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Em Jaqueira (PE), a violência no campo não respeita quarentena

Helena Dias / 21/05/2020

Eram 21h50 da última terça-feira (19) quando a Marco Zero recebeu mais uma das muitas denúncias de violência contra trabalhadores rurais nas terras da falida Usina Frei Caneca, localizada no município pernambucano de Jaqueira, na Zona da Mata Sul. A reportagem aguardava um retorno da Comissão Pastoral da Terra (CPTNE2) para obter os contatos de alguns moradores do local que haviam sido vítimas de agressões, na semana anterior, quando foi surpreendida por mais uma notícia de ataque. Tratava-se do novo episódio de uma velha história que remonta a antigas narrativas de conflitos entre senhores, capatazes e trabalhadores de engenho. História que apresenta uma face invisibilizada da pandemia: a violência no campo não respeita quarentena.

Os conflitos passam por uma disputa judicial e vêm sendo mediados desde 2018 pela CPT, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e com algumas intervenções do Governo do Estado. Na última terça-feira não foi diferente. Segundo relatos recebidos pela própria Comissão, por volta das 7h cerca de vinte funcionários da Agropecuária Mata Sul S/A destruíram dez mil pés de banana plantados por uma família agricultora da comunidade do Engenho Fervedouro.

Nesta comunidade moram cerca de 75 famílias e é onde os conflitos acontecem com mais frequência. Ao todo, 1.200 famílias residem nas mediações dos 5 mil hectares da falida usina e representam 40% dos habitantes de Jaqueira, assim como a extensão de terra da Frei Caneca corresponde a cerca de 50% da área total do município. Ao todo, são sete comunidades: Fervedouro, Barro Branco, Caixa D’Água, Guerra, Laranjeiras, Rampa e Várzea Velha.

A Marco Zero estava em contato com a Comissão desde a segunda (18) para apurar informações sobre uma investida policial que aconteceu na quarta-feira, dia 13, também em Fervedouro. Policiais alegavam o cumprimento de reintegração de posse da empresa Agropecuária Mata Sul S/A, em uma área que possui plantações comunitárias e uma cacimba onde as famílias costumam se abastecer de água. Os moradores locais relataram tensão e medo motivadas pela postura da Polícia Militar.

Por causa da resistência dos agricultores, o desfecho do ocorrido se deu com alguns funcionários da Mata Sul S/A reerguendo cercas que já estavam no local, mas sem inviabilizar o acesso das famílias à fonte de água. A polícia acompanhou o processo inteiro como se estivesse resguardando os funcionários e alguns agricultores tiveram que retirar seus animais que pastavam na área a ser cercada.

Por e-mail, a Marco Zero solicitou à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco informações sobre “as providências que o governo tomou ou pretende tomar para mediar o acirramento do conflito rural durante este momento de pandemia”, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.

(Atualização no final do texto)

“Ele passou, entrou na viatura e olhou para mim: ‘tô com tanta vontade de dar uma pisa nessa nega’. E eu disse: ‘Venha dar!’.”

O relato acima é da agricultora familiar moradora do Engenho Fervedouro, Maria Janaína da Silva, de 28 anos. Ela conta que a frase foi dita por um policial durante a tentativa de despejo no último dia 13. “Eles falam que a gente devia se juntar com o homem (proprietário das terras da Usina Frei Caneca) porque seria melhor para a gente, porque o homem tem dinheiro e a gente não”, relata.

“Eu mesma fui agredida verbalmente por um policial porque veio me gritar na frente de todos, disse que se eu falasse me levava presa, quando eu nem estava direcionando a fala para ele. Estava falando com meus companheiros de luta, dizendo que a liminar de despejo era falsa e que não deveríamos deixar cumprir. Ai ele veio pra mim e disse: ‘Você está causando tumulto e bagunça. Você tem que se calar porque se não vou prender a senhora’. Ai eu também me calei e recuei. Não vou bater de frente com um policial.”, explica Janaína, mais conhecida como Pretinha.

Segundo ela, a Polícia Militar chegou dizendo que estava ali para fazer a segurança dos moradores e dos funcionários da empresa, mas tratou as famílias agricultoras com “ignorância, arrogância, apontando armas de alto calibre e spray de pimenta”. Em um contexto que orienta o isolamento social e outras medidas de prevenção para conter a disseminação do novo coronavírus, Pretinha diz se sentir exposta quando esses episódios acontecem e pessoas de fora invadem as comunidades desta maneira.

Registro feito pelas famílias agricultoras do Engenho Fervedouro, durante a tentativa de reintegração de posse ocorrida no dia 13 de maio. Crédito: Arquivo CPT

Poder Público

Questionado pela reportagem sobre o comportamento dos policiais militares, o Ministério Público de Pernambuco informou que o “31º promotor de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital, Edson José Guerra, com atuação na Promotoria de Justiça da Promoção da Função Social da Propriedade Rural, recebeu a representação do mencionado episódio como notícia de fato nº 02054.000.004/2020.”

O órgão solicitou “informações detalhadas” e “providências urgentes” à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos; Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos; Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária; ao Instituto de Terras e Reforma Agrária do Estado de Pernambuco (Iterpe); Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); e à Polícia Militar (Batalhão de Palmares/PE e Batalhão Especializado de Policiamento do Interior – BEPI)”.

Também foram solicitadas a “apresentação de maiores informações” para a Associação dos Moradores do Engenho Fervedouro – Jaqueira/PE e a Comissão Pastoral da Terra – CPT, além da consulta no sistema do Processo Judicial Eletrônico – PJE do Tribunal de Justiça de Pernambuco sobre a existência ou não de ordem judicial que teria justificado a operação.

Em texto publicado no site oficial da CPT na última terça-feira (19), a comissão afirma que vem alertando os órgãos públicos a respeito do acirramento dos conflitos, mas nenhuma medida efetiva foi tomada até então.

“Conforme ressalta um dos camponeses da localidade, ‘as comunidades estão pedindo clemência. Nossas crianças ficam em tempo de morrer com essa situação. Hoje em dia, acordamos e abrimos as portas de nossas casas com medo. Nascemos naquelas terras, ajudamos a construir aquele lugar, é lá que temos que viver’”, relata publicação da Comissão Pastoral da Terra reproduzindo depoimento de morador da região.

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#ViolênciaNoCampo #Veneno | Na tarde dessa terça-feira, 07/04, as comunidades do engenho Barro Branco e Várzea Velha, em Jaqueira, Mata Sul de Pernambuco, encaminharam denúncia à CPT informando que foram surpreendidas com um helicóptero sobrevoando a área e lançando agrotóxicos. Os camponeses e camponesas afirmam que a pulverização do veneno foi realizada no período da tarde pela empresa Agropecuária Mata Sul S/A, que vem entrando em sucessivos conflitos com os posseiros daquela região. O odor do veneno, segundo relatos dos camponeses e camponesas, foi tão intenso que lhes provocou fortes dores de cabeça logo após a aplicação. O receio agora é que, hoje (08/04), a ofensiva da empresa continue, atingindo novas áreas e provocando mais danos às plantações, ao meio ambiente, às fontes de água, à saúde dos camponeses e camponesas e aos locais em que comumente circulam.O momento é de tensão no local. As comunidades, em conjunto com a CPT, irão encaminhar a denúncia para órgãos competentes, cobrando-lhes investigação e implementação de medidas cabíveis. Esse é mais um capítulo de um complexo e extenso conflito fundiário provocado pela empresa Agropecuária Mata Sul S/A e que se arrasta há mais de dois anos, causando um sentimento de indignação e injustiça às comunidades rurais que produzem e vivem daquilo que a terra dá. . Para saber mais, acesse: www.cptne2.org.br #cptne2 Vídeo: enviado por famílias da comunidade de Barro Branco.

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Histórico

Analisando as denúncias publicadas no site da CPT desde 2018, a reportagem chegou a algumas constatações baseadas nas informações publicizadas pela Comissão. Neste ano, é possível lembrar dois episódios em que a mesma cacimba de água foi motivo de duas denúncias. Nos dias 19 e 20 de março, assim como no dia 3 de abril, funcionários da empresa de agropecuária tentaram cercar a fonte de água e foram impedidos pelas famílias agricultoras.

Apenas em 2020 foram publicadas no site da Comissão Pastoral da Terra dez denúncias de ações violentas contra os trabalhadores rurais nas terras da Usina Frei Caneca. Entre elas estão ameaças de morte, tentativas de homicídio e atropelamento. Também o lançamento de veneno nas plantações por meio de helicóptero. Fora a intimidação constante da população feita por seguranças privados que atuam como milícias no local.

O mês de fevereiro e o início de março foram marcados por momentos importantes na história do conflito. No dia 27 de fevereiro, o Governo do Estado enviou uma petição à Comarca de Maraial para ingressar no processo judiciário que envolve a empresa Agropecuária Mata Sul S/A e as famílias agricultoras que residem na Usina Frei Caneca, algumas desde a década de 1970. A empresa não é proprietária das terras da falida usina, mas apenas arrendatária.

Tentativa de reintegração de posse no Engenho Fervedouro, no dia 13 de maio de 2020. Crédito: Arquivo CPT

Em reportagem, o site De Olho nos Ruralistas detalha informações sobre o arrendamento das terras da Usina Frei Caneca e aponta táticas jurídicas utilizadas por usineiros pernambucanos que estão à beira da falência visando manter a propriedade da terra.

As famílias residentes na área são posseiras da terra e lutam junto à CPT para se tornarem proprietárias e garantirem seus direitos antes mesmo da empresa agropecuária solicitar na Justiça o pedido de reintegração de posse em 2018.

Na petição feita em fevereiro deste ano, o governo estadual reconhece que a proprietária das terras, a Usina Frei Caneca S/A, “possui 18 (dezoito) débitos fiscais com o Estado de Pernambuco que somam R$ 61.506.085,94, em valores atualizados até o dia 27/02/2020. Os imóveis rurais objeto das escrituras públicas de arrendamento e cessão estão penhorados em razão das execuções fiscais movidas, em trâmite perante este D. Juízo, muitas com embargos à execução fiscal já transitado em julgado em favor do Estado de Pernambuco”.

De acordo com o Banco Nacional de Devedores Trabalhistas (BNDT), a Usina Frei Canca S/A está entre os 100 maiores devedores da Justiça do Trabalho de Pernambuco. Com 123 processos em execução, segundo o Tribual Superior do Trabalho (TST)

Atualização feita às 17h10 da sexta-feira (22 de maio de 2020)

*A nota à imprensa da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco chegou por e-mail às 10h46 da sexta (22) e segue na íntegra:

A Secretaria de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco (SJDH/PE) informa que, em atuação integrada com as secretarias de Defesa Social (SDS), de Desenvolvimento Agrário (DAS), de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS), de Desenvolvimento Social Criança e Juventude (SDSCJ) e com a Procuradoria Geral do Estado (PGE), com o objetivo de desenvolver esforços para a resolução pacífica da situação, estão sendo realizadas diversas ações, articulações e orientações relacionadas aos conflitos agrários existentes no Município de Jaqueira, Zona da Mata Sul de Pernambuco, na perspectiva da proteção à vida, segurança, moradia, subsistência e mobilidade das famílias residentes nas localidades não somente do Engenho Fervedouro, mas também dos Engenhos Barro Branco, Várzea Velha e Caixa D’água.

A SJDH acrescenta, ainda, que todos os acontecimentos ocorridos nesta região seguirão acompanhados atentamente, mesmo em meio à situação pandêmica que enfrentamos atualmente, causada pelo novo coronavírus, com as tomadas de providências e medidas necessárias ao arrefecimento dos ânimos das partes envolvidas e à resolução pacífica dos conflitos existentes.

AUTOR
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Helena Dias

Jornalista atenta e forte. Repórter que gosta muito de gente e de ouvir histórias. Formou-se pela Unicap em 2016, estagiou nas editorias de política do jornal impresso Folha de Pernambuco e no portal Pernambuco.com do Diario. Atua como freelancer e faz parte da reportagem da Marco Zero há quase dois anos. Contato: helenadiaas@gmail.com