depois de anos, e sempre nos mesmos locais de onde se tentou exterminá-la. Ela sempre retorna para lugares onde desapareceu há 20, 30, 50 e até 100 anos.

Do ponto de vista histórico, temos as evidências das pandemias que ocorreram na era cristã. Teve a primeira no reinado de Justiniano. Passou alguns anos silente e depois veio a segunda, na Idade Média. Depois de alguns séculos, a terceira pandemia que, segundo alguns autores, ainda estamos vivendo essa terceira pandemia, que já dura mais de um século. A peste não se expande mais tanto, pois tem meios de impedi-la, mas ainda ocorre entre as fronteiras terrestres, até por meio dos roedores. No último parágrafo de A peste, de Albert Camus, ele relata as pessoas festejando e o médico observando: as pessoas festejavam porque não sabiam o que a medicina sabia, que a peste pode reaparecer em uma comunidade feliz, para a desgraça da humanidade. A mensagem de Camus é muito válida.

Na verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz.”


Trecho de A peste, de Albert Camus

A senhora falou que há ainda alguns mistérios sobre a peste. O que a ciência ainda não sabe?
Entre eles, a questão de como eclodem e como desaparecem as epidemias. Como é que ela vai reaparecer depois de até vários séculos, provocando grande número de casos, e como ela se extingue. Esse é um dos grandes pontos ainda a se estudar. Nenhum país ainda conseguiu descrever o mecanismo do reaparecimento da peste. Na época atual, que tem registros mais precisos, em Yunnan, na China, a peste reapareceu dois anos atrás no mesmo local onde a doença havia desaparecido há cem anos. Na América do Sul, reapareceu no Peru, no Equador e na Bolívia no início deste século. No Brasil, em alguns focos já estamos com 50 anos de silêncio.

Sobre outros aspectos, há a necessidade de melhoramentos. Na década de 1990 surgiram algumas cepas da Yersinia pestis resistentes a todos os antibióticos. Felizmente, isso não evoluiu. Mas há sempre o risco da resistência e, por isso, é necessário o estudo de novos antibióticos ou novos meios de tratamento. Também não existe uma vacina contra a peste. Desde Oswaldo Cruz, aqui no Brasil, se iniciou a produção de uma vacina, mas não era eficaz. Vários países, durante alguns anos, chegaram a produzir e usar vacinas, mas até hoje não se tem nenhuma que realmente funcione.

Alzira Almeida concedeu entrevistou durante a passagem por Exu. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com