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Estações de “bem-estar” do Recife são inundadas com propaganda de bebida alcoólica e ultraprocessados

Maria Carolina Santos / 08/05/2023
Mulher branca, de camiseta preta, short azul e boné branco - fotografada de costas - passa correndo ao lado de painel de publicidade com foto de hamburguer da McDonalds ao lado da pista de corrida do parque da Jaqueira.

Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

Enquanto correm na pista da avenida Beira-Rio, no bairro da Madalena, as amigas Maria Luiza, 31 anos, e Elaine Pereira, 22 anos, passam várias vezes pela propaganda de um enorme hambúrguer da McDonalds exibido em cores suculentas nos painéis publicitários. Tem também propaganda da cerveja Devassa e da Coca-cola. “Já dá vontade de comer, né? É estranho esse tipo de propaganda por aqui”, diz Maria. “Deveria ser uma propaganda mais voltada para a saúde”, reforça Elaine.

O estranhamento das amigas não é pontual. Propagandas de ultraprocessados, fast food e bebidas alcoólicas estão espalhadas por todos os painéis publicitários das chamadas “estações de bem-estar” da empresa Mude, que tem contrato com a Prefeitura do Recife. São 118 estações com propagandas em pontos estratégicos da cidade, ao lado de estruturas metálicas para a prática de exercícios físicos.

Quem se exercita na orla do Pina ou de Boa Viagem, no Parque da Jaqueira ou nas quadras de Santo Amaro tem na paisagem propagandas de alimentos e bebidas que têm seu consumo associados às doenças crônicas não-transmissíveis, como diabetes, pressão alta e obesidade. Cerca de 50 mil pessoas usaram esses espaços ao longo do ano passado, de acordo com a Prefeitura do Recife.

É inevitável o questionamento: lugares voltados para a atividade física ao ar livre, geridos pelo poder público, deveriam exibir para os usuários propagandas de produtos que vão no sentido contrário a uma vida saudável?

“É um absurdo esse tipo de publicidade nesses espaços. É uma contradição completa”, diz a nutricionista e epidemiologista Bruna Hassan, pesquisadora da ACT Promoção da Saúde, organização não-governamental de defesa de políticas públicas de saúde. “São espaços voltados para se tentar ter uma vida mais ativa, mais saudável e você está sendo constantemente bombardeado por produtos não saudáveis. É como se você estivesse correndo, fazendo sua caminhada e pensa: “agora vou compensar isso aqui comendo sanduíche do McDonalds ou tomando cerveja”. As pessoas podem fazer o que desejam, claro, mas temos enfrentado um discurso das empresas de alimentos de que a culpa da obesidade não é desse marketing agressivo, mas sim do indivíduo, que não se cuida”, alerta a pesquisadora.

A estratégia da publicidade de aliar esses alimentos com o discurso ou situações de saúde está cada vez mais presente e disseminada, ainda que as evidências científicas apontem na direção contrária.

De acordo com o Ministério da Saúde, baseado em um um conjunto de pesquisas, o consumo de ultraprocessados aumenta em 26% o risco de obesidade, eleva o risco de sobrepeso em 23%, de síndrome metabólica (que aumenta o risco de doença cardíaca, acidente vascular cerebral e diabetes) em 79%, de colesterol alto em 102%, de doenças cardiovasculares em até 34% e da mortalidade por todas as causas em 25%. No Brasil, cerca de uma a cada cinco pessoas já é acometida pela obesidade.

Um estudo publicado ano passado no American Journal of Preventive Medicine estimou pela primeira vez o número de mortes prematuras no Brasil associadas ao consumo de ultraprocessados: foram 57 mil mortes, o que dá mais de 10% do total de mortes entre pessoas de 30 a 69 anos de idade no ano de 2019. “Reduções entre 10% e 50% no consumo de ultraprocessados poderiam reduzir de 5.900 a 29.300 mortes por ano”, diz a pesquisa. Recentemente, estudos têm mostrado também que não existe nível seguro para o consumo de álcool.

Na outra ponta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda, para saúde e bem-estar, pelo menos 150 a 300 minutos de atividade física de moderada intensidade por semana, para todos os adultos.

Mas em mais de 100 espaços ao ar livre do Recife, praticar exercícios físicos é conviver com uma propaganda que vai no sentido contrário à saúde. “Se a todo momento você é convidado a comer ultraprocessados e ao consumo de álcool, você vai se sentir nesse desejo. Há estudos que mostram a relação do excesso de publicidade com a obesidade e as doenças crônicas. É uma luta grande contra a indústria, que precisa ser regulada. E ainda estamos falando de lugares públicos, de um contrato com um órgão público que liberou a entrada de publicidade dentro de um local que é para promoção de saúde. A prefeitura deveria se responsabilizar pela saúde da sua população”, critica Bruna Hassan.

Cervejarias, refrigerantes e fast food monopolizam painéis da empresa Mude. Crédito: Arnaldo Sete/MZ Conteúdo

“Bem estar”, mas não tanto

Toda a estratégia de comunicação da Mude – que também é responsável pelo maquinário das Academias Recife – é voltada para a saúde e bem estar. Em um texto de divulgação da empresa, é dito que nas estações “as pessoas interagem com os conteúdos e marcas de empresas, cuidadosamente selecionadas, que expõem sua publicidade de forma inteligente e integrada”.

Para a Marco Zero Conteúdo, a empresa Mude afirmou que “a moderação e o equilíbrio em todas as áreas também fazem parte de nossa proposta como empresa e entendemos que os anunciantes estão tomando o mesmo caminho. Tanto que, por exemplo, as empresas de fast food e bebidas alcoólicas estão ampliando suas ofertas de produtos de baixa caloria e zero álcool, o que vemos como um caminho sem volta para o consumo mundial e no Brasil”.

A tática de tentar uma proximidade com a saudabilidade – ou seja, com o que tem a qualidade de saudável – é uma das estratégias atuais da indústria, explica Laís Amaral, supervisora técnica do programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). Mas tudo não passa de puro marketing.

“A associação de ultraprocessados de diversos tipos com a saudabilidade de maneira geral está muito difundida. Nesse caso do Recife, conectam diretamente com a questão da atividade física e dos parques, do ar livre. É muito frequente, ultimamente. Essa conexão é muito forte também em eventos esportivos, como Copa do Mundo, Olimpíadas. Teve um caso que já foi julgado e condenado de propaganda de ultraprocessado nos Jogos Panamericanos, com uma estratégia de publicidade infantil, que é totalmente proibida no Brasil”, explica Laís Amaral.

A conexão desses produtos com a prática de esportes e atividades físicas não é por acaso. “É para uma imagem positiva do alimento. A saudabilidade é uma estratégia. Mas tem muito também a comensalidade, que as indústrias se apropriaram do termo, que é o comer em companhia. Tem a questão da felicidade, do glamour, são diversas as estratégias de marketing que as empresas usam para conectar seus produtos a sensações e ocasiões positivas, como saúde e exercício físico. É preocupante porque estamos falando de alimentos que geram doenças quando consumidos com frequência. É uma mensagem dúbia para a população: você publiciza um alimento que faz mal à saúde conectado a ocasiões que geram saúde”, critica.

O Idec, junto com outras organizações, tem o site Observatório de Publicidade de Alimentos. “É um meio para conscientizar a população. Qualquer pessoa pode entrar no site e fazer uma denúncia de propaganda de alimentos que considere enganosa ou abusiva. Recebemos as denúncias, fazemos uma triagem e encaminhamos para órgãos competentes”, explica Laís Amaral.

Junto com a ACT Promoção da Saúde, o Idec lançou ano passado o dossiê Big Food – Como a indústria interfere nas políticas de alimentação. O documento mostra como a indústria usa estratégias para pautar suas agendas. “Se usam da política, da publicidade e de diversos meios, inclusive judiciais, para barrar medidas para a alimentação saudável. O dossiê foi feito para desnaturalizar essas prática e trazer esse tema para discussão. Precisamos de leis mais fortes que controlem essa publicidade”, diz Laís.

A reportagem da Marco Zero tem acompanhado as propagandas nas estações Mude desde o começo do ano. E deste então sempre houve bebida alcoólica, fast food e/ou ultraprocessados nos painéis, dividindo espaço com publicidade da Prefeitura do Recife, do Governo do Estado, de aplicativo para exercícios e eventos culturais. Após a solicitação de notas à prefeitura e à empresa Mude para esta reportagem, quarta-feira, 3 de maio, foi o primeiro dia sem propaganda de fast food.

Publicidade precisa ser ordenada pelo poder público

A empresa Mude tem contratos com a Prefeitura do Recife pelo menos desde 2017. Em um relatório de 2021 para o Tribunal de Contas do Estado (TCE), a Secretaria de Esportes do Recife mencionou três contratos que, juntos, chegavam a mais de R$ 8,7 milhões.

Em nota, a Prefeitura do Recife informa que está em vigor, desde dezembro de 2020, o atual contrato com a plataforma Mude, com vigência de 60 meses. “Para utilização dos espaços publicitários, a empresa fará a instalação de quatro Academias Recife ao ar livre e de 100 estações Boa Forma, sendo 10% dessa última destinadas para Pessoa com Deficiência (PcD). Todos os equipamentos são contrapartidas do certame e de uso gratuito para toda a população”, afirma a nota.

Tanto a Mude quanto a Prefeitura do Recife argumentam que seguem as leis. Acontece que as leis da publicidade no Brasil são bem permissivas. E há o problema da autoregulemantação do setor e a fragilidade da fiscalização, que como já mostrado em reportagem da Marco Zero, viabiliza até a presença de outdoors com propaganda de armas, algo proibido por lei.

Há anos, a sociedade civil organizada pleiteia mudanças na publicidade de alimentos. Em 2010, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) publicou uma resolução pararegular a propaganda de alimentos com quantidades elevadas de açúcar, gordura saturada, gordura trans e/ou sódio e das bebidas não-alcoólicas com baixo teor nutricional.

Pela resolução, os fabricantes deveriam veicular, junto à publicidade, informação associando o consumo desses produtos à incidência das doenças crônicas não-transmissíveis. A resolução levou o Brasil a ser elogiado pela OMS, mas foi suspensa logo depois por decisão judicial— ainda não definitiva—, a pedido da Associação Brasileira das Indústrias de Alimentação. A Justiça considerou que a Anvisa não poderia fazer esse tipo de regulamentação.

Professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) na área de planejamento urbano e doutor em geografia humana pela Universidade de São Paulo (USP), André Pasti, que também integra o Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação Social), critica a entrega dos espaços públicos para a exploração publicitária, algo cada vez mais comum nas grandes cidades.

“Temos debatido como a comunicação deve fazer parte da política pública urbana. Hoje, o que temos visto nas cidades é uma naturalização da entrega pelas prefeituras da publicidade. Entendemos que esses painéis são espaços públicos de comunicação e deveriam ser usados para campanhas de cidadania, de saúde. Inclusive são em alguns contextos, como campanhas de vacinação. Há uma série de possibilidades para campanhas públicas nesses espaços, mas eles são entregues às empresas privadas. Perdemos uma chance de comunicação cidadã gigantesca”, lamenta.

Para Pasti, os painéis em áreas públicas são uma ferramenta de comunicação e deveriam ser, assim como uma televisão pública, cuidados com atenção. Ao deixar que as empresas decidam o que deve ser colocado nos espaços públicos, as prefeituras abrem mão de prestar um serviço à população. “Publicidade é comunicação: ou seja, a prefeitura está decidindo comunicar e defender esses produtos? Pode haver normativas próprias, em que a prefeitura, ao fazer as concessões, estabeleça que tipo de propaganda pode ser feita nesses espaços. É um debate que precisa ser feito ou vamos continuar com essas contradições: espaços públicos voltados para a promoção da saúde com campanhas intensas das empresas da alimentação que não é saudável”, afirma.

Depois de anos de falta de diálogo no governo Bolsonaro, ele diz que é hora de voltar o debate sobre regulamentação da publicidade de maneira mais séria. “Do ponto de vista legal, há um debate muito pobre. O Brasil não avançou em uma regulamentação da publicidade para que protegesse as pessoas. Temos alguns entendimentos do judiciário sobre a publicidade infantil, principalmente, mas entregamos muito para a autorregulação das empresas, que é uma ficção. É uma perspectiva que a sociedade civil tem combatido bastante. Os governos podem ganhar com essas concessões, mas vão gastar muito mais lá adiante com o tratamento de saúde da população”, diz.

Resposta completa da Prefeitura do Recife

A Prefeitura do Recife informa que está em vigor, desde dezembro de 2020, o contrato com a plataforma MUDE, com vigência de 60 meses, para veiculação de publicidade em espaços públicos da cidade. Para utilização dos espaços publicitários, a empresa fará a instalação de quatro Academias Recife ao ar livre e de 100 estações Boa Forma, sendo 10% dessa última destinadas para Pessoa com Deficiência (PcD). Todos os equipamentos são contrapartidas do certame e de uso gratuito para toda a população.

Atualmente, existem 26 unidades das Academias Recife espalhadas pela cidade. Elas possuem cerca de 250m² de espaço e são projetados em aço inoxidável. As turmas são de 32 alunos cada, com aulas de 40 minutos. São 10 acompanhamentos nutricionais gratuitos por turno, realizados por um profissional com o auxílio de um estagiário da área. Durante o ano de 2022, quase 50 mil pessoas utilizaram os serviços de exercícios físicos de forma gratuita.

Quanto às estações Boa Forma, até o momento, já são 118 espalhadas pelo Recife. O maquinário permite a realização de 20 tipos de exercícios físicos, podendo ser utilizado em qualquer dia ou hora da semana. Cada estação pesa 400kg de aço 100% inoxidável, própria para uso ao ar livre, suportando as ações do tempo: chuva, maresia e temperaturas elevadas. O material dos equipamentos tem o acabamento polido, fazendo com que não absorva calor, possibilitando o uso em qualquer horário, inclusive nos dias mais quentes. O espaço também possui um painel informativo com dicas de como realizar todos os movimentos corretamente.

Por fim, a Prefeitura esclarece que a lei 18.886/21, que disciplina as normas de veiculação de anúncios e seu ordenamento no espaço urbano do Recife, em seu artigo 7º, estabelece uma série de vedações quanto a conteúdos e mensagens abordadas em publicidades, entre elas a que incita a violência ou estimule o porte, a compra ou a venda de armas, por exemplo.

Respostas da empresa Mude aos questionamentos da Marco Zero:

Há algum critério de seleção para a publicidade exibida nas estações de bem-estar da Mude?
A atuação da Mude é baseada na legislação que regula a publicidade no país e, por isso, é nossa obrigação ter critérios no exercício de nossa função. A atividade da publicidade no Brasil possui um sistema normativo especial que disciplina e regula sua existência e funcionamento. Conta com normas legais como as Leis Federais 4.680/65 e 12.232/10, e Decreto Federal Nº 57.690/66, alterado pelo Decreto Nº 4.563/02. A publicidade está incluída no capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal da República, que assegura a liberdade de expressão e veda a censura prévia, estabelecendo, também, que somente a União pode legislar sobre publicidade comercial. No campo das relações comerciais, há normas convencionadas por entidades e associações nacionais representativas de agências de propaganda, veículos e anunciantes, tais como o Código de Ética dos Profissionais da Propaganda e as Normas-Padrão da Atividade Publicitária, instrumentos de incentivo às boas práticas e respeito ético.

Por que a Mude coloca propaganda de fast food, ultraprocessados e bebida alcoólica em painéis que estão em praças, pistas de corrida e outros espaços de promoção à saúde e atividades físicas?
Nosso propósito é conseguir levar às pessoas espaços gratuitos para que consigam ter uma vida mais saudável. É por meio dos anunciantes que conseguimos viabilizar as atividades para a população. A publicidade é revertida para o bem-estar da população de forma gratuita, voltada para atividades físicas ao ar livre. A moderação e o equilíbrio em todas as áreas também fazem parte de nossa proposta como empresa e entendemos que os anunciantes estão tomando o mesmo caminho. Tanto que, por exemplo, as empresas de fast food e bebidas alcoólicas estão ampliando sua ofertas de produtos de baixa caloria e zero álcool, o que vemos como um caminho sem volta para o consumo mundial e no Brasil.

Há algum controle externo do que é veiculado nestes painéis? A prefeitura do Recife tem que aprovar essas publicidades ou não?
As prefeituras seguem as legislações nacionais vigentes e acreditamos que, ao oferecer equipamentos e serviços de bem-estar, criamos uma grande oportunidade para a atividade física gratuita na cidade, e promovemos a diminuição do sedentarismo, um grande problema que afeta a saúde não apenas da população do Recife, mas de todos os brasileiros.

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AUTOR
Foto Maria Carolina Santos
Maria Carolina Santos

Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diario de Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e Revista Continente. Contato: carolsantos@marcozero.org