Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Do terreiro à rua: Maracatu Encanto da Alegria mostra a conexão entre religiões afro-indígenas e o carnaval

Jeniffer Oliveira / 26/02/2025
A foto mostra um grupo de pessoas vestindo roupas tradicionais coloridas, predominantemente vermelhas e brancas, com detalhes dourados. No centro da imagem, uma menina com cabelos cacheados e enfeitados com um laço vermelho segura um instrumento musical chamado xequerê, feito de cabaça com contas ao redor. Outras mulheres ao fundo também seguram o mesmo instrumento e parecem estar envolvidas em uma apresentação cultural, possivelmente ligada à música e dança afro-brasileira. A iluminação destaca os rostos e os detalhes das roupas, enquanto o fundo está mais escuro.

Crédito: Instagram @encantodaalegriaa

“Poder representar a nossa cultura, a nossa ancestralidade e a nossa resistência é muito importante. A cada dia é uma luta diferente para fazer o carnaval, mostrando e valorizando a cultura afro”, explica Bárbara Ramos, de 40 anos. A fala da mulher que, por metade da vida, é a dama de paço da calunga de Oxum no Maracatu Nação Encanto da Alegria, do Alto José do Pinho, na zona norte do Recife, resume o peso das manifestações do carnaval para as religiões de origem africana e indígena.

Bárbara começou na agremiação em 2008, quando o Babalorixá Clóvis de Oxum jogou os búzios para saber quem seria a nova dama de paço da orixá. Ela foi escolhida mesmo sem fazer parte do Encanto. “E assim eu estou: todo ano carregando a minha calunga com muita emoção”, completa.

Esse é um dos rituais que envolvem o maracatu nação. O Encanto da Alegria foi fundado no dia 10 de dezembro de 1998, na rua Aurilândia, na Bomba do Hemetério, pela ialorixá Ivanize de Xangô junto com o amigo Clóvis de Oxum. Ambos já faleceram, mas seus familiares e brincantes mantiveram o legado do maracatu. E assim, desde a criação do grupo especial no concurso de agremiações carnavalescas há quase 20 anos, o Encanto faz parte da categoria dos mais respeitados maracatus pernambucanos.

“A gente dá continuidade a esse trabalho, esse legado e essa missão que eles deixaram com a gente. É muito gratificante chegar no dia do carnaval, no dia do nosso desfile e ver que tá tudo pronto. Quando a gente vê tudo formado é uma emoção dá vontade das lágrimas caírem dos olhos, porque é tudo por amor o que a gente faz”, diz Anderson dos Santos, de 32 anos, que começou como príncipe na corte e agora é presidente da agremiação.

A imagem mostra uma mulher negra vestida com um turbante amarelo e branco, brincos grandes, um colar de contas amarelas e uma roupa amarela brilhante. Atrás dela, há outra pessoa com uma camisa colorida e um ambiente decorado com cores vibrantes.

Bárbara nem fazia parte do Encanto quando foi escolhida para ser dama do paço

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Faltando poucos dias para o carnaval, na última semana foi realizado o arrastão “trovão vermelho”, que sai pelas ruas da zona norte marcando o último ensaio antes dos desfiles para valer. Após o arrastão, as calungas são recolhidas para os rituais sagradas e elas só voltam a ser vistas no dia do desfile. O Encanto da Alegria leva a sério todos os ritos religiosos: fazem oferendas aos orixás e eguns [alma ou espírito das pessoas mortas], consagram as calungas e renovam os votos com as entidades do candomblé para que os caminhos sejam abertos.

“O Maracatu pra ser nação, ele tem que estar ligado ao terreiro. Ele tem que nascer e morar dentro de um terreiro. Então, na minha opinião pessoal, o Maracatu que não nasce no terreiro e não tem os fundamentos religiosos, ele não pode ter esse nome, nação. Pra mim, é um grupo percussivo”, sentencia Anderson dos Santos.

O grupo está ligado ao terreiro Centro Espírita Cigana Saray, que também é a sede da agremiação. O espaço se divide com a tribo Carijós do Recife, o caboclinho mais antigo em atividade no estado, fundado em 1896 pelo estivador Antônio da Costa. As agremiações são diretamente ligadas ao candomblé e a jurema sagrada, de origem africana e indígena, respectivamente.

Um homem jovem, de pele negra, está sentado em meio a roupas e adereços coloridos de carnaval. Ele veste uma camisa vermelha com a imagem de um rei e sorri levemente. Ao fundo, há painéis decorados com temas africanos e religiosos.

"Se não for ligado a um terreiro, não é maracatu, é grupo percussivo", afirma Anderson

Crédito: Arnaldo Sete/Marco Zero

Camuflagem para evitar perseguição

Assim como o maracatu nação e o caboclinho, os afoxés, o maracatu rural, o próprio frevo e os ursos, têm uma forte ligação com a religiosidade. O próprio carnaval começou como uma festa católica, mas foi recebendo elementos e influências dos povos, etnias e culturas para quem a folia era espaço de resistência à opressão dos colonizadores e da elite de origem europeia.

A pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Rita de Cássia Araújo, lembra que a origem da festa é religiosa, ligada à tradição católica, na qual o carnaval é um período de excessos antes dos 40 dias de contenção e o recolhimento da quaresma, que começa na quarta-feira de cinzas.

Durante o Império, a manifestação aos poucos foi sendo apropriada pelas outras etnias, classes e grupos sociais, como os negros escravizados e os indígenas. Sob a vigilância dos governantes católicos e da elite, se recorreu a estratégias para separar a religiosidade. Camuflada como simples divertimento, os ritos africanos e indígenas escapavam da perseguição dirigidas àquilo que era considerado heresias.

Com o passar dos anos, os grupos e etnias continuaram com as tradições no período carnavalesco como forma de honrar os ancestrais e perpetuar a cultura. “Essa questão da religiosidade é um laço identitário, é uma prática cultural, uma questão de pertencimento dessas comunidades, desses grupos, elementos que fizeram com que eles se mantivessem”, avalia a pesquisadora.

“Além da hipótese que a religiosidade que perpassa a vida de muitas das agremiações carnavalescas, sobretudo as populares, é uma das principais responsáveis pela salvaguarda das brincadeiras, pela continuidade das tradições – que não significa congelamento -, penso que ela, a religiosidade é um dos fortes elementos a dotar a festa de sentidos próprios a cada etnia, grupo, tradição”, completa.

A foto mostra um homem negro vestindo uma camisa branca com detalhes vermelhos e uma frase estampada nas costas: EM TERRA NAGÔ REINA O TROVÃO VERMELHO DE XANGÔ, acompanhada de uma coroa e dois machados cruzados com raios. A pessoa usa um chapéu de palha enfeitado com uma fita vermelha e segura um instrumento de percussão no ombro. Ao redor, há outras pessoas vestindo roupas similares, algumas também com chapéus de palha, participando de um evento cultural noturno com iluminação urbana ao fundo.

Religiosidade marca pertencimento a uma comunidade

Crédito: Instagram @encantodaalegriaa
AUTOR
Foto Jeniffer Oliveira
Jeniffer Oliveira

Jornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.