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Rubens Valente: “Passou da hora de pedir desculpas aos povos indígenas”

Joel Santos Guimarães / 04/12/2017

Apesar da Comissão Nacional da Verdade (CNV) ter estipulado que o Estado Brasileiro deveria pedir desculpas  formais aos povos indígenas pelos crimes de que foram vítimas  durante a ditadura “não existe até o momento a mínima movimentação na Presidência nessa direção”, lamenta o jornalista Rubens Valente, autor de Os fuzis e as flechas História de sangue e resistência indígena na ditadura, considerado a mais completa investigação já feita sobre o tema.

O livro revela , entre outras barbáries, a morte de milhares de índios, com base em ampla documentação que Rubens Valente  encontrou pesquisando em arquivos, visitando os locais dos fatos e entrevistando 80 pessoas, entre as quais  índios, missionários e indigenistas, muitas delas testemunhas oculares ou protagonistas dos episódios.

Apesar de satisfeito com a resposta positiva dos leitores à sua obra , ele lamenta que a principal repercussão ainda não aconteceu: o pedido de desculpas do Estado Brasileiro pelos crimes cometidos contra os povos indígenas. Pedido defendido pela CNV e relegado ao esquecimento nos últimos três anos.

“Esse pedido de desculpas não é para os mortos, esses não estão mais aqui para ouvir, é para os que vão nascer, para as futuras crianças indígenas que poderão existir num país que, pelo menos, reconheceu seus erros, suas erráticas decisões e o que causaram sobre seus pais, avôs, bisavôs”.

Sobre o assunto, leia também: O Sapateiro e o poeta

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Quando e porque você decidiu escrever os Os fuzis e as flechas?

Conheci índios pela primeira vez quando tinha cerca de 12 anos de idade. Era ainda na ditadura militar, por volta de 1982, quando minha família se mudou para Dourados, no Mato Grosso do Sul. A partir dos 19 anos, quando me tornei repórter na imprensa de Mato Grosso do Sul, pude conhecer diversas outras terras indígenas no país ao longo de uma década, período em que morei e trabalhei em Campo Grande e Cuiabá. Nas viagens eu procurava indagar sobre o passado dos índios e assim foram surgindo histórias sobre o período militar que me impressionaram. Como consequência disso, desde os anos 90 tive como meta escrever um livro sobre os indígenas. Passei a guardar documentos, livros, contatos com fontes humanas, entrevistas, dicas, enfim, tudo que pudesse me ajudar no futuro.

Um fato que desde então me chamou a atenção foi que a historiografia oficial sobre a ditadura costumava silenciar sobre o índio. As excelentes principais obras sobre o período simplesmente não tratam dos indígenas, nem mesmo como rodapé da história. Dar uma pequena contribuição para suprir essa lacuna era uma motivação importante.

A Comissão Nacional da Verdade incluiu em seu relatório final a informação de que 10 etnias indígenas estavam entre as 434 vítimas de graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar, de 1964 a 1985. Nesse período, ao menos 8.350 índios foram mortos em massacres, prisões, torturas e maus tratos. Em suas pesquisas e entrevistas você pode confirmar essas informações?.

A Comissão Nacional da Verdade foi uma importante contribuição para a visibilidade do drama indígena durante a ditadura, assunto relegado a segundo plano por mais de quatro décadas em publicações oficiais do governo. Por exemplo, o dossiê “Direito à memória e à verdade”, produzido pelo Palácio do Planalto em 2007, não traz sequer uma linha sobre os indígenas. Em contrapartida, até o momento todas as medidas preconizadas pela CNV sobre os índios nunca foram tiradas do papel, numa falta de sensibilidade e legalidade grotesca do Governo Federal desde 2014, quando foi anunciada a conclusão dos trabalhos. A CNV indicava, acima de tudo, um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro, fato mais básico e elementar, mas isso não foi realizado até o momento.

A Comissão também pontuou a necessidade da criação de uma Comissão Nacional da Verdade Indígena, o que indica a complexidade e a falta de pesquisa mais aprofundada sobre o assunto. Isso também não ocorreu. Além disso, é bom lembrar que o trabalho destinado aos índios no período entrou como um anexo ao relatório da CNV, ou seja, até mesmo nesse trabalho o índio aparece como assunto secundário.

No livro você afirma que a trajetória dos povos  indígenas na ditadura “é uma das jornadas mais surpreendentes e dramáticas do século passado no país”. Por que?

Nós que nascemos e vivemos no século passado tivemos o raro momento histórico de presenciar e documentar o processo pelo qual uma dita civilização mais avançada, a nossa não indígena, com mais dinheiro e recursos, em número muito superior de pessoas, tratou comunidades numérica e economicamente mais frágeis e em quase tudo diferentes da nossa. Vimos em carne e osso aquilo que Hollywood apresentava em filmes como uma fantasia de um distante Velho Oeste. Nós vimos como nós mesmos agimos quando confrontados com a diferença.

Isso significa que brancos e índios fazem parte da mesma história?

A história dos índios não é apenas a história dos índios, é também a nossa própria história, dos não índios, de como subjugamos, destratamos e despossuímos nossos irmãos. Há poucas coisas mais reveladoras sobre o caráter de uma pessoa e o espírito de um povo do que verificar como eles tratam o que deles é diferente. A diferença assusta e a primeira reação é a tentativa de isolá-la, contestá-la e, no limite, destruí-la. É esse o mecanismo da geração do preconceito, do ódio e da intolerância. Aquilo que não compreendo, odeio. Mas a diferença é revolucionária porque abre espaços de compreensão sobre os quais somos obrigados a refletir, mesmo que a contragosto. Os índios são isso, esse enigma sobre o qual somos obrigados a refletir, encarando nossos próprios preconceitos.

Nessa trajetória os índios tiveram derrotas mas também vitórias. Quais foram as derrotas e quais foram as vitórias?

As derrotas foram tantas, foram as invasões de seus territórios, as obras de engenharia civil feitas a fórceps, o desmatamento, a fome, as epidemias, o quase-extermínio, a violência mais crua, o preconceito mais indizível e rasteiro que um brasileiro pode sofrer. Poucos grupos humanos no país sofreram tanto e de forma tão persistente e profunda, ao longo de cinco séculos, quanto os índios. Um dia isso haverá de ser reconhecido com todas as letras.

Uma vitória lentamente veio à tona, a partir dos anos 80, justamente o crescimento demográfico de grupos inteiros que já tínhamos condenado. É a demonstração cabal da tenacidade, da persistência e da resistência de um povo. Os índios, contra todos os prognósticos, feitos até por gente bem intencionada, se recusaram a jogar a toalha, se negaram a desaparecer. E eles só não desapareceram porque realmente não quiseram desaparecer. Sua ligação atávica e ancestral com a terra reafirmou seu modo de vida como o único modo de vida possível para eles, e isso é absolutamente fantástico em um mundo em constante progresso econômico e tecnológico. Essa é a grande interrogação que os índios brasileiros apresentam ao mundo. Contra tudo e contra todos, eles querem viver como seus antepassados viviam, recusando-se a se entregar a uma dita civilização que se apossou de seus territórios há mais de 500 anos.

Em Os  fuzis e as flechas você revela que indígenas, servidores públicos, missionários, antropólogos, desafiaram a ditadura para interromper  um avanço econômico que não levava em contas as ricas nuances de culturas diferentes da maioria da população.Quais os maiores exemplos dessa resistência?

O período militar, para os índios, foi marcante em vários sentidos. O mesmo período em que tantos sofreram, no qual tantos morreram, também foi uma época de grande agitação política dentro e fora das aldeias, com os índios, pela primeira vez, expondo de própria voz os seus problemas e desafios. Eles aprenderam a incentivar seus próprios líderes – os líderes para nós, os não índios, já que os líderes das aldeias sempre foram claros entre eles próprios. Foi quando surgiram as primeiras organizações eminentemente indígenas, como a UNI, União da Nações Indígenas, criada em 1980. Ou as primeiras assembleias indígenas, realizadas nas aldeias por articulação do Cimi, o Conselho Indigenista Missionário.

Qual a importância do Cimi na luta pela defesa dos povos indígenas? Funcionários da Funai também fizeram parte dessa resistência?

Criado pela CNBB em 1972, o Cimi foi uma revolução para os padrões da época. Os religiosos, influenciados pelo espírito humanista do Concílio Vaticano II (1962-1965), não queriam mais apenas evangelizar, eles queriam agora viver com os índios, ouvi-los, permitir que eles próprios se organizassem e demarcassem os seus territórios. Para o Cimi, o verdadeiro projeto da ditadura militar para os índios era acabar com eles. Os novos missionários vieram como uma importante força contrária a essa concepção.

Vale lembrar que antropólogos e servidores da Funai, também começaram um movimento de contestação ao governo central. Atribuo essa reação à dura realidade que os servidores da Funai encontraram durante o trabalho de campo, ou seja, a destruição, as epidemias e mortes entre os índios geradas por ações diretas da ditadura, como estradas e hidrelétricas. Isso impactou demais esses servidores, como documentam textos e gravações da época, e os forçou a tomar providências. Foi então criada a SBI (Sociedade Brasileira de Indigenistas), que bateu de frente com a ditadura e levou a uma onda de demissões na Funai.

Há diferenças no olhar da sociedade brasileira sobre os indígenas entre a época da ditadura em relação aos dias de hoje?

Seria temerário para mim afirmar como a sociedade via os indígenas em uma época em que eu ainda era uma criança (nasci em janeiro de 1970). O que pode ser dito com base na documentação da época que encontrei é que, sim, houve diversas mudanças na política indigenista a partir do fim da ditadura. Por exemplo, no tocante ao processo de contato com grupos indígenas que hoje chamamos de isolados e que na época eram chamados pejorativamente de “hostis” ou “arredios”. Muito provavelmente em decorrência dos contatos mal sucedidos, que geraram dezenas e dezenas de mortos, depois do fim do governo militar, conforme revela uma ata de uma grande reunião convocada pela própria Funai, os sertanistas e servidores do órgão fizeram um balanço crítico dos procedimentos e decidiram que os índios isolados só seriam retirados do seu isolamento em casos extremos.

Qual foi o comportamento da imprensa na cobertura da questão indígena durante a ditadura?

A cobertura da imprensa sobre o índio também é ambígua no período militar. Ao mesmo tempo que faziam uma extensa cobertura sobre as operações para contato de índios isolados, como a expedição dos irmãos Villas Boas em direção aos índios krenakarore, os meios de comunicação silenciaram – ou nunca souberam ou foram censurados, não é possível saber ao certo – sobre diversos casos emblemáticos do período. A grande epidemia que matou 120 índios xavantes de Maraiwetsede, que haviam sido transportadores em aviões da FAB, praticamente inexistiu nos registros da imprensa. A marcha forçada e mal planejada dos índios araweté, que ao todo matou 46 índios, inexiste nos arquivos dos principais periódicos que pesquisei. Só para citar dois casos, entre diversos outros.

A ditadura acabou. No entanto, a violência contra os povos indígenas, que hoje é promovida por setores do agronegócio, mineradoras e madeireiras não vai parar até que o último deles deixe de respirar. Você concorda com essa avaliação?

Em um debate sobre no Senado sobre meu livro, em maio, convocado por iniciativa do senador João Capiberibe, do Amapá, um índio guarani se levantou na plateia para dizer que, para ele, a ditadura não acabou em 1985, continua até hoje. Ele disse que ele e seu povo viviam em uma ditadura. Naquele dia, por exemplo, ele havia sido impedido ela segurança do Senado de entrar com seu maracá para fazer uma apresentação na comissão que discutia o livro. Nesse sentido, os índios vivem hoje uma ditadura diferente, não imposta por militares, mas sim feita de leis, normas, regramentos e interpretações livres do texto da Constituição.

Como é o caso do chamado “marco temporal”, que agora virou regra para o Executivo a partir de um parecer da AGU (Advocacia Geral da União), órgão vinculado à Presidência da República. A partir de agora, o Executivo não vai fazer cumprir uma reivindicação de índios por terra se eles não estavam sobre ela em outubro de 1988, na data de promulgação da Constituição. Ocorre que isso é uma interpretação da Constituição feita pela AGU com base em alguns julgados por turmas do Supremo Tribunal Federal. A matéria ainda não foi submetida ao plenário do STF. De qualquer forma, ainda que seja aprovado, o “marco temporal” é uma construção jurídica feita a partir da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Na Constituição não há nenhuma linha, nenhum artigo, nenhum parágrafo dizendo sobre “marco temporal”. O único marco que existe é o contrário, é a obrigação de a União fazer a demarcação de todas as terras indígenas num prazo de cinco anos, o que nunca ocorreu. Quem descumpriu a lei foi a União, mas quem está pagando é o índio.

Você recebeu algum tipo de retorno de índios ou de ONGS engajadas na causa indígena a respeito de Os Fuzis e as flechas? Pode citar alguns exemplos?

Participei de diversos debates e lançamentos do livro em diferentes pontos do país. Tive o prazer de lançar o livro em Dourados, MS, ao lado da filha do líder indígena guarani Marçal de Souza, a professora Edina de Souza. É o rosto estilizado dele que está na capa do livro. Marçal foi assassinado em 1983 no momento em que lutava pela demarcação da terra indígena Pirakuá, em Antonio João (MS). Aliás, gostaria de dizer que hoje sua segunda esposa, Elisa Vilharva, e seu filho Bibiano passam dificuldades financeiras na terra indígena de Dourados. Elisa estava ao lado de Marçal quando ele foi morto a tiros. Ela estava grávida de Bibiano, que nasceria poucos dias depois. Ela é a memória viva da luta dos indígenas pelo reconhecimento de seus direitos. A dura situação atual dela e de seu filho deveria gerar mais atenção e ação das autoridades competentes.

Também participei, na cidade de Goiás (GO), de um debate com a presença dos índios xavante de Maraiwetsede, que foram desalojados de suas terras em Mato Grosso pela ditadura em 1966, uma operação desastrada com participação da FAB. Quando chegaram à outra terra indígena, em São Marcos, houve uma grande epidemia que ceifou a vida de talvez 120 indígenas. Somente muito depois da ditadura, quase 30 anos depois, é que eles conseguiram regressar à sua terra original. Foi um privilégio muito grande discutir com esses índios uma parte tão importantes da história deles.

Em maio, o livro foi objeto de uma audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado. Em setembro, a Unifesp, Universidade Federal de São Paulo, por iniciativa da professora Claudia Plens, discutiu o livro em um curso sobre Antropologia Forense.

A Procuradoria da República em São Paulo, por iniciativa do procurador Paulo Thadeu Gomes, organizou um debate em que pude falar sobre o livro na Semana do Índio. O Ministério Público Federal, aliás, tem desempenhado um papel muito rico e importante no resgate histórico e jurídico do tema, por meio de um grupo de trabalho específico sobre a violência contra o índio na ditadura. Há uma série de procuradores da República que estão fazendo a diferença. Cito o procurador Julio Araújo, de Angra dos Reis, coordenador do grupo de trabalho, e o procurador Edmundo, de Minas Gerais, que fez um trabalho memorável sobre as agressões aos índios no “reformatório”, eufemismo para prisão, Krenak, em Minas Gerais. O procurador Julio investigou as mortes entre os indios waimiri-atroari. Ambos já ajuizaram ações civis para o reconhecimento e indenização da União.

Durante o processo de produção para escrever o livro ou mesmo quando ele foi concluído você recebeu algum tipo de pressão dos militares, da bancada ruralista ou das lideranças do agronegócio?

Não recebi nenhuma pressão nem antes nem depois do lançamento do livro. Acredito que a ampla documentação e os depoimentos detalhados que o livro traz não deixam margem para dúvidas sobre o que aconteceu, então nenhuma pressão seria mesmo legítima ou aceitável. Gostaria de frisar que, no sentido contrário, pelo menos quatro oficiais na ativa e na reserva concordaram em falar sobre o assunto, o que exalto como exemplo de transparência.

Você teve problemas para conseguir documentos necessários para a pesquisa?

Houve sim dificuldades para obtenção da documentaçãodoExército sobre o tema waimiri-atroari. Eu fiz pedidos pela Lei de Acesso à Informação e o Exército mandou alguns papéis sem grande valor histórico. Porém, poucos meses depois do lançamento do livro, descobri que o Exército havia enviado ao Ministério Público Federal do Amazonas, no bojo de uma ação civil aberta recentemente, documentos sobre os waimiri, como uma carta assinada pelo falecido general Gentil Paes, para mim desconhecidos até então. Isso demonstra dois pesos e duas medidas usados pelo Exército no tratamento do tema. Para mim, levanta uma séria dúvida sobre o que realmente o Exército mantém em seu poder acerca dessa e de outras matérias correlatas.

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Sobre o assunto, leia também: O Sapateiro e o poeta

Leia a segunda parte da entrevista: “Para indígenas, a ditadura nunca acabou”

AUTOR
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Joel Santos Guimarães

Jornalista especializado em economia solidária, agricultura familiar, política e políticas públicas. Trabalhou na "Folha de Londrina" e "O Globo", onde esteve por mais de 20 anos exercendo diversas funções, entre elas a de chefe de redação da sucursal de São Paulo. Em 2003, fundou a Agência Meios e a Agência de Notícias Brasil-Árabe (ANBA), com Paula Quental. Foi coordenador do projeto por dez anos. Sob sua gestão, a agência conquistou 11 prêmios de jornalismo web e alcançou 1,2 milhão de acessos mensais.