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“Poder representar a nossa cultura, a nossa ancestralidade e a nossa resistência é muito importante. A cada dia é uma luta diferente para fazer o carnaval, mostrando e valorizando a cultura afro”, explica Bárbara Ramos, de 40 anos. A fala da mulher que, por metade da vida, é a dama de paço da calunga de Oxum no Maracatu Nação Encanto da Alegria, do Alto José do Pinho, na zona norte do Recife, resume o peso das manifestações do carnaval para as religiões de origem africana e indígena.
Bárbara começou na agremiação em 2008, quando o Babalorixá Clóvis de Oxum jogou os búzios para saber quem seria a nova dama de paço da orixá. Ela foi escolhida mesmo sem fazer parte do Encanto. “E assim eu estou: todo ano carregando a minha calunga com muita emoção”, completa.
Esse é um dos rituais que envolvem o maracatu nação. O Encanto da Alegria foi fundado no dia 10 de dezembro de 1998, na rua Aurilândia, na Bomba do Hemetério, pela ialorixá Ivanize de Xangô junto com o amigo Clóvis de Oxum. Ambos já faleceram, mas seus familiares e brincantes mantiveram o legado do maracatu. E assim, desde a criação do grupo especial no concurso de agremiações carnavalescas há quase 20 anos, o Encanto faz parte da categoria dos mais respeitados maracatus pernambucanos.
“A gente dá continuidade a esse trabalho, esse legado e essa missão que eles deixaram com a gente. É muito gratificante chegar no dia do carnaval, no dia do nosso desfile e ver que tá tudo pronto. Quando a gente vê tudo formado é uma emoção dá vontade das lágrimas caírem dos olhos, porque é tudo por amor o que a gente faz”, diz Anderson dos Santos, de 32 anos, que começou como príncipe na corte e agora é presidente da agremiação.
Bárbara nem fazia parte do Encanto quando foi escolhida para ser dama do paço
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroFaltando poucos dias para o carnaval, na última semana foi realizado o arrastão “trovão vermelho”, que sai pelas ruas da zona norte marcando o último ensaio antes dos desfiles para valer. Após o arrastão, as calungas são recolhidas para os rituais sagradas e elas só voltam a ser vistas no dia do desfile. O Encanto da Alegria leva a sério todos os ritos religiosos: fazem oferendas aos orixás e eguns [alma ou espírito das pessoas mortas], consagram as calungas e renovam os votos com as entidades do candomblé para que os caminhos sejam abertos.
“O Maracatu pra ser nação, ele tem que estar ligado ao terreiro. Ele tem que nascer e morar dentro de um terreiro. Então, na minha opinião pessoal, o Maracatu que não nasce no terreiro e não tem os fundamentos religiosos, ele não pode ter esse nome, nação. Pra mim, é um grupo percussivo”, sentencia Anderson dos Santos.
O grupo está ligado ao terreiro Centro Espírita Cigana Saray, que também é a sede da agremiação. O espaço se divide com a tribo Carijós do Recife, o caboclinho mais antigo em atividade no estado, fundado em 1896 pelo estivador Antônio da Costa. As agremiações são diretamente ligadas ao candomblé e a jurema sagrada, de origem africana e indígena, respectivamente.
"Se não for ligado a um terreiro, não é maracatu, é grupo percussivo", afirma Anderson
Crédito: Arnaldo Sete/Marco ZeroAssim como o maracatu nação e o caboclinho, os afoxés, o maracatu rural, o próprio frevo e os ursos, têm uma forte ligação com a religiosidade. O próprio carnaval começou como uma festa católica, mas foi recebendo elementos e influências dos povos, etnias e culturas para quem a folia era espaço de resistência à opressão dos colonizadores e da elite de origem europeia.
A pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Rita de Cássia Araújo, lembra que a origem da festa é religiosa, ligada à tradição católica, na qual o carnaval é um período de excessos antes dos 40 dias de contenção e o recolhimento da quaresma, que começa na quarta-feira de cinzas.
Durante o Império, a manifestação aos poucos foi sendo apropriada pelas outras etnias, classes e grupos sociais, como os negros escravizados e os indígenas. Sob a vigilância dos governantes católicos e da elite, se recorreu a estratégias para separar a religiosidade. Camuflada como simples divertimento, os ritos africanos e indígenas escapavam da perseguição dirigidas àquilo que era considerado heresias.
Com o passar dos anos, os grupos e etnias continuaram com as tradições no período carnavalesco como forma de honrar os ancestrais e perpetuar a cultura. “Essa questão da religiosidade é um laço identitário, é uma prática cultural, uma questão de pertencimento dessas comunidades, desses grupos, elementos que fizeram com que eles se mantivessem”, avalia a pesquisadora.
“Além da hipótese que a religiosidade que perpassa a vida de muitas das agremiações carnavalescas, sobretudo as populares, é uma das principais responsáveis pela salvaguarda das brincadeiras, pela continuidade das tradições – que não significa congelamento -, penso que ela, a religiosidade é um dos fortes elementos a dotar a festa de sentidos próprios a cada etnia, grupo, tradição”, completa.
Religiosidade marca pertencimento a uma comunidade
Crédito: Instagram @encantodaalegriaaJornalista formada pelo Centro Universitário Aeso Barros Melo – UNIAESO. Contato: jeniffer@marcozero.org.