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Crédito: Divulgação/Nova Aurora
*por Ariel Sobral
Na contramão da produção cinematográfica que não toma cuidados básicos para garantir o acesso de pessoas com deficiência auditiva, profissionais recém formados na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), estão finalizando o curta-metragem Nova Aurora, o primeiro filme totalmente em libras e acessível para pessoas surdas produzido no Nordeste.
O projeto teve início quando a equipe ainda cursava a graduação, a partir de um programa de extensão do curso de Design da UFPB, em 2019, juntamente com o curso de Cinema da UFPE. As turmas decidiram trazer para o debate público a pauta da acessibilidade e representatividade de pessoas surdas nas telonas, afinal, apesar da esquecida Instrução Normativa 128/2016 da Ancine, que prevê a obrigação de que 15% das salas de cinema dos maiores exibidores do país possuam os equipamentos que garantam acessibilidade visual e auditiva, o público surdo ainda encontra dificuldades nesses espaços.
Nova Aurora foi gravado em uma escola municipal do Recife e animado em João Pessoa. O filme é protagonizado pela personagem Maria Rosa, interpretada pela atriz surda Taíse Colman, com enfoque nos desafios cotidianos compartilhados por jovens com essa condição no Brasil. Para tornar o curta-metragem uma realidade, participaram mais de 130 pessoas, 45 delas só na equipe de animação, além de um elenco composto por mais 20 artistas surdos.
A técnica escolhida para a transição do filme live-action para animação, foi a rotoscopia, que consiste em redesenhar os frames com o objetivo de transformá-los em pintura e juntá-los para formar uma animação. A técnica já foi usada no cinema em filmes como Com Amor Van Gogh (2017), O Expresso Polar (2004), O Homem Duplo (2006) e Waking Life (2001).
“O projeto se originou em uma conversa entre mim e Petra Renor (diretora de arte) sobre uma vontade nossa de fazer um filme de animação, que, até então, nunca tinha sido feito no nosso curso. Soubemos da abertura para projetos de extensão e vimos a oportunidade de começar por ali. Então convidei Victor Jiménez para criarmos o projeto em conjunto em uma parceria com o curso de cinema da UFPE, com o intuito de fazer algo o mais bem feito e completo possível,” relatou Davide Casagrande, diretor de animação, animador e co-produtor.
A escolha da direção não foi por acaso. O universo de pessoas surdas não é novo para o diretor, roteirista, montador e co-produtor Victor Jiménez, que, em 2018, estreou seu primeiro filme Auto Retrato, com uma protagonista surda. Com o auxílio do pesquisador e intérprete de libras, Eduardo Calisto, a principal preocupação era a de evidenciar a cultura deste grupo, e a presença dele na vida da cidade. 7
Com o Recife como plano de fundo, o curta foi inspirado também pelas discussões políticas e sociais de transformação urbana que a cidade vem passando nos últimos anos. Episódios como o Ocupe Estelita e de mudanças no Recife Antigo trouxeram alguns dos elementos principais do roteiro, que estabelece um paralelo entre as transições que a protagonista e a cidade passam. “O filme em si tem uma relação intrínseca com o Recife, e enquanto eu refletia sobre isso, me veio à mente a rua da Aurora como um símbolo. Nesta rua, existe uma carga emocional de pertencimento muito grande no imaginário de cada recifense. Pensando nisso, e como poderia se relacionar com a história de Rosa, veio o Nova, de Nova Aurora. É como uma chamada, ou uma provocação, a pensarmos como queremos que essa cidade seja no futuro,” disse Victor.
O trabalho de filmagem começou depois de um intenso trabalho de pesquisa de campo durante três meses em escolas bilíngues (português/libras) na Região Metropolitana do Recife. Nesse processo, foram entrevistados aproximadamente 100 alunos surdos que cursavam desde o ensino primário até o ensino médio, além de professores, pais e também pesquisadores da área.
A escola escolhida para a realização das filmagens foi a Escola Municipal Padre Antônio Henrique, localizada na rua Viscondessa do Livramento, no Derby. “Na escola, acompanhei uma turma que tinha a mesma faixa etária da personagem que eu estava escrevendo. Lá fui recebido com muita empolgação tanto pelo corpo docente quanto pelos alunos. Então aproveitei a receptividade e entrei de corpo e alma no dia a dia deles. Assisti várias aulas, presenciei como era a convivência entre jovens surdos, sobre seu aprendizado em sala de aula e sua convivência familiar,” contou o diretor.
O elenco foi composto pelo corpo docente do colégio e os alunos, e contou com a consultoria de pesquisadores surdos em todas as etapas do filme. Durante as gravações, estiveram presentes Eduardo Calisto,intérprete de Libras, e Celina Vaz, assistente de direção e preparadora de elenco especializada em processos com público surdo em espetáculos de teatro e educação.
Além disso, jovens universitários surdos foram para avaliarem o andamento das filmagens em questão da condução e representação dos atores surdos. “Estamos agora no quarto ano consecutivo de trabalho, nossa estimativa de finalização é para o final de 2022, quando estarão completas a animação, efeitos especiais, trilha sonora original e legendas em português e inglês até o final de 2022,” disse Victor.
A técnica da rotoscopia tem como base o filme inteiro com atores e locações reais. Para esse trabalho ser completamente autoral, o filme foi composto pelos departamentos de fotografia, som, acessibilidade, animação e efeitos especiais, cada um com uma diretoria e movimentações próprias. A equipe encarregada pela animação foi dividida em dois grupos, um responsável pelos traços e outra de pintura.
“Enquanto o filme em live action estava na etapa de pré-produção, nós da animação fizemos várias reuniões para definir identidade visual, layout, técnicas, linha de produção e treinamento. A rotoscopia exigiu entre oito a 12 quadros desenhados e pintados por segundo, e o filme tem aproximadamente 19 minutos de duração, logo, foi necessário uma equipe extensa, que, na época, nem existia no mercado Então nós, do núcleo fundador, fizemos recrutamento e treinamento dos alunos de Design da UFPB. Logo, por crescente notoriedade do projeto e de demanda de produção também, começamos a recrutar interessados da UFPE, depois da Unicamp, da AESO, da Escola SAGA e todos os demais que se mostraram interessados em aprender animação e trabalhar conosco no filme,” contou Davide Casagrande.
A produção do filme também foi afetada pela pandemia da Covid-19. O fechamento das universidades públicas e, consequentemente, o acesso aos equipamentos, como estúdios de gravação e mesas digitalizadoras, afetaram a equipe e o progresso do curta. O trabalho foi reduzido ao que pode ser feito via home office, com a direção e a produção reinventando a forma de conduzir as etapas.
“Foi necessário para o projeto continuar a viver. Também uma motivação por parte das lideranças, para mostrar que nosso trabalho, apesar de não podermos remunerar a equipe,, era um trabalho que valia a pena se fazer, por tudo o que ele representa, tnto por sua narrativa tão necessária no Brasil que vivemos hoje, quanto por mostrar o potencial de onde o trabalho universitário coletivo pode chegar quando todos nós nos juntamos em prol de um único objetivo. A cada dia foi necessário perseverar para mostrar o como Nova Aurora era, e é, uma luta que vale ser defendida,” afirmou Casagrande.
E foi de maneira completamente remota que as etapas de pintura, animação e efeitos foram realizadas. Com demandas e entregas semanais, as equipes criaram um processo de trabalho baseado na separação dos frames, processando-os e juntando-os novamente para formar as cenas. Após isso, o vídeo renderizado (o mesmo que tornar permanente um trabalho de processamento digital em áudio ou imagem que, após as alterações editadas, resulta num arquivo final) recebia os efeitos e animações, sendo cada etapa realizada por uma equipe diferente.
A equipe está testando uma forma mais inovadora de processar todos os frames em três etapas de uma só vez, utilizando três ferramentas diferentes. As cores utilizadas também cumprem um papel importante. Pensadas de acordo com a psicologia das cores para retratar diferentes turnos do dia e estado emocional dos personagens, as paletas de cores são elementos fundamentais na construção narrativa da história.
“Dentre os efeitos especiais do filme, o mais importante artisticamente e narrativamente é o efeito da aquarela que se move enquanto a trama se desenvolve. Ele foi desenvolvido para dar a sensação de “tela viva”, que cria a sensação como se os personagens do filme estivessem sendo pintados quase que em tempo real em uma tela. Para isso, eu pinto cada frame chave com as manchas de aquarela distintas,” explicou a artista visual, desempenho a função de Co- designer de produção e chefe de efeitos especiais do curta, Ery Vieira.
Após ser finalizado, o curta será submetido a festivais para a sua estreia. Aos interessados em colaborar financeiramente ou de qualquer outra forma com o projeto, o contato pode ser feito através da conta do instagram: @novaauroraofficial.
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