Apoie o jornalismo independente de Pernambuco

Ajude a MZ com um PIX de qualquer valor para a MZ: chave CNPJ 28.660.021/0001-52

Em “Clamor Negro”, a mulher é a protagonista da retomada da identidade negra

Giovanna Carneiro / 07/07/2023

Crédito: Mayara Barbosa

Que minha cor
Não seja motivo de xingamento
E emudeçam os tons pejorativos
Que me causam sofrimento

Que meu passado
Não me plante na escravidão
E nunca esqueçam
Que fui escravizada
Mas escrava: NÃO

Que as chibatadas só
Nos livros de História
Sejam lembradas
E junto também venham
Os heróis e as vitórias:
Zumbi, Dandara, Malês,
José do Patrínio, Benguela, Mahin, a glória

Trecho do poema “Clamor Negro” de Odailta Alves

Os versos que abrem o poema Clamor Negro se apresentam como guia de uma trajetória de vida condicionada pelo racismo e pela escravidão. É o desabafo e também o levante de uma mulher negra que descobriu a força de seus antepassados e cansou de viver sob o olhar estigmatizante do patriarcado colonial branco. Esta mulher negra é Odailta Alves, poetisa e escritora da comunidade do Campo do Onze, no bairro de Santo Amaro, no Recife.

Primeira pessoa da família a aprender a ler, Odailta fez das palavras a sua principal ferramenta política e cultural: “Eu tive um processo de leitura e escrita muito social. Eu sou de uma geração que não tinha internet, então, era a partir das cartas que eu me expressava e me comunicava. Eu escrevia muitas cartas na comunidade e lia muitas cartas porque o índice de analfabetismo, quando eu era criança, era muito alto”.

Apaixonada por literatura e poesia, o processo de escrita de Odailta iniciou ainda na adolescência, mas foi após o seu contato com o poeta, ator, cineasta e militante do Movimento Negro, Solano Trindade, que a moradora de uma das maiores favelas do Recife decidiu que queria ser escritora e teria a experiência de vida das pessoas negras como sua principal fonte de inspiração. “Me tornei uma leitora muito voraz, mas eu não lia literatura negra porque não chegava até mim. O primeiro que me chegou foi Solano Trindade, li um poema dele num livro e fiquei encantada em me ver retratada”, revelou a poetisa.

Daí em diante, Odailta resolveu escrever poemas que pudessem fortalecer sua identidade e de todas as pessoas negras, sobretudo as mulheres. Foi então que surgiu o poema Clamor Negro, que depois se expandiu e virou um livro de poemas com o mesmo nome, lançado de forma independente por Odailta em 2016, e que já vendeu mais de três mil exemplares.

“O Clamor Negro me inspirou a trazer minha identidade preta para esse lugar da escrita, que é um lugar de conquista para o povo negro e muito importante para fortalecere nossa identidade. A gente demora a ter letramento racial, não é fácil, e eu não venho de uma família de militantes, eu venho de uma família de pessoas que catavam materiais reciclados na rua para sobreviver”, revelou a escritora.

Enquanto trilha uma trajetória para fortalecer e expandir os espaços de escuta para o seu Clamor Negro, Odailta também ocupa a academia e trabalha com a educação formal. A poeta tornou-se mestra em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no momento está cursando o doutorado em Linguística e é professora nas redes de ensino da Prefeitura do Recife e do estado de Pernambuco. 

O espetáculo Clamor Negro estreou em 2017 e desde então já realizou mais de 50 apresentações. Crédito: Mayara Barbosa

E o poema virou espetáculo

Crescendo em um contexto social onde a alfabetização era ainda um privilégio, Odailta Alves pensou em outras formas de levar os seus escritos ao encontro do público e, com isso, passou a recitar sua poesia em eventos e espaços públicos. E a partir da recepção dos espectadores, a escritora decidiu transformar o livro em um espetáculo que mistura música, dança e poesia.

“Fui costurando os meus poemas, pegando dois poemas de outras escritoras, um é de Cristiane Sobral: Eu não vou mais lavar os pratos, e o outro é de Vitória de Santa Cruz: Gritaram-me negra. E todo o restante do texto é meu. Depois eu comecei a ensaiar”, revelou Odailta.

“Eu queria muito trazer todo um percurso histórico sobre a nossa condição de mulher preta nessa sociedade, desde o processo da escravização até as conquistas, as leis. A ideia é realmente colocar a mulher preta no centro das narrativas de maneira muito didática, para que qualquer pessoa que não possua um letramento formal possa ver e sentir o impacto das palavras”, explicou.

Neste mês, em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, no dia 25 de julho, o espetáculo Clamor Negro realizou duas apresentações no Recife, na sede do grupo teatral O Poste. Durante as sessões, a equipe do espetáculo homenageou três mulheres negras: Elaine Cristina, co-vereadora do Recife pelo PSOL; Mônica Oliveira, comunicadora e militante da Rede de Mulheres Negras de Pernambuco; e Mirtes Renata, mãe do menino Miguel Otávio.

A apresentação do espetáculo foi realizada por Odailta Alves e contou também com as participações da dançarina Darana e da cantora e musicista Isaar. Além dos poemas, o Clamor Negro ganhou uma nova roupagem, com letras da própria Odailta musicadas por Isaar.

“São músicas lindas e o nosso sonho é ver o povo cantando essas composições para além do espetáculo. Nessa nova roupagem, Isaar colocou toda sua musicalidade preta, potente, com a força da percussão. Já Darana vem com a dança afro para trazer todo poder do corpo preto da mulher ancestral”, contou Odailta Alves.

Enquanto mulher negra, é difícil segurar a emoção ao assistir o espetáculo, que se desdobra como um monólogo, mas com uma fluidez que impressiona, graças às suas múltiplas linguagens artísticas. Ao misturar dança e música com sua literatura efervescente, Odailta Alves nos instiga a expor as facetas do racismo, do machismo e de tantos outros sistemas de opressão que operam na vida das mulheres negras, e também nos afaga ao apresentar um mundo onde a negritude não é apenas sinônimo de dor, mas também de força, ancestralidade e beleza. Por isso, ao final da apresentação o público passa por um momento de troca junto a equipe do espetáculo para poder expor e compartilhar também suas vivências pessoais.

“Nesta temporada que fizemos no Poste, uma companheira levou a sogra, uma senhorinha que mora na mesma favela que eu nasci e me criei, em Santo Amaro. Uma senhorinha preta retinta, evangélica, estava lá com a sua saia comprida abaixo do joelho, sua blusinha de manga e essa senhora chorou o espetáculo todo. Ela chorou porque ela se viu espelhada ali e essa mulher tem tão pouco ou nenhum acesso aos discursos de empoderamentos, não é? Foi difícil manter a concentração na peça vendo aquela mulher se desmanchar o tempo inteiro”, relembrou Odailta Alves.

O espetáculo Clamor Negro estreou em 2017 e desde então já realizou mais de 50 apresentações para um público de mais de sete mil pessoas. Em 2022, o espetáculo recebeu o 3º prêmio Roberto de França Pernalonga de Teatro como “Melhor Monólogo”. Recentemente, a peça circulou pelas escolas públicas do Interior de Pernambuco apoiada por recursos do Funcultura.

Para Odailta Alves, levar a peça para as escolas é uma forma de garantir o cumprimento da Lei 10.639/2003, – determina a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo da rede de ensino -, que, segundo a escritora, ainda não foi efetivada de forma bem sucedida nas escolas.

“Sempre que apresentamos a peça a plateia reage com muita energia. Acontece realmente um reconhecimento do povo negro, as pessoas pensam ‘essa é minha história’. Isso possibilita a construção de outras narrativas de superação do racismo e é muito emocionante”, concluiu a escritora.

Esta reportagem foi produzida com apoio doReport for the World, uma iniciativa doThe GroundTruth Project.

Uma questão importante!

Colocar em prática um projeto jornalístico ousado custa caro. Precisamos do apoio das nossas leitoras e leitores para realizar tudo que planejamos com um mínimo de tranquilidade. Doe para a Marco Zero. É muito fácil. Você pode acessar nossapágina de doaçãoou, se preferir, usar nossoPIX (CNPJ: 28.660.021/0001-52).

Apoie o jornalismo que está do seu lado

AUTOR
Foto Giovanna Carneiro
Giovanna Carneiro

Jornalista e mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco.