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É simples assim: a lei manda e o militar obedece

Marco Zero Conteúdo / 30/09/2022

Crédito: Agência Brasil

*por Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Assim como advogados, juízes, médicos e servidores públicos, os militares estão sujeitos a conjunto normativo de natureza legal e administrativa que garante direitos, impõe deveres e obrigações, regula a situação profissional e estabelece preceitos éticos a serem observados em suas condutas, ações, atitudes e posturas individuais, especialmente as de caráter público. É o Estatuto dos Militares (E-1).

Sob a forma e com a força de Lei – nº 6.880/1980 –, o Estatuto define que militares são os “membros das Forças Armadas” e, em função da “destinação constitucional” dessas, “formam categoria especial de servidores da Pátria”. Dispõe que militares podem estar na “situação” de “ativa” ou “inatividade”, neste último caso na categoria de “reserva remunerada” ou “reforma”, incidindo também sobre esses, no que couber, as normas do Estatuto.

Na esfera administrativa, o Regulamento Disciplinar do Exército (RDE) – Decreto nº 4.346/2002 – tem a finalidade de especificar as “transgressões disciplinares” e “estabelecer normas relativas a punições, recursos e recompensas”, também sujeitando os militares na ativa, na reserva remunerada e reformados a seus preceitos. Vale dizer que as duas primeiras “transgressões” tipificadas no Regulamento são “faltar à verdade” e “utilizar-se do anonimato”. A Marinha, a Aeronáutica e algumas Polícias Militares têm regulamentos similares ao do Exército.

Após a última Ditadura 1964-1985, diretamente controlada por oficiais das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas – generais e coronéis –, publicou-se a Lei 7.524/1986, que faculta ao “militar inativo, independentemente das disposições constantes dos Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas, opinar livremente sobre assunto político, e externar pensamento e conceito ideológico, filosófico ou relativo à matéria pertinente ao interesse público”.

Assinaram-na o então presidente e o ministro do Exército da época, o mesmo que, em setembro daquele ano – 1986 –, determinou a prisão do capitão Jair Messias Bolsonaro por deslealdade com seu comandante de Unidade e a Instituição ao publicar, na ativa, um artigo de teor político e reivindicatório em revista semanal de grande circulação, tudo sem conhecimento ou autorização dos escalões superiores. No ano seguinte, envolvido em outras graves questões disciplinares, o capitão foi condenado por “tribunal de honra” – Conselho de Justificação –, em decisão unânime, como resultado de reiteradas ações de “falta à verdade” e atitudes anti-éticas à luz do E-1 e do RDE, dentre elas, a de “utilizar-se do anonimato” como fonte de informações – em off – para jornalistas sobre temas de natureza militar e política.

Por isso, pareceu estranho o recente Processo Administrativo Disciplinar (PAD) a que foi submetido um contra-almirante inativo da Marinha do Brasil por, segundo alega, opinar sobre temas políticos e de interesse público durante entrevista a notável canal de notícias, quando apresentou crítica fundamentada a respeito de aspectos do protagonismo político de cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, tão evidente nos últimos anos e no atual governo federal.

O fato chama atenção tanto pela aparente ilegalidade do ato administrativo, já que o militar inativo está habilitado, pela Lei 7.524/86, à livre expressão de opinião sobre tema de natureza política e de interesse público, quanto pela enorme quantidade de possíveis violações de normas legais, disciplinares e éticas por militares, especialmente das cúpulas hierárquicas, na ativa e na inatividade, sem nenhuma ação disciplinar das autoridades responsáveis por impor a disciplina aos que estão sujeitos às normas, nem de promotores do Ministério Público encarregados, lato sensu, de fiscalizar o cumprimento de normas legais pelos militares.

Centenas de oficiais do Exército na inatividade, dos milhares que se candidataram a mandatos nas últimas e atuais eleições, utilizaram ou utilizam designações hierárquicas de seus postos – general, coronel, tenente-coronel, major, tenente etc. – em atividades político-partidárias, como as de propaganda eleitoral e, mesmo, como “nome na urna”. Outros, já eleitos, inserem seus postos junto a seus nomes, sequer indicando sua situação na inatividade.

 Não é raro que tais oficiais usem perfil de rede social ou publicações de propaganda eleitoral com dizeres do tipo “General Alfa”, “Deputado General Bravo” ou “Deputado tenente-coronel Charlie”, e façam ampla utilização de símbolos militares, como o brado da Brigada de Infantaria Paraquedista – “Brasil acima de tudo” – convertido em slogan eleitoral de uma chapa integrada por militares, e distintivos oficiais, como no caso do coronel secretário-executivo do Ministério da Saúde que usava os broches oficiais das tropas “comandos” e “forças especiais” do Exército Brasileiro em suas aparições públicas por ocasião de entrevistas sobre temas de saúde inerentes a seu cargo civil.

 Outros militares inativos usam o posto ou a graduação para obter favorecimentos, quando ocupam cargos de natureza civil e, até, para encaminhar negócios particulares ou de terceiros, como o caso de um ex-comandante do Exército, até outro dia ocupante de cargo de confiança no governo federal, que fundou uma associação privada, registrou-a com seu próprio nome e posto – “Instituto General Tal” – e usa as próprias fotos fardado no material de divulgação pública e no site na rede mundial de computadores, por intermédio dos quais formula pedidos explícitos de doações em dinheiro, com indicação de contas-correntes para depósitos e transferências. Observa-se, também, inúmeras reportagens apresentando informações de natureza política oriundas de “fontes militares na ativa” que teriam, segundo os jornalistas, solicitado anonimato.

Além disso, o brasileiro assiste, há pelo menos seis anos, a milhares de oficiais do Exército na reserva e na ativa participando de “manifestações de rua” com caráter político, algumas delas, até, em apoio ou em oposição a(o) comandante supremo das Forças Armadas.

Manifestos – coletivos – de clubes militares vinculados ao Exército e de associações informais de oficiais têm sido divulgados em profusão, quase todos alinhados a uma mesma linha ideológica e, alguns, com críticas, reivindicações políticas e ofensas explícitas a autoridades, ministros de cortes superiores e ao próprio sistema democrático. O E-1, em seu Art. 45, deixa muito claro que “são proibidas quaisquer manifestações coletivas, tanto sobre atos de superiores quanto as de caráter reivindicatório ou político”. Mais adiante, em seu Art. 151, o Estatuto veda que clubes vinculados às Forças Armadas extrapolem a promoção de “intercâmbio social e assistencial entre os militares e a sociedade civil”.

 O caso de um general na ativa participando de manifestação de rua em apoio ao atual presidente e usando do microfone sobre carro de som para expressar sua aprovação ganhou as capas dos jornais em 2021, mas não resultou em nenhuma espécie de sanção pelo Comando do Exército. Os brasileiros, militares incluídos, terão que “esperar” 99 anos para saber por que o general não foi punido – a maioria não estará viva para conhecer. Hoje, aquele oficial é candidato a deputado federal na maior guarnição militar do Brasil e usa sua designação hierárquica em publicidade eleitoral. Considerando isto, e por inferência isonômica, todo militar da ativa do Exército estaria liberado a participar de atos políticos em apoio ou desapoio a qualquer candidato, até mesmo usando a designação hierárquica de seu posto ou graduação.

Como, no Exército, “a palavra convence e o exemplo arrasta” e este, o exemplo, “vem de cima”, não é nem será difícil encontrar tenentes, sargentos, cabos e soldados procedendo de maneira similar aos generais e coronéis. É por valorizar o exemplo que o E-1, em seu Art. 42, considera “a violação dos preceitos da ética militar (…) tão mais grave quanto mais elevado for o grau hierárquico de quem a cometer”.

 Assim, não é difícil imaginar e compreender a intenção do legislador de 1980 e dos próprios oficiais-generais que “assinaram” a Lei nº 6.880 – o Presidente da República e os Ministros do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e do Estado-Maior das Forças Armadas –, ao estabelecerem padrões de conduta imperativos, por exemplo, nos Art. 28 e 16 do Estatuto, que, de forma muito clara, impõem o militar, também inativo, como demonstração de “sentimento do dever, pundonor militar e decoro da classe, uma conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos preceitos de ética militar”.

Dentre tais preceitos, que se abstenha de “utilizar sua designação hierárquica para obter favorecimento pessoal de qualquer natureza”, para “encaminhar negócios particulares ou de terceiros”, em “atividades político-partidárias”, quando discute publicamente “temas políticos”, no “exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo na administração pública”, e, no caso em que puder utilizá-la, “sempre” o fazer “com as abreviaturas respectivas de sua situação” – “R-1” ou “Refm”, conforme seja da reserva remunerada ou reformado.

Dando continuidade às iniciativas do primeiro governo da ditadura ainda na década de 60, que promovera radical reforma na estrutura de carreira militar, especialmente dos oficiais e oficiais-generais, o governo do último presidente do regime pretendeu, ao submeter o projeto do E-1 ao Congresso Nacional e sancionar a Lei 6.880/80, criar as condições – os marcos legais – para que militares (integrantes das Forças Armadas) e política (governos e parlamentos) atuassem em suas estritas esferas sem interferências recíprocas indevidas, mesmo quando militares, no regular exercício dos direitos de cidadão, tivessem interesse de participar da vida política fora das Forças Armadas.  

Como ocupante de cargo executivo ou parlamentar, o militar deve atuar, sempre, em caráter estritamente individual e pessoal, deixando isto bem claro para a sociedade que lhe impôs as normas. Esta, a sociedade, não pode perceber a Instituição Militar, por intermédio da atuação política indevida de seus integrantes, como uma espécie de partido ou grupo político de pressão (no conceito “weberiano” de partido) em temas estranhos à Defesa.

Em outras palavras, num sentido figurado, as próprias cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, no final da ditadura, criaram os “alicerces” para que a sociedade brasileira e suas lideranças militares, em parceria resultante da transição “lenta, gradual e segura” para a democracia, pudessem construir “muralha” ética e normativa – de natureza e fundamento legal, moral e histórico – com a finalidade de consolidar o necessário e indispensável afastamento dos militares – das Forças Armadas – da luta política e de governos: quaisquer governos e quaisquer lutas.

É relativamente fácil perceber os riscos que correm as Forças Armadas e a democracia quando se misturam militares, quartéis, política e governos. Empiricamente, basta abrir os livros de História do Brasil ou os jornais de hoje. Em suas páginas, será possível encontrar diversos eventos e processos que caracterizam aqueles riscos e projetam novos temores, seja como repetição “trágica”, seja como “farsa”, nos dizeres de Karl Marx em sua obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

General Eduardo Pazuello foi exemplo de atuação política de oficial da ativa. Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil

As dinâmicas da politização dos militares predominantes durante boa parte da República no Século XX constituíram caldo de cultura para o estado de indisciplina crônico que pautava os quartéis do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e, até mesmo, das polícias militares ou forças públicas, especialmente entre o denominado “segundo tenentismo” inaugurado pela Revolta do Forte de Copacabana em 5 de julho de 2022 – há cem anos – e o início da década de 1970 já em plena ditadura.

Durante aquele período e, em grande medida, como reprodução de cenários externos, o seio das Forças Armadas foi transformado em teatro de lutas políticas, muitas vezes sangrentas, entre grupos de militares de diferentes concepções político-ideológicas, desde a esquerda revolucionária comunista – Aliança Nacional Libertadora, por exemplo – à direita totalitária fascista – como a Ação Integralista Brasileira. Movidos por desmedidos idealismos e oportunismos de toda ordem, cúpulas hierárquicas transformaram os quartéis em palco de balbúrdia política e indisciplina, afinal, como se sabe, a “disciplina sai por uma porta quando a política entra por outra” nas corporações militares.

Pode-se recorrer a conceitos próprios da filosofia e das ciências sociais, em particular da antropologia e da sociologia, para aprofundamentos e ampliações  teóricas sobre as relações dos militares com a política.

As concepções retóricas aristotélicas permitem abordagem elementar muito útil para compreensão do que se percebe na experiência daquelas relações – militares e política. Logos (razão, lógica), pathos (emoções, sentimentos, afetos) e ethos (valores, ética) da liderança e da atividade militares advém do estrito e rigoroso ordenamento verticalizado em sentido decrescente, são avessos ao dissenso como norma e materializam-se, sempre, no cumprimento de uma missão, um dever – “a qualquer momento, em qualquer lugar”: lutar unido, vencer a batalha, derrotar o antagonista e ganhar a guerra, até mesmo com sacrifício da vida própria e da do adversário, convertido em inimigo e valorizado, no plano consciente ou inconsciente, como o “mal” a ser neutralizado ou eliminado.

Assim, discórdias, dissensos, acordos, antagonismos, confrontos de ideias, consensos, lutas, embates, militâncias e vontades das maiorias são características impróprias da atividade militar institucionalmente inserida no corpo de um Estado e de uma sociedade minimamente organizada. Quando tais características pautam as relações nos diversos níveis ordenados de autoridade num organismo militar, observa-se, quase sempre, a quebra da hierarquia, o descumprimento do dever (a indisciplina), a degradação da coesão interna (a perda da unidade), a partição ou partidarização do “todo” (o enfraquecimento) e o comprometimento da missão: lutar as batalhas, vencer a guerra e estar preparado para isto.

Ao contrário, quando aquelas características estão ausentes das dinâmicas políticas de uma sociedade democrática, sendo substituídas por códigos éticos (ethos), lógicos (logos) e afetivos (pathos) próprios dos sistemas militares ou militarizados, as relações sociais e as disputas de poder entre grupos e indivíduos (pessoas) tendem a tiranias, intolerâncias, autoritarismos, “mandonismos” e empobrecimento dos debates polarizados típicos dos regimes fundados no Estado Democrático de Direito, como o estabelecido pela Constituição Federal de 1988.

Logos, pathos e ethos da liderança e da atividade políticas advém da autoridade verticalizada em dinâmica e sentido crescentes e flexíveis – da base eleitoral e militante (povo) para o mandatário parlamentar e executivo – sempre sujeita, aquela autoridade, à legitimação periódica pela manifestação da vontade e do juízo claro e inequívoco das maiorias, preservando-se o respeito às minorias.

Outra abordagem teórica adequada sobre as incompatibilidades entre os “universos” militar e político, as contradições entre os respectivos fazeres e os riscos de sua mescla pode basear-se numa intepretação extensiva dos conceitos de “habitus”, “campo” e “capitais culturais, sociais, econômicos e simbólicos” desenvolvidos pelo antropólogo e sociólogo Pierre Bourdieu. Para o cientista francês, “habitus” são as disposições, os estilos de vida, as maneiras e os gostos incorporados nas pessoas – sujeitos – e “campo”, o espaço social que, possuindo estrutura própria e com alguma autonomia em relação a outros espaços sociais, é dotado de uma lógica peculiar de funcionamento, estratificação e princípios reguladores das relações entre os agentes sociais. “Capitais” representam a quantidade de forças simbólicas acumuladas pelos indivíduos – as pessoas – no interior dos “campos” e dínamos de suas interações sociais.

Dessa forma, o “habitus” militar quando exercido e praticado no “campo” da política e seu inverso acabam por gerar impropriedades e conflitos de tal ordem que podem descaracterizar os “habitus” originais e provocar graves disfunções nos “campos” típicos, causando “anomias” – conceito oriundo do fundador da sociologia moderna, Emile Durkheim – e possibilidade de rupturas ou fraturas sociais e institucionais. Quando militares, em massa, utilizam seus “capitais culturais, sociais e simbólicos” – como membros de uma Instituição de Estado – para favorecer um projeto de poder ou a si próprios dento de tal projeto – disputa de eleições, ocupação de cargos políticos e implementação de pautas corporativas e de interesses gerais e específicos – estão empregando, coletivamente, “capitais” específicos das atividades militares, vilipendiando seu “campo” e deformando seus “habitus”.

Encerrando essa breve instigação teórica, nada como recorrer a fatos conhecidos para demonstrar e exemplificar os conceitos acima esboçados – não será difícil, no caso apresentado, identificar as situações em que se mesclam indevidamente os ethos, pathos e logos militares com políticos e os efeitos negativos resultantes para uns e outros. Tampouco será complexo reconhecer a utilização imprudente e insensata de “capitais culturais, sociais e simbólicos” próprios dos “campos e “habitus” militares em “campos e habitus” políticos.

Em meados de 2020, enquanto o Brasil travava enorme luta contra o flagelo da pandemia de covid-19, que já havia causado o falecimento de milhares de cidadãos, um general-de-divisão na ativa, mesmo “sem saber o que era o SUS” (sic), era titular de um Ministério da Saúde repleto de oficiais na reserva e na ativa – autorizados pelo Alto Comando do Exército. Oficiais do Exército exercendo atividades eminentemente políticas relacionadas a temas urgentes de saúde pública.

Dentro do Hotel de Trânsito de oficiais em Brasília (“capital simbólico”), ao lado de um capitão do Exército, Presidente da República, o general proferiu célebre frase – “um manda e o outro obedece” (ethos, páthos, logos, “habitus” e “campo) – como justificativa por haver desfeito acordo que assinara dias antes com o Governo de São Paulo para aquisição de vacinas junto ao Instituto Butantã. Alegou, pateticamente, dentro de uma Organização Militar do Exército (“capital cultural”), que o fazia por haver recebido “ordem” do capitão-presidente (“habitus”), já notório por menosprezar as pesquisas, o desenvolvimento de vacinas e declarar que não as tomaria (“mau exemplo”). Era o mesmo general que, menos de um ano depois desses fatos, ainda no serviço ativo, estaria sobre um palanque junto ao Presidente.

Hoje, já na reserva, concorre a mandato de deputado federal. Receberá, provavelmente, milhares de votos da “família militar” (“capital social”) domiciliada no Estado que foi alvo de intervenção federal e militar durante todo o ano eleitoral de 2018. O interventor de 2018, general-de-exército e atual candidato a vice-presidente, foi chefe imediato do colega no governo – um Ministro da Casa Civil e o outro da Saúde. “Um manda e o outro obedece”. “É simples assim”: generais-de-exército mandam em generais-de-divisão e esses, em capitães.

O Brasil está no quarto ano de um governo chefiado por dois oficiais do Exército – um general que esteve no Alto Comando de 2014 a 2017 e um capitão com notórios problemas éticos desde a década de 1980 –, ambos da mesma geração formada na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) no período mais agudo da Ditadura, correspondente à vigência do Ato Institucional nº 5: os anos 1970. Essa geração ascendeu ao generalato em meados dos anos 2000 e ao Alto Comando do Exército durante a última década. Ainda está lá.

Há pelo menos quatro anos, milhares de oficiais das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas, na ativa e na reserva, ocupam “cabeça, tronco, membros, entranhas e alma” da máquina governamental do Estado, tanto na administração direta quanto na indireta.

Há pelo menos quatro anos, milhares de oficiais exercem cargos relevantes em tribunais e cortes superiores, em funções de assessoria e chefia administrativa. Outros milhares, ainda, exercem mandatos eletivos parlamentares e tarefas executivas e consultivas em diversos níveis e entes federados. Outros tantos são contratados por empresas que prestam serviços e fornecem produtos para o governo, não somente nas áreas de segurança e defesa, como nas de variadas e múltiplas funções e empregos, desde insumos médico-farmacológicos, inclusive vacinas, a fertilizantes e produtos alimentícios.

Há pelo menos quatro anos, milhões de militares na ativa e na inatividade constituem o eixo central, ao qual se agregam outros eixos “sociais” – os entornos familiares e sociais próximos e afastados –, para formação de ampla, numerosa e cada vez mais compacta base eleitoral e militante daquilo que chamo Partido Militar. Os integrantes dessa base estavam representados em quantidade significativa, vestidos com suas camisas em referência à seleção brasileira de futebol masculino, nas ruas das cidades brasileiras no último 7 de setembro, em verdadeiro comício das candidaturas daquele Partido com a participação das próprias Forças Armadas, como abertura e moldura de um ato político-eleitoral.

A participação de um militar na ativa em governos exercendo cargos civis de natureza política ou administrativa depende da autorização e(ou) do consentimento expressos dos comandos das respectivas Forças e, evidentemente, da vontade de cada um dos militares envolvidos na tramitação de um processo desse tipo, necessariamente formal e escrito. Regula-o, dentre outras normas, o Decreto nº 8.978, de 4 de julho de 2016 – publicado poucos dias após a posse do Presidente Michel Temer, de um general do Alto Comando, ainda na ativa, como Ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e de um general-de-exército na reserva como secretário-executivo de um Ministro da Defesa provavelmente escolhido pelos altos comandos das Forças. Tal dispositivo estabelece competência aos Comandantes (Marinha, Exército e Aeronáutica), em caráter exclusivo, para autorizar “oficial ser nomeado ou admitido para cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, inclusive da administração indireta”.

A nomeação de todo e qualquer militar na ativa para cargo em governo trata-se de “ato político” do militar que aceita o convite, do militar que o formula e do militar que autoriza a nomeação. Considerando que tais autorizações ou consentimentos dos comandantes são precedidos por consultas aos oficiais-generais dos altos comandos – conselho dos 16 generais mais antigos, no caso do Exército –, esse tipo de participação pode ser percebido e entendido pela sociedade como um “ato político” da própria Instituição. A sociedade estaria absolutamente correta se assim o compreendesse.

 Os níveis de aprovação do governo mais militarizado da História do Brasil, ao menos considerados os breves períodos democráticos, são baixíssimos. Os índices de confiança, respeito e credibilidade das Forças Armadas perante a sociedade são os menores em muitos anos. Tais indicadores, medidos por diversos e respeitados institutos pesquisadores de opinião pública, foram usados como “capital” – social, simbólico, cultural –, verdadeira “muleta”, para a eleição de milhares de militares em 2018 e outras candidaturas vinculadas a oficiais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Não seria leviano estabelecer relações de causa e efeito entre o atual protagonismo político das cúpulas hierárquicas das Forças Armadas com aqueles dados objetivos – quantitativos e qualitativos.

 Tudo isto significa uma enorme e forte pressão sobre a “muralha” que deveria separar os “campos” e “habitus” – ou os pathos, ethos e logos – militar e político. E uma pressão exercida pelos maiores responsáveis pela manutenção de sua integridade e firmeza – algo muito grave e importante para continuar fora dos principais debates jornalísticos, acadêmicos e políticos ou tratado com superficialidade e imprecisão.

 Milhares de militares, na ativa e na reserva, comportando-se como verdadeiros militantes, vêm transpondo a “muralha”, por cima e por baixo, desde o polêmico, talvez ilegítimo, impeachment da Presidenta Dilma Roussef.

 A “muralha” é severamente golpeada quando militares, na ativa e na reserva, exercem seus direitos legítimos de votar, ser votado e participar da vida e da luta política descumprindo flagrantemente os preceitos éticos da Lei 6.880/80. Dão péssimo exemplo se são oficiais das cúpulas hierárquicas os que violam a Lei. Da mesma forma, os que deveriam fazê-los cumprir o Estatuto dos Militares.

A “muralha” irá ao chão e será transformada em ruínas se os atuais processos de politização dos militares – das Forças Armadas – e de “militarização” da política – da sociedade –, dinamizados pelo Partido Militar, não forem interrompidos já. Para serem interrompidos e regredidos, é indispensável que sejam, ao menos, conhecidos. Para serem conhecidos, essencial que sejam percebidos.

 A Lei 6.880 foi promulgada no dia 9 de dezembro de 1980 e teve significado pessoal muito relevante. Iniciei minha carreira em 14 de fevereiro de 1981, pouco mais de sessenta dias após o início da vigência do Estatuto. Encerrei-a no dia 31 de janeiro de 2018, plenamente realizado como cidadão e soldado, mas muito preocupado com a integridade da “muralha”, que já percebia comprometida.

Durante aquele período, especialmente a partir de 1988, quando iniciei a trajetória de oficial do Exército após sete anos de curso na Escola Preparatória de Cadetes e na AMAN, que formaram as bases de meus “habitus”, ethos, pathos e logos e me deram os fundamentos sociais e simbólicos para atuar no “campo” que escolhera por vocação e, também, pelo próprio “capital cultural” de minha família militar, assisti à fundação dos alicerces da “muralha”, à “concretagem” de seus “moirões”, ao “assentamento” de seus “tijolos” e ao seu “acabamento”. Do primeiro ao último posto da carreira de oficial – aquele que comanda depois de aprender a obedecer –, ajudei a construí-la em todas as suas fases, simplesmente cumprindo a Lei 6.880/80 e fazendo os que me eram subordinados cumprirem-na também. Afinal, e é necessário repetir à exaustão: “é simples assim: um manda; o outro obedece”; e o “exemplo arrasta”. A Lei manda e o militar obedece.

Se a “muralha” for destruída, não poderei ajudar a reconstruí-la novamente. Já não tenho – e nem devo ter – as ferramentas para trabalhar com suas matérias-primas. Possuo, apenas, a livre expressão de minha opinião, ao amparo da Lei, para contribuir com os que têm o dever e o poder de fazê-lo. Posso, no máximo, ajudar a repará-la. É o que venho tentando desde que percebi os primeiros sinais de avarias nessa edificação sócio-histórica, de natureza ética, tão importante para a consolidação de uma sociedade democraticamente pujante, plural e justa, ainda que imperfeita, como para a capacitação profissional das Forças Armadas e de seus integrantes – nós, militares – a seu mister: defender a Pátria de todos, independentemente de visões políticas, convicções ideológicas, crenças e situações ou classes sociais dos brasileiros.

Que as atuais gerações de chefes militares e as lideranças políticas legitimadas pelo povo saibam voltar a usar o Estatuto dos Militares para reparar os danos e, quem sabe, reforçar a “muralha” com outras normas que alarguem seus alcances. Ali, na Lei, na ética e na História, estão os fundamentos da conduta do militar das Forças Armadas numa sociedade democrática e liberal, no sentido politicamente amplo da expressão: neutralidade política, imparcialidade ideológica, apartidarismo no sentido amplo, isenção funcional, profissionalismo essencial e estrita constitucionalidade. São os “moirões” da “muralha”.

Mãos à obra! A História já nos deu “régua e compasso”.

*Oficial do Exército na inatividade. Mestre em Ciências Militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

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É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.